Especialista em bioética lamenta "fúria legislativa" sobre tema da eutanásia
18-02-2020 - 08:31
 • Henrique Cunha com redação

É divulgado esta terça-feira o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre os projetos de lei que pretendem legalizar a eutanásia que vão ser discutidos quinta-feira, no Parlamento. À Renascença, um dos membros deste conselho diz que a pressa é tanta, que os deputados nem vão ter tempo de ler o parecer. Uma situação inaceitável, sublinha Ana Sofia Carvalho.

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O parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre os projetos de lei que pretendem legalizar a eutanásia são conhecidos hoje e discutidos quinta-feira, no Parlamento. Parece um ‘timing’ apertado…

O conselho foi altamente surpreendido por esta fúria legislativa sobre um assunto que realmente mereceria outra calma e outra reflexão. Mais, o conselho teve reunião dia 17 e a votação vai ocorrer dia 20, portanto, isto significa que basicamente os deputados não vão ter tempo de ler o nosso parecer. Como possivelmente também nem sequer tiveram tempo para ver as propostas legislativas, porque até hoje continuam ocupados com questões relacionadas com o orçamento.

Perante estas circunstâncias, a colegialidade que devia existir - uma vez que o Conselho Nacional de Ética é um órgão consultivo da Assembleia da República - parece que não existiu. É absolutamente inaceitável que numa matéria com esta densidade, com esta dificuldade, realmente não exista tempo para avaliar, para ler para estudar, não só os projetos de lei em apreço, mas o parecer que foi entretanto emitido.

Significa que provavelmente os pareceres terão pouca relevância naquela que será a decisão e o voto de cada deputado?

Acredito que terão pouca relevância. Aquilo que pode eventualmente ter alguma relevância é depois dos projetos de lei baixarem às respetivas comissões e, no caso de se avançar com um único projeto de lei, aí possa ser tido em conta o parecer do Conselho de Ética. Como é que vão responder a isso, para mim é um mistério…

Tudo aponta para que uma maioria de deputados aprove a despenalização da eutanásia, e pelas perceções percebe-se que nenhuma força política está disposta a avançar com o referendo. Como devem atuar aqueles que defendem a consulta popular para tornar possível o referendo?

Relativamente ao referendo, acho que mesmo as pessoas a favor são-no porque percebem que neste momento é a única solução realmente de se fazerem ouvir junto daqueles que elegeram. Ao contrário daquilo que é a perceção dos senhores deputados que dão liberdade de consciência, eu acredito que os eleitores, principalmente dos dois grandes partidos - neste caso do PS do PSD - se sentem altamente defraudados pelo facto de este assunto não ter sido inscrito nos seus programas eleitorais. Sendo assim, considero que o Parlamento ou que os partidos Bloco de Esquerda, PAN e, pelo outro lado - contra a eutanásia - CDS e CDU têm toda a legitimidade para discutir o assunto na Assembleia da República. Na minha opinião, os dois grandes partidos não têm legitimidade para discutir este assunto, porque quando nós votamos num partido, não estamos a votar na consciência dos deputados e, portanto, não tem legitimidade para representar a consciência das pessoas que votaram neles.

As pessoas se querem o referendo devem empenhar-se e assinar a petição a circular.

Estranha o facto de num período pouco superior a ano e meio, o Parlamento volte a discutir um mesmo tema?

Acho estranhíssimo e um desrespeito total por aquilo que foi uma posição extremamente recente. É uma oportunidade instrumental de um conjunto de pessoas para aprovar, perante uma conjuntura que lhes é favorável, um tema que é desfavorável, possivelmente à maioria dos portugueses.

Que resposta deve ser dada àqueles que estão em absoluto sofrimento e já não esperam nada da vida?

Neste momento, infelizmente não são só esses que estão a precisar de resposta. Nós vivemos num sistema nacional de saúde que não sei se é reversível este estádio de coma que ele está. Obviamente que no final de vida as pessoas estão mais vulneráveis e, portanto, há um sentimento mais profundo sobre essa necessidade de acompanhar. Mas a verdade é que nós não temos, neste momento, as condições suficientes ou o país arrumado no sentido de garantirmos um acesso equitativo e generalizado a toda a população a cuidados adequados de fim de vida para discutirmos uma questão desta natureza. É muito estranho que o Estado que não responde é o Estado que propõe que as pessoas se matem, o que para mim uma contradição tremenda.

Dos projetos em análise algum salvaguarda a necessidade não se abrirem brechas a uma eventual diria fúria legislativa?

Não. Salvaguardando talvez, até com alguma dificuldade, o do PEV, pois os outros projetos são muito permissivos em relação à chamada rampa deslizante. Mas verdadeiramente os nossos projetos já deslizaram, porque aquilo que é a maior parte dos projetos permite e coloca como motivo passível de se pedir a morte é a doença incurável, com sofrimento inaceitável. Só o PEV é que coloca a parte do terminal, os outros põem como condição ou doença terminal e, portanto, não é um “e”, é um “ou”. Isto já abre as portas todas, pois permite a uma pessoa que tem uma doença incurável - que pode ser uma coisa fácil, pois há imensas doenças crónicas que são incuráveis - sinta em si mesmo que o sofrimento para ele é insuportável, sendo passível de ver aceite a eutanásia.

A questão da rampa deslizante e de deslizarmos para situação eticamente inaceitáveis nem sequer estão assegurados à priori, ao contrário da Bélgica e da Holanda que começaram com situações muito mais restritivas e sempre ligadas a situações terminais.

De qualquer das formas nesses países a propensão foi para que o número de mortes tivesse aumentado?

Eu posso lhe dar os resultados de 2017. Por exemplo na Holanda nós tivemos 6.585 pessoas a ser eutanasiadas: 300 foram idosos sem estar em fase terminal; 150 doentes dementes, portanto, com doenças neurodegenerativas (parkinson e alzheimer) mas que realmente lhes tiram a possibilidade de tomar uma decisão; 75 doentes psiquiatriátricos, do quais três eram jovens com problemas relacionados com alimentação e três eram pessoas dependentes de álcool ou de drogas. As pessoas não podem dizer: “não há dados factuais para dizermos que as coisas não deslizaram para situações eticamente inaceitáveis”. Olhemos para estas pessoas que morreram, ou que foram mortas nestes países e percebemos que realmente isto é uma situação inevitável.

Esse é um dos principais receios com base nos casos conhecidos?

Realmente isto desliza para situações eticamente inaceitáveis que colocam em causa uma matriz judaico-cristã de base de cuidadora, em que a família, a solidariedade e o apoio são no fundo aquilo que nos caracteriza.