Domingos Abrantes sobre eutanásia: “Não queremos fracturas da sociedade"
03-12-2016 - 23:35
 • Eunice Lourenço , Susana Madureira Martins

Domingos Abrantes diz que é preciso “não forçar realidades” na questão da eutanásia e ter em conta a realidade social do país. Em entrevista à Renascença, o conselheiro de Estado faz um balanço do congresso comunista, avisa o Governo que tem de resolver o aumento do salário mínimo e critica o Bloco por apostar em causas fracturantes.

Veja também:


É um histórico do PCP, mas não passou à história. Domingos Abrantes lutou contra a ditadura, foi preso e torturado, foi dirigente do partido durante décadas. Hoje, aos 80 anos, é conselheiro de Estado e figura muito presente no partido e, portanto, também neste XX Congresso que termina este domingo. Um Congresso que, acredita será importante para a coesão do PCP na “quadro novo” que se vive na política portuguesa.

Nesta entrevista à Renascença, feita em pleno congresso, no complexo desportivo de Almada, Domingos Abrantes fala também da reunião do Conselho de Estado que vai discutir o futuro da União Europeia, do compromisso do Governo em aumentar o salário mínimo, da eutanásia e do Bloco de Esquerda que acusa de querer “forçar realidades”.

Que balanço já é possível fazer deste Congresso?

Creio que este Congresso demonstra várias realidades que importa salientar, até pelo seu carácter distintivo de outros partidos. É, naturalmente, um Congresso com uma composição social e etária muito diversificada, que dá aqui o espelho da realidade do nosso país e do mundo. Aqui não uma passerelle que é o que caracteriza os outros congressos, mas há a preocupação de aferir da realidade do partido e dos pais. Pode-se aqui ouvir intervenções sobre a situação da Carris, da agricultura, do que se passa na União Europeia... É, portanto, um congresso riquíssimo do ponto de vista da análise do que se passa e da perspectiva do nosso trabalho e do nosso país. Por outro lado, uma enorme combatividade, um peso muito significativo de jovens e nesse aspecto acho que significa um avanço em relação a outros congressos. Um congresso que, por aquilo que já podemos ver, contribuirá para uma coesão interna do PCP e para a projecção da sua intervenção no quadro novo da situação política e dos grandes problemas que enfrentamos.

Uma das coisas que se tem ouvido muito aqui são avisos ao Governo. Há como que uma tentativa de equilibro entre a situação politica que o PCP vive neste momento de fazer parte de uma maioria de esquerda e a independência e autonomia que o partido quer manter. Até que ponto é possível manter este equilibro?

Pelo debate e até pelas clarificações que o secretário-geral fez as coisas são complexas, como é óbvio, mas são relativamente claras. Nós tornámos possível - e isso é o nosso mérito - uma solução que foi interromper uma governação de direita do PSD e CDS. Isso foi conseguido e é um mérito extraordinário. No último ano, ao contrário dos últimos quatros, não passámos a vida a discutir o que se vai cortar. Durante quatro anos o que se discutir neste país era mais ou menos, mas era sempre cortar, cortar sempre nos mesmos. Ora, no último ano esse problema não esteve presente, o que esteve presente foi se se repunha mais ou repunha menos, o que é uma diferença abismal. E há ganhos significativos em termos democráticos, sociais, políticos, gerais, que foram aqui bastante enumerados. Agora, não escondemos que queremos ir mais longe, isto não é o nosso horizonte, queremos um país melhor, mais progressista, uma vida melhor. Este horizonte não é o nosso limite. O termo aviso pode não ser o mais adequado, mas trata--se de chamar a atenção do Governo de que há constrangimentos que podem limitar não só a política do Governo, mas o próprio desenvolvimento do país. Quando temos de submeter o Orçamento do Estado à União Europeia, quando temos de submeter a nomeação de um presidente para a Caixa à União europeia, quando nos impõem restrições de défice... isto é, quando estamos limitados do ponto de vista nacional de decidir os nossos destinos e não afrontamos esses problemas, naturalmente que, mais tarde ou mais cedo, isto vai entrar em contradição e, portanto, não deixaremos de avisar o Governo que há estes constrangimentos. Fazemos um apelo ao Governo e ao Partido Socialista para afrontar estes constrangimentos e não abdicamos da nossa reivindicação. Estamos com lealdade no apoio a esta solução, mas é claro que queremos ir mais longe.

E com todos esses constrangimentos acha que, ainda assim, haverá condições para esta legislatura ir até ao fim?

Há todas as condições. O que está previsto é "na perspectiva", usamos o termo "na perspectiva", o que significa que tem de ser passo a passo, não há um compromisso para os quatro anos, há um compromisso para ir viabilizando ano a ano e é nesse sentido que vamos resolvendo e, portanto, ano a ano consideramos o problema e acho que há condições para irmos ao termo da legislatura.

Um dos constrangimentos que o PCP considera existir é o euro e a pertença União Europeia e o senhor como conselheiro de Estado vai estar presente numa reunião no dia 20 sobre o futuro da Europa. Que expectativas é que tem para essa reunião?

Podia ser para tomar uma decisão no âmbito das competências do Conselho de estado, mas não é este o caso. Trata-se de os conselheiros opinarem, junto do Presidente, qual é a sua visão do quadro da Europa e cada um dirá em função da sua postura politica, da sua ideologia, dos conhecimentos que tem. É uma evidência que esta reunião vai ocorrer num quadro bastante diferenciado, estão em desenvolvimento coisas que podem alterar ainda mais radicalmente... Lembremos que há referendo na Itália e eleições na Áustria que podem significar um cataclismo no quadro da Europa, se juntarmos agora também o problema da América. O Conselho de Estado tem naturalmente de aconselhar o presidente sobre a visão que tem desse quadro.

E que conselhos vai dar?

Isso fica para o Presidente.

Uma vez resolvido o orçamento do Estado para 2017 quais devem ser agora as prioridades no futuro mais próximo?

Há coisas que não estão resolvidas. Não está resolvido o problema do salário mínimo e que é uma batalha. O patronato, naturalmente, não quer abrir os cordões à bolsa, mas o Governo tem compromissos, compete ao Governo decidir. Não é a concertação social que tem de decidir, isso é uma coisa anti-democrática. Faz parte das competências do Governo decidir. Além disso, a Assembleia da República, que é o órgão de soberania por excelência não pode ficar submetida às decisões do conselho de concertação social. Seria uma subversão do regime democrático.

Um dos assuntos que irá ao Parlamento no início do ano é a questão da eutanásia. O PCP ainda não tomou uma posição sobre esse assunto. Qual acha que deve ser a posição do PCP?

É um problema que precisa de alguma consideração, tendo em conta o que é a realidade do nosso país, o peso da influência religiosa e católica do nosso país. A realidade social deste país não pode ser ignorada. Creio que há alguma precipitação, querer andar depressa numa questão que tem a sua complexidade. Pessoalmente, tenho algumas reservas. Ainda não tenho ideia formada, mas acho que se devia caminhar a passo e procurar consensos e um conhecimento da realidade e não forçar a realidades que podem ter outras consequências na vida do nosso povo.

Há a ideia na opinião pública que o Bloco de Esquerda tem tendência a forçar realidades. Nesta relação a quatro, nesta nova situação política, também é essa a avaliação que faz?

O Bloco faz bandeira das chamadas causas fracturantes. O próprio termo já de si levanta muitas interrogações. Nós não queremos fracturas da sociedade, queremos resolver problemas sociais, para os quais haja um acolhimento que corresponda aos anseios e aspirações gerais do nosso povo. [Os assuntos que o Bloco levanta] são muitas vezes questões que respondem a uma pequena burguesia e uma pequena burguesia intelectual, que tem as suas características e aspirações. Esta ideia de querer forçar situações não é um bom caminho, sobretudo para um país como o nosso.