​Aqui, três pessoas pediram para morrer em dez anos. E as três mudaram de ideias
15-02-2017 - 18:32
 • Filipe d'Avillez

Não faz sentido debater a legalização da eutanásia quando não há uma boa rede de cuidados paliativos, dizem os enfermeiros da Casa de Saúde da Idanha.

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Não faz sentido debater a legalização da eutanásia numa altura em que ainda não existe uma boa rede de cuidados paliativos no país. É essa a convicção da equipa de cuidados paliativos da Casa de Saúde da Idanha, uma das referências desta especialidade em Portugal, que funciona há mais de dez anos.

A ala tem apenas 12 camas, que estão sempre cheias. É para aqui que vêm os doentes quando estão em fase terminal, com doença incurável. “Já passaram por aqui cerca de 800 utentes”, explica a enfermeira Fátima Oliveira, “e apenas tivemos três situações de pessoas que nos pediram para morrer. Em todos esses casos foi possível identificar a raiz do sofrimento que motivava esse pedido e resolvê-la, levando a que a pessoa deixasse de querer morrer”.

Apesar dos enormes avanços que a especialidade tem tido nos últimos anos, persistem vários mitos sobre os cuidados paliativos. Por exemplo, diz-se frequentemente que embora eles possam ajudar nalgumas situações, há outras em que a dor é mesmo incontrolável e insuportável.

“Quando os cuidados paliativos são feitos com ciência, sabedoria e experiência, consegue-se efectivamente controlar os sintomas físicos”, diz Fátima Oliveira.

Na Casa de Saúde da Idanha, que pertence à Congregação das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus, o tempo máximo para se conseguir esse controlo da dor é 48 horas.

E não se pense – outro mito – que este controlo é feito à custa de sedação, como explica o enfermeiro Dinis Oliveira. “O que nós aqui fazemos é a sedação ética, que é sempre proporcional. Há muitos anos, quando não se conseguia dar resposta à dor, começava-se uma coisa que era a sedação profunda e continua. Isso não era proporcional. A sedação ética é sempre, sempre, proporcional ao sintoma e não é contínua. Pode ser descontinuada, pode ser reiniciada e é sempre proporcional.”

O sofrimento não físico

E o sofrimento que não é físico? Vários casos ocorridos na Holanda, Bélgica e Suíça, onde a eutanásia ou o suicídio assistido são legais, comprovam que há situações em que a morte não é pedida devido à dor física, mas ao sofrimento psicológico.

É por isso que a equipa de cuidados paliativos da Casa de Saúde da Idanha é composta por mais de 20 pessoas, incluindo naturalmente os dois médicos e 12 enfermeiros, mas também uma assistente social, uma psicóloga, três voluntários e uma assistente espiritual.

A equipa pode ainda valer-se de profissionais de outras especialidades – desde engenheiros alimentares a terapeutas da fala, passando por fisioterapia – quando surge a necessidade.

Com esta equipa interdisciplinar consegue-se diminuir ou mesmo extinguir as fontes de sofrimento emocional, espiritual ou psicológico que muitas vezes atormentam quem está em fase final de vida.

Estas podem ser das mais variadas. Há quem queira ver um filho que está preso; há quem queira ver um neto que trabalha em Espanha; há quem queira conhecer um jogador famoso ou ver a águia do Benfica; ou, então, há quem esteja simplesmente angustiado porque lhe pesa saber que há burocracias, como contas bancárias ou reformas, pendentes.

A equipa ocupa-se de tudo isso, não por mera generosidade e boa vontade, mas porque os cuidados paliativos funcionam de acordo com a ideia de “dor total”, isto é, de combater o sofrimento em todas as suas vertentes.

Mas será que se justifica uma equipa de mais de 20 pessoas para tratar de, no máximo, 12 doentes de cada vez? Aí está outro erro, explicam os profissionais. Apesar de só haver 12 camas, nunca são 12 as pessoas de quem se cuida. “A grande diferença dos cuidados paliativos é que, por definição, esta é a única que acompanha os doentes e a sua família”, explica a assistente espiritual. “E família é quem o doente diz que é. Podem ser pessoas muito significativas. Portanto, quando são 12 na realidade podem ser 30.”

Ainda assim, explica o enfermeiro Dinis Oliveira, vários estudos internacionais comprovam que os cuidados paliativos permitem poupar dinheiro ao Estado.

“Pensamos que isto é uma grande equipa para pouca gente, mas não é. É uma grande equipa para muita gente porque são os doentes e os seus familiares. E, no entanto, ainda assim, as pessoas que têm acompanhamento nos cuidados paliativos têm um custo muito menor do que o mesmo doente a ser acompanhado no hospital, porque iria ter sucessivamente recorrências à urgência, em que vai ter de fazer exames, recontar a história, vai ter sofrimento para ele e para a família e vai custar muito mais dinheiro ao Estado.”

“A dignidade não é algo que damos ao outro”

Na área dos cuidados paliativos continua a haver muito por fazer em Portugal. Isso leva os enfermeiros da Casa de Saúde da Idanha a concluir que não faz sentido discutir a legalização da eutanásia sem antes alargar a rede dos paliativos.

“Enquanto a população não tiver acesso, de uma forma uniforme, aos cuidados paliativos, não é para nós viável discutir eutanásia. Como é que podemos discutir uma coisa com alguém que não tem alternativa ao sofrimento? Nós defendemos os paliativos como alternativa à eutanásia, como alternativa à pessoa que está a sofrer, que está desesperada, que não tem solução para esse sofrimento”, diz Fátima Oliveira.

E para quem considera que é inviável criar esta rede, Dinis dá um exemplo histórico. “Na altura do 25 de Abril tínhamos uma das maiores taxas de mortalidade infantil de toda a Europa e do mundo ocidental, e conseguimos, é histórico, uma das maiores reduções da maternidade infantil da história, no menor período de tempo. Hoje em dia se alguém quer dar à luz é impensável, em Portugal, que não tenha resposta. É impensável. Então por que é que em Portugal uma pessoa que está num processo de final de vida tem de morrer a sofrer?”

A discussão sobre a eutanásia não se pode fazer nestes termos, conclui, e menos ainda com argumentos sobre dignidade. “A dignidade não é algo que damos ao outro. Cada ser humano é um fim em si mesmo e a dignidade é dele e nós ou o reconhecemos ou não. Na eutanásia parte-se logo de uma argumentação que é errada, no sentido em que nós achamos que uma vida não é digna. E nós não podemos tomar para nós a dignidade do outro, porque essa dignidade é do outro. Esse é um dos principais argumentos que podemos logo perceber, do ponto de vista da lógica, que está errado.”

“Dar mais vida aos dias que restam”

Por definição, os profissionais desta área lidam apenas com doentes em estado terminal, e suas famílias. Não há aqui histórias de cura. Um olhar mais sombrio diria que não há finais felizes, não há esperança. Um erro, garantem Dinis e Fátima.

Sublinham que esta especialidade não é para todos, mas também não hesitam quando se lhes pergunta se o seu trabalho é uma cruz que carregam. “É um privilégio, sem dúvida.”

“Costumo dizer que nós aqui lidamos com o mais puro do ser humano. A pessoa, quando nos chega, chega com grande sofrimento físico, existencial. Tem consciência do seu prognóstico, sabe que está perto da morte. Não somos nós que lhe impomos isso. O doente sabe que tem uma doença incurável, e que vai morrer. E é o ser humano mais puro que se possa imaginar, porque está despido de preconceitos, de preocupações sobre o que parece bem ou mal. E nós temos o privilégio disso, porque podemos lidar no nosso dia-a-dia, com o que é real no ser humano.”

Dinis concorda. “Aqui trabalha-se muito a esperança. Não é a esperança da cura, porque essa não há, mas é a esperança do amanhã, a esperança de uma boa refeição, a esperança de uma visita. O nosso trabalho não é acompanhar na morte, é dar mais vida aos dias que restam.”