“O Hamas não é um grupo terrorista”. Esta surpreendente afirmação é de Erdogan, o autocrata da Turquia. Ela confirma o empenho do presidente turco em se aproximar do Islão.
Erdogan acusou Israel de “crimes de guerra” e o Ocidente de ser “o principal responsável pelos massacres em Gaza”, declarações que levaram Israel a um protesto diplomático. Na passada sexta-feira Erdogan pediu o estabelecimento de um "cessar-fogo humanitário" o mais rapidamente possível na Faixa de Gaza e quer organizar uma conferência internacional de paz para resolver o conflito.
A Turquia é membro da NATO, o que pode parecer estranho, pois a retórica atual de Erdogan é anti-ocidental e contra as democracias liberais. O regime turco admite eleições, mas não é realmente democrático. A repressão à liberdade de expressão e a eliminação da independência do sistema judicial são traços próprios de uma democracia iliberal, que em rigor não é democracia.
Erdogan defende o Hamas, mas no seu país persegue os curdos, que ele considera terroristas. E como membro da NATO manteve durante quase dois anos um veto à entrada da Suécia na Aliança Atlântica, argumentando que Estocolmo recebia e apoiava terroristas.
Como outros autocratas, Erdogan durante longos anos manteve um capricho: obrigava o banco central a descer - e não a subir – juros para combater a inflação. Mas, perante uma inflação galopante, há meses permitiu finalmente ao banco central turco que combatesse a alta dos preços subindo os juros. Não se teria mantido Presidente tantos anos sem alguma dose de pragmatismo...
Erdogan foi primeiro ministro entre 2002 e 2013; a partir de 2014 tornou-se presidente da Turquia. Nos últimos tempos tem mantido boas relações com Putin e com outros autocratas. Agora cortou relações com Netanyahu, por causa de Gaza, e mandou regressar à Turquia o seu embaixador em Israel. Parece seguir um percurso inverso ao de Ataturk, o criador da república turca.
Ataturk é um herói militar; ficou célebre a sua oposição a uma invasão grega depois do fim da I guerra mundial. E foram os militares turcos, durante décadas, os principais defensores da herança de Ataturk, sobretudo quanto a um Estado laico e secular. Mas a partir de certa altura os militares turcos multiplicaram as suas intervenções na política, o que provocou uma queda no seu prestígio no país, de população maioritariamente muçulmana.
Erdogan manobrou habilidosamente para tirar poder aos militares e aumentar o seu poder pessoal. E até se considera herdeiro de Ataturk, cuja figura é venerada na Turquia. Ataturk visava uma democracia liberal, não submetida ao poder religioso islâmico e próxima das democracias ocidentais. Mas aos turcos agrada a capacidade de Erdogan de fortalecer o peso da Turquia na cena internacional.
P. S. Desde a manhã de terça-feira que o país está mergulhado numa inesperada e grave crise política, que é também um grande desafio ao sistema judicial, nomeadamente à eficácia do Ministério Público. Veremos o decide o Presidente da República. É assunto para a próxima crónica.