Foi o “Presidente de todos os portugueses” e depois deixou de ser. Foi o mais consensual dos políticos, mas depois também foi o mais polémico, controverso, inconformado. Da luta antifascista à construção da democracia; da descolonização à integração europeia; do programa com o FMI ao combate à troika, Mário Soares fez parte da vida dos portugueses nos últimos 60 anos e foi uma figura chave na história recente de Portugal. Morreu este sábado, dia 7 de Janeiro de 2017, no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa, onde estava internado desde 13 de Dezembro de 2016.
Nascido a 7 de Dezembro de 1924, Mário Alberto Nobre Lopes Soares cresceu numa família de educadores e republicanos-liberais. Foi o segundo filho de João Lopes Soares, um antigo sacerdote, professor e pedagogo, que chegou a ser ministro das Colónias na Primeira República, e de Elisa Nobre Baptista, uma professora primária de Santarém.
Mário Soares com o pai, no Campo Grande, no domingo de Páscoa de 1927. Foto: Arquivo Mário Soares
A ligação à educação haveria de perpetuar-se na família e de ser também foco de resistência. O Colégio Moderno, que completa 80 anos, foi fundado por João Soares e dirigido sucessivamente pela sua nora, Maria Barroso, e pela neta, Isabel Soares. Por lá passaram como professores nomes como Álvaro Cunhal, David Mourão-Ferreira, Agostinho da Silva, além do próprio Mário Soares.
Mário Soares frequentou o ensino primário noutro colégio fundando pelo pai, o Bairro Escolar do Estoril, terminando a então quarta classe na escola oficial das Caldas da Rainha. É também em Leira que faz a admissão ao liceu, passando depois para outra experiência pedagógica do pai, o Colégio Nuno Álvares, na Venda do Pinheiro.
Em 1936, é então fundado o Colégio Moderno onde Mário Soares termina o curso geral do liceu, em 1942. E foi aí também que conheceu três homens que marcaram a sua vida: Álvaro Salema, professor de Filosofia, Álvaro Cunhal, seu efémero professor de Geografia, e Agostinho da Silva, professor de Literatura.
Prisões, filhos e licenciaturas
São também dessa altura os primeiros contactos com o Partido Comunista, através de Cunhal e de Guilherme Costa Carvalho, acabando por aderir às Juventudes Comunistas, primeiro, e depois ao PCP, já nos tempos da Faculdade de Letras, onde se licenciará em Histórico-Filosóficas.
A demissão de Vitorino Magalhães Godinho da Faculdade de Letras e a convivência com Fernando Piteira Santos, que conhece quando este vivia na clandestinidade, nas Caldas da Rainha, aumentam o seu empenho político, muito centrado no meio estudantil.
A 8 de Outubro de 1945, é um dos muitos participantes na sessão constitutiva do Movimento de Unidade Democrática (MUD). Com Salgado Zenha, Octávio Pato e Júlio Pomar preside, em 1946, à criação do MUD Juvenil. É também nesse ano que é preso pela primeira vez pela PIDE, acabando por sair sob fiança. No ano seguinte, volta a ser preso, chegando a estar detido ao mesmo tempo que o pai.
Fotografia da ficha da PIDE tirada quando foi preso em 1949. Seria preso, no total, 12 vezes, deportado para São Tomé e obrigado a exilar-se em Paris. Foto: Arquivo Mário Soares
Em 1948 repetem-se as detenções e João e Mário Soares chegam mesmo a partilhar cela. Juntos também vão apoiar a candidatura de Norton de Matos à Presidência da República. São tempos em que a oposição ao regime cresce, mas também a sua repressão. Maria Barroso, que tinha conhecido na Faculdade de Letras, é demitida do Teatro Nacional e, em 1949 casam, no Aljube, já com Maria de Jesus grávida de João e com Mário mais uma vez preso. A militância política valeu-lhe ao todo 12 prisões. No total, passaria três anos de cadeia.
Depois de se licenciar em Ciências Histórico-Filosóficas, volta à universidade, para estudar Direito. É, entretanto, em 1951, acusado de “oportunismo e traição” ao PCP, juntamente com Piteira Santos, entre outros, o que o leva a fundar a Resistência Republicana e Socialista, que pretendia ser uma alternativa de esquerda não-comunista.
Já como advogado (começaria a exercer em 1958) envolve-se na campanha eleitoral de Humberto Delgado e, em 1961, empenha-se no Golpe de Beja, uma tentativa frustrada de revolta militar.
Ao longo dos anos 60 torna-se muito conhecido como advogado de defesa de presos políticos e acabaria por representar a família de Humberto Delgado na investigação do seu assassinato.
Em 1964, é escolhido para secretário-geral da Acção Socialista Portuguesa, que funda, em Genebra, com Francisco Ramos da Costa e Manuel Tito de Morais e que, em 1973, daria origem ao Partido Socialista, fundado na Alemanha. Mas antes da fundação do PS ainda haveria de ser exilado em São Tomé e Príncipe, na sequência do caso “Ballet Rose”, um escândalo sexual envolvendo personalidades afectas ao regime, noticiado na imprensa inglesa. Soares é acusado de “passar informações falsas e difamatórias”.
Na partida para S. Tomé, em Março de 1968, tem uma multidão a despedir-se no Aeroporto da Portela, prova de como já era uma figura da oposição, acabando mesmo por se tornar uma figura internacional nos anos seguintes. É no exílio que começa a escrever “Portugal Amordaçado”, que seria publicado anos depois em França, outra terra de exílio para Soares, entre 1970 e 1974. É de lá que regressa a Portugal a 28 de Abril de 1974, sendo recebido em Santa Apolónia por uma enorme multidão.
Do exílio para o Governo
Chegado a Lisboa três dias depois da revolução, Mário Soares vai directamente para o Governo. Foi ministro dos Negócios Estrangeiros nos três primeiros governos provisórios, ficando responsável pela negociação dos processos de independência das colónias, e ministro sem pasta no IV Governo Provisório.
Em Abril de 1975, o PS vence as eleições para a Assembleia Constituinte, com 38%. O PSD tem 26,4% e o PCP apenas 12,5%. Um ano depois, nas primeiras eleições legislativas, o resultado é muito semelhante e Mário Soares é nomeado primeiro-ministro do I Governo Constitucional.
São tempos de luta entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade democrática, tempos de luta pelo domínio dos sindicatos e os socialistas vão marcando as diferenças com os comunistas.
Soares e Cunhal tornam-se inimigos públicos, ficando para a memória futura um debate televisivo de quatro horas em que discutem o país. Mas a Constituição é feita e aprovada, a legitimidade democrática vence no 25 de Novembro, pondo fim ao Período Revolucionário em Curso (PREC), e Mário Soares assume-se como o principal líder civil do campo democrático.
Os governos vão sendo derrubados, Soares alia-se ao CDS, vai contando com os apoios dos Estados Unidos e da então Alemanha Federal, passa pela oposição com os governos da Aliança Democrática (AD) e enfrenta a primeira grande divisão no PS quando se opõe ao apoio socialista à recandidatura de Ramalho Eanes. Chega mesmo a auto-suspender-se da liderança do partido, regressando em força no congresso de 1981.
Mário Soares, primeiro-ministro do I Governo Constitucional, recebido em Bruxelas pelo então presidente da CEE, Roy Jenkins, no âmbito das conversações para a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia. Novembro de 1977. Foto: Comissão Europeia
A 25 de Abril de 1983, volta a ganhar as eleições legislativas e inicia aquele que será o mais conhecido dos seus governos: o Governo do Bloco Central, fruto de um acordo com o PSD de Carlos da Mota Pinto. Durará apenas dois anos, mas ainda hoje são os dois anos de que mais se fala na política portuguesa devido à intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) e à entrada de Portugal na então Comunidade Económica Europeia (CEE).
Europeu e Presidente
A 12 de Junho de 1985, assina, com Rui Machete (que substitui Mota Pinto, entretanto falecido) e Jaime Gama, o Tratado de Adesão à CEE. Logo a seguir, Soares demite-se do cargo de primeiro-ministro e um mês depois anuncia a sua candidatura à Presidência da República.
No PSD, já lidera Cavaco Silva, que viria a ser outro dos seus adversários políticos.
Saído de um período de grande crise económica, Mário Soares parte para a corrida presidencial em clara desvantagem. Por uma unha negra, passa à segunda volta, mas com grande desvantagem relativamente ao seu rival, Freitas do Amaral, que conquista 46% dos votos contra os 25% do socialista.
A campanha ficaria marcada pela agressão de que Soares e alguns apoiantes foram vítimas na Marinha Grande. As imagens da agressão deixam o país indignado e, a 16 de Fevereiro de 1986, Mário Soares é eleito Presidente da República com 51% dos votos. O apoio do PCP, que fez um raro congresso extraordinário em que Cunhal apelou ao voto em Soares, foi essencial para a vitória.
Soares promete ser “o Presidente de todos os portugueses” e inicia um mandato que se revelaria tão consensual que, cinco anos depois, a reeleição torna-se um quase plebiscito para um segundo mandato. As quotas de popularidade de Soares não paravam de crescer e o próprio PSD, já com Cavaco Silva em maioria absoluta no Parlamento, dá-lhe o seu apoio tácito. Soares acaba reeleito com 70% dos votos.
No segundo mandato, como que iniciou a oposição a Cavaco Silva. As suas Presidências Abertas foram-se tornando, cada vez mais, momentos para apontar falhas e debilidades. Organiza o “Portugal, Que Futuro?”, um verdadeiro congresso de oposição e critica ao cavaquismo.
No PS, depois das lideranças fracassadas de Vitor Constâncio e Jorge Sampaio, António Guterres ia fazendo o seu caminho e, quando chegou a hora de sair de Belém, Mário Soares tinha um governo socialista de novo no poder e passou o testemunho a outro socialista, Jorge Sampaio.
Amigo de Sócrates, opositor da troika
Dez anos de Presidência, no entanto, não chegaram para o conduzir à reforma. Em 1999, Mário Soares é eleito deputado ao Parlamento Europeu, que chegou a sonhar presidir. Em 2006, um ano depois de deixar Bruxelas, aos 80 anos, tenta um terceiro mandato em Belém. Não vai além dos 14%, numa eleição ganha por Cavaco Silva e ao fim de uma campanha em que disputou o eleitorado socialista com Manuel Alegre. A amizade ficou como que suspensa durante uns anos, mas acabaria por ser reatada.
As presidenciais de 2006 mostraram bem que o “rei Soares”, o “Presidente de todos os portugueses”, já era passado. Terminada mais essa aventura, Soares sai da vida política activa, mas não se retira do palco.
A sua intervenção na vida pública manteve-se em conferências, entrevistas, artigos de opinião até que, em Janeiro de 2013, é internado com uma encefalite. Recupera, mas vai diminuindo a exposição pública. Aparece várias vezes em visitas a José Sócrates, preso em Évora, manifestando a sua solidariedade a um líder do PS e ex-primeiro-ministro que apoiou, mas também criticou e que, como ele, chamou o FMI.
Durante os anos de intervenção da troika deixou de ir às sessões solenes do 25 de Abril, foi um crítico feroz de Passos Coelho, pareceu ter posições, por vezes, mais próximas do Bloco de Esquerda do que do seu próprio partido.
No funeral de Maria Barroso, em Julho de 2015, já foi um Mário Soares claramente debilitado que apareceu aos olhos dos portugueses, que se foram habituando às suas ausências. Não foi à posse de Marcelo Rebelo de Sousa, em Março, mas em Julho foi homenageado por António Costa nos jardins de São Bento e, em Setembro, apareceu no Hospital da Cruz Vermelha para uma homenagem a Maria Barroso.