A vida de Cristina Pereirinha seguia a uma velocidade estonteante. Uma carreira ativa e brilhante, uma família forte e saudável e muitos, muitos projetos. Até que de repente, aos 42 anos, sem aviso prévio chegou o diagnóstico que nunca esperou. Tinha cancro da mama triplo negativo. Esta empresária de Almada pertence a um grupo que está a aumentar, em Portugal e no mundo, o das pessoas com menos de 50 anos que são diagnosticadas com uma doença oncológica.
Cristina foi obrigada a travar a fundo. Não queria acreditar que aquilo pudesse estar a acontecer. Sempre fora tão saudável, tão ativa, porquê ela? “Nunca pensei que pudesse ter alguma questão de saúde pendente. Portanto, eu via essa questão como algo que ia ser fácil de resolver”, recorda.
Não foi e não está a ser, mas o pensamento da mulher, agora com 45 anos, corresponde a um paradoxo. A fase de jovem adulto em que os projetos, os objetivos e a energia são tantos não rima com uma doença que tem uma conotação mortal. Por isso, a reação a um diagnóstico destes é, muitas vezes, de desespero.
“Eu confesso que chorei porque pensava que ia deixar de ver o meu filho. Era a minha maior preocupação, o não ver o crescimento do Lucas. Ele, na altura, tinha oito anos”, começa por contar Cristina, recuando até 2021.
Socialmente e profissionalmente também foi uma época bastante impactante. Ela tratava da comunicação e relações-públicas de uma empresa: “Sabia que ia ter muitas alterações físicas e tive que explicar isso, porque poderia ser um entrave”.
Não tem dúvidas em comparar o que aconteceu, e à escala, a uma “bomba atómica” que se abateu sobre a vida dela e dos que a rodeiam. Ainda assim tinha uma certeza: “Eu gosto muito de viver, sabe? E eu não consigo olhar para trás sequer. Eu só olho em frente para aquilo que me pode ajudar”, diz.
Princesa Kate fez o mundo falar do tema
Ainda há pouco tempo, o cancro em idades mais jovens ganhou grande visibilidade com o anúncio da princesa de Gales, Kate Middleton, que após uma temporada sem exposição pública revelou estar a realizar tratamentos contra um cancro.
Em Lisboa, um dos maiores centros de referência nacional no tratamento do cancro, o IPO, anuncia que os dados ainda não fechados de 2023 parecem “sugerir uma ligeira tendência de aumento de cancro neste grupo populacional da faixa etária 18-49 anos”.
Neste mesmo grupo, entre os anos 2020 e 2023, o número de casos seguidos naquela unidade de saúde ronda os 4.400, dos quais 27% correspondem a cancro da mama, 12% a linfomas, 12% a tiroide e outras glândulas endócrinas, 11% são casos de cancros ginecológicos e 8% de digestivos.
Recentemente, um artigo publicado na revista Nature concluiu que em todo o mundo pelo menos uma dúzia de tipos de cancro está a crescer entre as pessoas mais jovens, e diz mesmo que “modelos baseados em dados globais preveem que o número de casos de cancro de início precoce aumentará cerca de 30% entre 2019 e 2030”.
O cancro da mama e alguns linfomas podem estar a contribuir decisivamente para este crescimento. Por isso, as mulheres são também as mais penalizadas.
Ainda “não é uma epidemia”
Fátima Vaz, diretora do serviço de Oncologia do IPO de Lisboa, afasta o cenário de “epidemia de cancro entre jovens”, apesar de assinalar o crescimento de casos nesta faixa etária. A reação mais imediata, sublinha, seria pedir rastreios em idades mais precoces, mas a especialista tem dúvidas de que estes “resolvam tudo”. “É uma visão simplista”, resume.
Em relação à mortalidade, nas pessoas com idades entre os 18-49 anos, ronda os 20%. Um número “elevado”, que a especialista enquadra com o facto de os “cancros detetados nestas idades terem casos mais agressivos”. O diagnóstico pode ser também mais tardio, o que não ajuda a que os resultados sejam melhores.
Regressemos à história de Cristina. A família foi desde o início o seu “porto de abrigo”, mas para ela nem sempre foi fácil gerir a muita informação que a nova situação trazia. Teve de fazer mastectomias ao peito e isso “não contei logo, fui contando”.
Naqueles primeiros tempos, Cristina sentia-se a viver “num planeta completamente diferente”. “Assim que lhe dão uma notícia destas, parece que não anda. Parece que flutua, parece que não está a acontecer consigo. Parece que está a ouvir ao longe. É tudo tão…”, recorda.
Marca o corpo e a mente
O cancro é de facto uma doença primeiramente física, mas que pode deixar sequelas psicológicas. A diretora do serviço de Psicologia do IPO de Lisboa, Maria de Jesus Moura, diz que o sistema de saúde já olha com todo o cuidado para esta dimensão das doenças oncológicas.
"Assim que lhe dão uma notícia destas, parece que não anda. Parece que flutua, parece que não está a acontecer consigo. Parece que está a ouvir ao longe. É tudo tão…", Cristina Pereirinha, empresária.
O recurso a este apoio é muito diferente de caso para caso, garante. Há até pessoas que decidem não recorrer a ele. Maria de Jesus Moura conta que na fase de diagnóstico, por exemplo, é muitas vezes a família a fazê-lo “porque considera que a pessoa, sobretudo se for um jovem adulto, pode estar a lidar com um impacto muito significativo, que tem a ver com a crise de vida, com o choque. Não só com as grandes alterações físicas, como também com as alterações emocionais com as quais pode estar a lidar”.
Uma delas é em relação à forma de lidar com os filhos ainda menores de idade. Cristina Pereirinha passou por isso com o pequeno Lucas. Há um episódio que a emociona ainda hoje ao contar.
Passou-se num centro comercial, e Cristina, a enfrentar os primeiros tratamentos, levava um turbante na cabeça, tinha posto brilhantes e penas. A ideia de se sentir bem e arranjada sempre foi muito importante. E nisto, o pequeno Lucas pergunta:
- “Mãe, tu és famosa?”
- “Porquê filho?”
- “É que está toda a gente a olhar para ti”.
- “Isso é porque a mãe é muito bonita”
- “Pois és, mãe, és muito bonita”.
Cristina suspira e atira: “Aquilo deu-me um ânimo enorme”. Relata que nunca deixou de ir aos restaurantes, às festas, aos eventos que sempre tinha ido. Mas relembra com humor as reações: “As pessoas olhavam para mim e sabe que era muito engraçado. Há pessoas que ficam um bocadinho nervosas quando olham para elas, eu achava muita graça. As pessoas ficavam na dúvida se seria estilo ou se eu estava mesmo doente”.
Muitos dos amigos ficaram com ela e ajudaram-na, mas houve quem se afastasse. “Há quem não aguente ser confrontado com a sua própria fragilidade”, diz. “Esta é uma doença que não escolhe, até atinge reis e princesas”, lembra.
"Há pessoas que ficam um bocadinho nervosas quando olham para elas, eu achava muita graça. As pessoas ficavam na dúvida se seria estilo ou se eu estava mesmo doente”, Cristina Pereirinha.
Mas porque é que temos cada vez mais jovens com diagnósticos de cancro? Fátima Vaz, diretora do serviço de Oncologia do IPO de Lisboa, aponta várias explicações. Uma delas, os fatores ambientais. “Há um cada vez maior sedentarismo. As pessoas cada vez fazem menos exercício. Há um aumento da obesidade, em Portugal, que é acompanhado pela falta de exercício físico”, resume.
Soma-se o peso do tabagismo, apesar de estar em queda, e do consumo de álcool em que o país é “um grande consumidor”. “O álcool nem sempre foi identificado como fator de risco de cancro e essa evidência tem crescido nos últimos anos”, afiança.
Na lista de causas há ainda as questões hereditárias, que, segundo Fátima Vaz, justificam 5% a 10% do total, e que uma das suas caraterísticas é o de aparecer mais cedo. “Antes dos 50, dos 40 ou mesmo dos 30”.
Fátima Vaz volta à questão do aumento dos rastreios para dizer que “há dados de que isso não vai resolver tudo e que vai provavelmente provocar muita ansiedade”.
E, de seguida, densifica a explicação. “As pessoas vão estar a fazer imensos exames, vão ter resultados duvidosos, que não são um cancro, e que só vão criar ansiedade”.
“Portanto, o que nós precisamos é de, nas pessoas que têm familiares com cancro e naqueles que ainda não os têm, ter uma abordagem global e o mais individualizada possível, numa articulação entre as estruturas mais especializadas e os centros de saúde”, acrescenta.
"Há dados de que os rastreios não vão resolver tudo e vão provavelmente provocar muita ansiedade", Fátima Vaz, diretora do serviço de Oncologia do IPO de Lisboa.
A especialista explica ainda que ter um familiar com cancro não é sinónimo de risco imediato. Depende da idade em que aconteceu. Não é a mesma coisa que tenha surgido aos 80 anos ou aos 50 anos. Depois é ainda necessário, explica, perceber se há outros fatores que podem ter contribuído para o aparecimento da doença, como o tabagismo ou a obesidade.
Dito isto, explica que quem tem “uma alteração genética que confere o risco de cancro” deve começar a fazer rastreios rapidamente e podem até fazer cirurgias que reduzam as probabilidades de desenvolver a doença.
A médica dá ainda o exemplo da atriz Angelina Jolie, que fez uma dupla mastectomia, e das muitas pessoas que querem fazer o mesmo que a estrela norte-americana, mas que “pesam 80 quilos e têm 1,60 metros e fumam 20 cigarros por dia”. “Isto faz sentido?”, questiona.
“O que temos de dizer a esta mulher é que até pode fazer isso. Mas o que nós sabemos no IPO de Lisboa e no mundo inteiro é que a senhora vai ter muito mais complicações com a cirurgia, porque é uma grande fumadora e isso vai ser um problema no pós-operatório. E vai continuar a ter risco de cancro do pulmão”, explica.
Desvalorização dos sintomas nos mais jovens
Por isso, e se calhar mesmo sendo uma mensagem mais difícil, Fátima Vaz continua a insistir que o caminho é “principalmente de promoção da saúde” e que “vai ter de se olhar para cada caso em concreto e fazer uma abordagem individualizada”.
A especialista do IPO alerta ainda para um fenómeno que contribui para que muitas vezes os cancros nos mais jovens ganhem proporções maiores. Algo em que os próprios profissionais de saúde são responsáveis.
“A verdade é que acontece a uma certa desvalorização, mesmo entre os que trabalham nos cuidados de saúde. Em relação ao cancro de mama, é terrível porque apenas se valorizava, até há pouco tempo, os casos do lado da família e da mãe. Se uma tia tivesse tido cancro aos 40 anos, do lado pai, por exemplo, ninguém valorizava”, concretiza.
Foi o caso de Ricardo Ferreira, um professor de Biologia em Gondomar, que sempre que ia ao centro de saúde, a partir dos 30 anos, abordava a história familiar e o peso que poderia ter nele.
O peso era grande. Três mortes, todas no lado paterno, que resultaram de cancros do aparelho digestivo − um avô e dois tios. O pai também foi diagnosticado com cancro e está a tratar a doença.
“Tive sempre esse sentimento de preocupação e, por várias vezes, abordei a minha médica de família, embora, tirando isso, sempre fui muito saudável. Nunca tive grandes problemas, grandes doenças. Mas perguntava se faria sentido fazer a endoscopia e a colonoscopia para tentar despistar esse tipo de problemas”, lembra.
Do outro lado, ouvia como resposta: “Sempre me disse que se não tivesse sintomas não faria sentido nenhum. Só poderia fazer o rastreio a partir dos 50 anos. Era o protocolo que ainda continua a ser hoje”.
“Não parecia real”
Mas aos 40 anos, começou a sentir sinais de que algo poderia não estar bem. As dores no estômago começaram. A médica pediu então uma endoscopia. Disse que não faria sentido fazer a colonoscopia.
Ainda assim, requereu também uma análise genética no IPO, “exatamente para despistar a presença do gene de prevalência do cancro do estômago que ocorre muito na minha família”.
“Sempre me disse que se não tivesse sintomas não faria sentido nenhum. Só poderia fazer o rastreio a partir dos 50 anos. Era o protocolo que ainda continua a ser hoje”, Ricardo Ferreira, professor.
“Estava negativo e descansou-me, mas ao mesmo tempo também descansou a minha médica”, relembra.
Entretanto, chega a Covid-19, chegam os confinamentos, e Ricardo muda de médica de família. Isso coincide com o aparecimento, nessa fase, de sangue nas fezes. Logo na primeira consulta, assustado, aborda o tema “apesar de ser desconfortável”.
“Na altura desvalorizei um bocadinho e associei a uma hemorroida”, conta. A médica avança para o pedido de uma colonoscopia. O exame traz a pior notícia. “Um tumor no intestino e que pelo aspeto seria maligno”, lembra o professor.
Estávamos em 2021 e Ricardo tinha 47 anos. O impacto inicial foi brutal. O primeiro dia foi de alienação. “Não parecia real, não era verdade”. Só passadas 24 horas conseguiu voltar a assentar os pés na terra. “O dia a seguir é que foi realmente difícil. Ganhei consciência de que tinha o problema que não ia desaparecer tão rapidamente e que teria de enfrentar. E também tomei consciência da minha mortalidade”, recorda.
“Foi a primeira vez na vida que senti que se calhar ia viver muito menos tempo do que pensava ou que almejava viver”, resume.
O único arrependimento
A enorme tristeza inicial que sentiu foi sendo substituída por uma vontade de enfrentar aquele desafio e de o ultrapassar. “A resiliência nunca me abandonou. Se calhar ia ter um futuro mais difícil, mas a vida só vale a pena ser vivida se não desistirmos de combater por ela”, valoriza.
Ricardo reflete agora sobre o processo de tratamento ao longo dos anos e sobre como ele foi sendo construído. “Por um lado, percebo, compreendo o porquê do protocolo em questão, da gestão de dinheiros públicos e de esforço. Compreendo a posição da médica de família, porque realmente parecia que nada se encaminhava para que eu desenvolvesse um tumor deste género”, analisa.
No entanto, “não deixo de pensar um bocadinho que, se calhar, o facto de eu insistir de vez em quando, se calhar a médica devia ter percebido que poderia haver alguma coisa, mesmo que eu não estivesse diretamente a sentir. E sinto que, se calhar, eu deveria ter feito mais. É o único arrependimento que tenho”.
Ainda assim, ainda detetou a doença numa fase que “é tratável”. Fez uma cirurgia e “tirou o intestino”. Como era maligno, criou metástases, e teve de operar também o fígado.
"Agora está tudo controlado. Está tudo limpo. Mas isto demonstra que se tivesse detetado mais cedo, se calhar poderia não ter chegado a ser um tumor maligno”, lamenta.
Durante esta fase, uma das preocupações de Ricardo era a filha. Os pais são os dois professores de Biologia e ela também está ligada à área. Tinha 15 anos, uma fase em que a comunicação nem sempre é fácil. “Nós decidimos fazer uma abordagem direta. Eles já sabem o que é o cancro, e tentei fazer ver que era transitório. Isto é para combater, ultrapassar e seguir a vida”, detalha.
Vítor Neves, presidente da Europacolon, associação de apoio ao Doente com Cancro Digestivo, revela que, no caso dos cancros do aparelho digestivo, 20% têm como causa ligações hereditárias.
O mesmo detalha os dados da Organização Mundial de Saúde, que revelam que em 2022, em Portugal, registaram-se mais de 18.800 casos, uma subida de 4,7% relativamente 2019. A mortalidade subiu mais de 14%, passou para 11.720 casos por ano.
Esta associação também identifica, nos últimos dois anos, um número crescente de pessoas jovens a serem diagnosticadas com este tipo de cancro. “Por exemplo, num dos nossos grupos de apoio que fazemos via online, mais de 50% das pessoas que participaram tinham abaixo dos 45 anos”, sublinha.
Para os cancros do aparelho digestivo, este responsável diz que as linhas orientadoras dizem “que todas as pessoas com mais de 50 anos devem fazer rastreio, porque era por aí que víamos a incidência começava a aumentar”. “Mas, infelizmente, nos últimos tempos tem-nos aparecido aqui na Europacolon pessoas muito jovens com casos bastante adiantados”.
Vítor Neves aponta para a alimentação e o aumento de produtos processados como um fator de risco extra e diz que urge criar e reforçar comportamentos mais saudáveis. “É já um problema de saúde pública gravíssimo no nosso país há muitos anos e, a continuar assim, vai-se tornar ainda mais grave e em idades mais precoces”, adianta.
Covid e cancro
Para a radialista Joana Cruz, a vida mudou duas vezes muito rápido. Primeiro, uma mudança que a atingiu a ela e ao mundo inteiro de uma só vez. A pandemia da Covid-19 levou a repetidos confinamentos e à mudança de hábitos de vida.
Um deles, no caso de Joana, foi não fazer a ecografia e mamografia na altura em que costuma fazer, a meio do ano. Deixou para o final de 2020. Não estava com muita pressa, até que num sábado à tarde no final desse ano − deitada no sofá a ver um documentário sobre o astro argentino Diego Armando Maradona − ao passar a mão no decote ter encontrado um alto “tipo ervilha” no peito.
“Não tinha qualquer desconforto, mas, nesse momento, os alertas soaram na minha cabeça”, explica. Foi de imediato marcar exames, numa clínica que não conhecia. Queria que fosse o mais rápido possível.
“Na ecografia as primeiras palavras foram: ‘não é cancro, é um quisto. Não se preocupe, daqui a seis meses repita o exame’. E eu fiquei descansada da vida. Saíram-me 30 quilos de cima porque estava nervosa e fiquei descansada”, afirma.
Mas, daí para a frente houve uma palavra que não lhe saía da cabeça: “Repete”. Ecoava tanto que o fez. O formigueiro noturno que sentia frequentemente foi outro empurrão decisivo.
Agora na clínica em que costumava ser seguida, o diagnóstico foi outro: cancro na mama. Triplo negativo agressivo. Felizmente, foi detetado em fase muito inicial.
Lembra-se de ter sido bastante positiva. “Eu tinha 42 anos e pensei: pronto, olha, se tivesse que ser já estava bom, mas não vai acontecer porque temos aqui, muito boas possibilidades de isto correr bem e, portanto, esse pensamento [negativo] fica lá longe”, recorda.
Mas nem todos lidam com esta notícia da mesma maneira, explica a psicóloga do IPO Maria Jesus Moura. A população antes dos 50 anos tem caraterísticas próprias, defende. “Estão a passar por etapas do desenvolvimento como a vida académica, o início da vida profissional, os relacionamentos íntimos, um conjunto de projetos de vida que estão no seu esplendor e que efetivamente podem não ficar coartados logo nesta primeira etapa, mas outros ficam”, descreve.
Há ainda, segundo a psicóloga, que ajustar a narrativa interior de cada um à realidade que a doença pode trazer. “A pessoa tem um bocadinho esta ideia que vai conseguir lidar e manter tudo de um modo exatamente igual àquilo que aconteceu anteriormente e isso pode não ser possível”, refere a especialista do IPO de Lisboa.
“Um kit capilar”
A animadora da RFM Joana Cruz fala desta necessidade de ajustamento. Uma das mais evidentes é a da queda de cabelo. Para não ser confrontada com os novelos a cair sucessivamente, cortou-o logo mais curto. Continuou a perder. Até ao dia em que pegou na máquina do pai e rapou-o.
Mas antes já se tinha precavido para a nova fase com a compra de um “kit capilar”. “Tal como as senhoras quando estão grávidas e vão ter o bebé para a maternidade, levam uma malinha. Eu também o fiz antes de cabelo começar a cair. Comprei a minha peruca, aquela de que eu gostei, que me ficava bem, mandei vir umas sobrancelhas que se põem com água e tiram com desmaquilhante”, descreve.
A questão da alteração da imagem é uma das mais significativas para quem passa pelos tratamentos de quimioterapia. A psicóloga Maria José Jesus fala de “uma grande alteração da imagem corporal” e cria o primeiro nível de dificuldade. Não se consegue esconder socialmente ao contrário de outras doenças graves.
“Não é só a perda de cabelo, também implica perder as sobrancelhas e as pestanas que caracterizam muito o rosto das pessoas. Efetivamente, muitas vezes sentem-se despidas, sobretudo as mais jovens. A qualquer pessoa isto afeta, não é?”, resume.
Joana Cruz passou pelos tratamentos muito bem, sem efeitos secundários, com ajuda de outras terapêuticas e alterações alimentares. Passados oito meses, concluiu com sucesso todo o processo. Noutras situações em que tem falado publicamente da experiência, Joana revelou ter sentido uma “felicidade enorme” que não a largava. Como assim?
“É a felicidade de uma pessoa saber que passou pelo processo com nota máxima e, portanto, aí explode de alegria. Há um fenómeno que é engraçado a atriz, a Carla Andrino, ela também teve cancro de mama há uns anos, e quando falávamos sobre isto, ela dizia-me: ‘eu não sei porquê, mas eu senti-me durante o processo de tratamentos, poderosa. Eu estava empoderada”, revive.
Alívio e banho de água fria
Foi exatamente o que sentiu Cristina Pereirinha quando o cancro da mama entrou em remissão, um ano e meio depois de descoberto. “Um grande alívio. Já está, acabou, acabou. Eu saí completamente com esta noção de que fiz tudo o que tinha a fazer. Retirei os dois peitos, fiz a reconstrução, retirei todos os nódulos que tinha. Estou limpinha”, afirma.
Seguiram-se muitas viagens, nova voragem de viver. Sem desperdiçar um minuto. Surge a revista Onco Glam que criou com a amiga Beatriz, para mostrar que “o cancro pode não ser bonito, mas as mulheres com cancro podem ser”. Fazia testes de três em três meses, mas convencida de que estaria tudo bem.
Até que, num desses exames, levou um “autêntico banho de água fria”. “Pensava que estava curada. Que burra. Isto não é uma gripe que se toma um antibiótico e já está. Não estou curada de maneira nenhuma. Nem nunca estarei, por isso é que eu faço estes exames”, declara.
O novo diagnóstico foi no pulmão. Foi muito pior do que a primeira vez. Uma ideia de falhanço. “Tantas pessoas estão a contar comigo, como é que isto me apareceu agora? Como é que eu vou lidar com isto agora?”, pensou.
Ainda assim, meteu pés a caminho do hospital, pronta para resolver mais este contratempo. O problema estava apenas naquele órgão. Seguiu-se uma operação. Teve sucesso. “Passada uma semana estava num congresso de oncologistas. Ninguém queria acreditar. Todos pensaram: ‘esta miúda é do caraças’”, lembra.
Mas nem tudo foram rosas. Apesar de continuar com os treinos de cycling e sentir-se fisicamente melhor, estava a chegar o Natal. “As pessoas começaram a querer ver-me, estar comigo, e tirar fotografias”, descreve.
Aquilo abanou-a. “Pensei, as pessoas querem estar comigo porque pensam que eu vou morrer”, lamenta.
Estar pronta para a luta
Cristina está disposta a lutar, apesar confessar que naquela altura ficou muito “arreliada”, “muito chateada" consigo própria. “Tinha feito tudo tão certinho que pensava que estava arrumado. Foi uma dupla rasteira”, considera.
É um sentimento muito frequente entre as pessoas mais jovens diagnosticadas com cancro, conta Fátima Vaz, diretora do serviço de Oncologia do IPO de Lisboa.
"Há pessoas que estão em fim de vida e ainda não aceitam [o que lhes aconteceu] porque fizeram tudo bem", Fátima Vaz, diretora do serviço do Oncologia do IPO de Lisboa.
“Os oncologistas do meu serviço têm essa interação muitas vezes em todos os níveis de doença. As pessoas chegam lá e dizem: ‘Eu tenho 35 anos, fiz tudo bem. Eu não tomei a pílula porque achava que me podia fazer mal, faço exercício, tenho um peso adequado, tenho uma dieta adequadas, fiz as vacinas todas”, descreve.
Os doentes, segundo Fátima Vaz, atribuem a culpa quase sempre à possibilidade de uma alteração genética. Mas, “às vezes, a genética também não explica”, contrapõe.
A revolta é tão grande que, segundo a diretora do serviço de Oncologia do IPO de Lisboa, “há pessoas que estão em fim de vida e ainda não aceitam [o que lhes aconteceu] porque fizeram tudo bem”.
A médica considera que faz “parte do nosso papel levar as pessoas a aceitar, para que eles não entrem nessa roleta russa de: ‘então eu fiz tudo bem, agora quero lá saber’”.
Fátima Vaz diz que é importante explicar que se fez tudo bem “ainda bem”, porque é isso que permite que os tratamentos possam , possivelmente, ser mais eficazes.
“Se não fizessem tudo bem, não podíamos tratar o seu cancro convenientemente. Isto é a grande questão. As pessoas que não fizeram promoção da saúde, o cancro não se trata como deve ser, não podem fazer os tratamentos todos”, diz.
E depois, claro, a “ciência não explica tudo”. “Há coisas que nós ainda não conseguimos explicar. Estamos todos a aprender”, explica.
Cristina depois da surpresa, no aparecimento do cancro na mama, e da desilusão, que as metástases no pulmão geraram, chegou ao que a empresária chama “de uma nova fase”.
A vida entrou “num novo normal” de que a intervenção cirúrgica que está a ser sujeita esta sexta-feira faz parte. Uma nova recidiva no cérebro obriga-a a outro combate. Sabe que tem uma doença crónica, com muitos níveis para ultrapassar e vencer. Não controla todos os fatores. Mas os que pode influenciar, garante que dará tudo para melhorar.
“Quero preparar o meu corpo, a minha mente para estas coisas. Eu quero tornar-me cada vez mais forte, com exercício, com alimentação, com o meu estilo de vida, com a minha parte psicológica resolvida. Estes embates fortes são muito fortes a nível físico, mas são ainda mais fortes a nível emocional. E eu não quero estar fragilizada”, remata.