Depois de 20 anos a viver nas ruas do Porto, António Barbosa, de 60 anos de idade, chegou ao centro de acolhimento temporário Joaquim Urbano, no Porto, há cerca de dois meses.
O antigo trabalhador da construção civil, que se encontra em situação de sem-abrigo, diz que lhe saiu a “sorte grande”.
“Sinto-me um privilegiado, mas não deixo de ser um sem-abrigo. Pode chegar a hora de ter de partir e não haver soluções e continuar a dormir na rua. Buscar o cobertor e guardar, buscar o cobertor e guardar”, conta, à Renascença, o sexagenário que, durante os anos que viveu na rua editou três livros de poesia. O quarto livro será lançado em dezembro com título “Lágrimas”, revela orgulhoso.
“Avisaram-me que o título é pesado, mas eu é que sei”, afirma António. “Já tive muitas lágrimas quando vivia na rua. Já sofri muito. Já chorei à conta da solidão”, confessa.
Um modo de vida que “entristece qualquer um” e que está a atingir cada vez mais pessoas, garante o poeta ao recordar os últimos tempos que fez da rua a sua casa.
“Em qualquer passeio se vê um homem deitado e, agora, chegou ao ponto de ver casais”, lamenta. “Agora a culpa já não é da pandemia , é da guerra e do gás”.
"Com 180 euros não arranjo uma casa, nem um quarto, nem um barraco”
O mesmo cenário é descrito por Joaquim Dantas. É na oficina de artes do centro de acolhimento que o encontramos a trabalhar em arte sacra. Ofício que o ocupou desde novo até cair no desemprego.
“Estou a fixar esta folha de ouro neste santo. Toda a minha arte é esta. Sei restaurar tudo o que é arte sacra”, explica Joaquim, que chegou ao centro de acolhimento, inicialmente, para um período de seis meses, mas já cá está “há quase um ano”.
“Ia pedir emprego e as pessoas perguntavam-me a idade. Tenho 61. Então, diziam que já não me podiam dar trabalho”, recorda o artesão que, para o futuro, apenas pede “uma casinha”.
“Recebo o Rendimento Social de Inserção (RSI). Com 180 euros não arranjo uma casa, nem um quarto, nem um barraco”.
Joana Pardalejo, responsável pela gestão do centro Joaquim Urbano, explica que a situação de Joaquim Dantas é a de muitos utentes. A maioria acaba, mesmo, por “ultrapassar o tempo previsto de acolhimento”.
“Há o limite de três a seis meses que, na maioria das situações, não se concretiza porque se não houver resposta de continuidade alargamos o prazo. Não vamos devolver a pessoa ao contexto anterior de sem teto”, diz a responsável.
Com 40 vagas, o centro de acolhimento temporário Joaquim Urbano é uma das respostas municipais para a população em situação de sem-abrigo e, se for o caso, para os seus animais de companhia. “É uma das marcas que distingue este centro”, sublinha Joana.
Rede de restaurantes solidários vai aumentar
O centro temporário de acolhimento Joaquim Urbano, instalado no antigo hospital com o mesmo nome, integra um dos três restaurantes solidários da cidade do Porto onde são servidas 130 refeições todas as noites.
Uma rede de resposta alimentar que será alargada com a “inauguração do quarto restaurante nas primeiras semanas do próximo ano”, revela Fernando Paulo, vereador da coesão social da autarquia portuense.
A nova estrutura vem dar resposta “à zona ocidental da cidade, próximo da Boavista, onde, de facto, temos um fenómeno bastante acentuado de pessoas em situação de sem abrigo”, adianta o autarca.
O objetivo, explica o vereador, é “dignificar a distribuição de comida”. Isto é, “possibilitar que as pessoas que se encontram nesta situação possam ter uma refeição digna, nutricionalmente equilibrada, sentados e permitir, também, a possibilidade de as equipas sociais se aproximarem destas pessoas”.
E se a população em situação de sem-abrigo está a aumentar na cidade, Fernando Paulo culpa a pandemia, mas não só. Para o vereador, a “falta de reintegração dos reclusos que viram a pena reduzida no pico da covid-19” foi outros dos fatores que contribuíram para o fenómeno.
“Muitas destas pessoas a quem lhes foi diminuída a pena voltaram para a rua. Saíram das prisões sem terem garantido um plano de reinserção”, aponta.
Mais recentemente, “a guerra, o agravamento dos problemas sociais e as comunidades migrantes crescentes no nosso país, também, agravaram o fenómeno”, atira o autarca.
Para o responsável pelo pelouro da coesão social no município do Porto, o fim do flagelo da população em situação de sem-abrigo é possível, desde que haja “uma estratégia metropolitana de intervenção”.
“Dos 308 municípios do país, apenas 30 têm Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), o que evidencia bem que esta, ainda, não é uma prioridade estabelecida por todos os municípios”, lamenta o autarca.
Cinquenta e um por cento das pessoas em situação de sem-abrigo sinalizadas pelo município do Porto não são residentes no concelho. Dados da segunda maior cidade do país que contabiliza 730 pessoas nesta situação. 231 delas sem teto, 499 sem uma casa. Mais 140 pessoas do que em dezembro de 2020.