A nova comissária europeia da Coesão e Reformas, a portuguesa Elisa Ferreira, tem meios e “muitos milhões” para apostar na ciência. A ideia foi defendida em declarações à Renascença por Carlos Moedas, o comissário europeu cessante da Investigação, Ciência e Inovação.
Que diferenças encontra entre a primeira e esta última Web Summit que visita como comissário europeu?
Aquilo que vamos vendo - e vimos ontem com a entrevista a Edward Snowden - é uma preocupação cada vez maior com os dados e com a forma como vão ser utilizados. Os dados são a matéria-prima do futuro da inovação e da tecnologia. Até agora o que tinha visto na Web Summit é [um debate] como vamos criar novas tecnologias para resolver problemas futuros.
Este ano fala-se muito mais naquilo que é a matéria-prima dessa tecnologia, que são os dados. Podemos ter a melhor tecnologia do mundo, mas se não a alimentarmos com dados que sejam bons e que representem a sociedade no seu todo, não podemos resolver os problemas do futuro.
Mas Snowden prefere falar sobre quem tem o controlo em vez da proteção dos dados.
Gostei bastante de ouvir Snowden. Obviamente é algo que vem de uma pessoa que está a passar por momentos muito difíceis, mas que o diz com um sentido de uma realidade. Ele diz que a Europa deu um grande passo, um primeiro passo, com a nova regulamentação dos dados. Ele diz bem daquilo que está a fazer bem na Europa, que não é um problema de proteger os dados, mas de como recolhemos esses dados.
O regulamento de proteção de dados que criámos é exatamente sobre essa coleta também de dados. Ou seja, aquilo que o regulamento europeu hoje diz é que os dados são da pessoa, fazem parte da dignidade humana. E é a pessoa que deve decidir o que fazer ou não sobre esses dados. É interessante ver hoje como pessoas como Edward Snowden reconhecem isto. Mas também Bill Gates e a Microsoft ou Tim Cook e a Apple e outros grandes gigantes da tecnologia também reconhecem isso à União Europeia.
Mas não trava o receio das pessoas em relação aos dados e o que se faz com os dados das pessoas.
Não trava. Mas é muito diferente face ao que tínhamos há cinco anos. As pessoas nem sequer se apercebiam disso. Há cinco ou seis anos, quando a Comissão Europeia começou a falar sobre a regulamentação de proteção de dados, as pessoas diziam: "lá estão estes malucos da Europa agora a querer mais legislação". Fomos muito criticados. Na altura as pessoas nem sequer reconheciam que isso era um problema. A Europa foi o primeiro sítio no mundo que foi capaz de reconhecer politicamente que isto é um problema e que nós tínhamos que fazer algo sobre isto. Obviamente que esta regulamentação é um primeiro passo. Não resolve tudo.
E o passo seguinte está identificado?
Não. Vamos ter que receber o "feedback" de toda a Europa sobre a utilização desta regulamentação, para depois a atualizar no futuro e ver se ela funciona ou não. É uma regulamentação para todos os países mas, por exemplo, as diferentes entidades de proteção de dados têm interpretações diferentes. Vamos ter que criar uma homogeneidade e proteger as pessoas de uma forma melhor, com proteção que seja a mesma em toda a Europa.
Por exemplo, na ciência, temos que ter maneiras - e eu propus isso - de dar liberdade aos cientistas para utilizar os dados. Senão não temos ciência. Aí temos que ter acesso aos dados e não podemos estar a pedir consentimento a cada pessoa. Imagine que estamos a estudar uma doença como Parkinson. Temos dados que vêm de dados de muitas pessoas num país e de repente queremos usar esses dados para estudar o Alzheimer. Segundo a regulação de proteção de dados, teríamos que ir pedir licença a essas pessoas. Muitas dessas pessoas infelizmente já cá não estão. Aí temos uma exceção e congratulo-me para que isso assim fosse.
Sai desta última Web Summit como comissário europeu com assinatura de um acordo de investimento para ‘startups’. O que Portugal ganha com isto?
Ganhamos muito em ser um país em que tivemos nos últimos anos a capacidade de atrair muitos jovens, os melhores de uma geração para criar empresas para investir, para estar na área do empreendedorismo e da criação de empresas. O mundo mudou. O mundo do trabalho mudou de tal ordem que hoje esta juventude vai criar os seus próprios postos de trabalho e novas empresas é realmente o futuro.
O futuro será feito muito mais de pequenas e médias empresas do que grandes empresas. Vemos isso na Europa de uma forma muito clara. Nós ajudamos este caminho que Portugal tem feito através da assinatura destes 30 milhões de euros para um gestor de investimentos portugueses - o quarto que investimos em Portugal - que vai ele próprio investir em PMEs, ideias e pessoas. Acho isso extraordinário.
Quando acabei o meu curso de engenharia, nos anos 90, aquilo que pensávamos era arranjar um emprego e trabalhar numa grande empresa. Hoje estes jovens que saem do Técnico onde eu estudei querem sair para fazer a própria empresa. Isso é uma mudança radical nas mentalidades do país que começou há 10 anos. Chegámos a um patamar que é comparável com os melhores países da Europa.
Desde que a Web Summit veio para Portugal que se fala na importância da conferência para Portugal. Se ela saísse amanhã de Portugal, haveria um grande impacto?
Não sei. A questão não é qual seria o impacto. Nunca saberemos qual seria o impacto negativo. Penso que a capacidade de ter um evento em Portugal que traz 70 mil pessoas de todo o mundo durante uma semana, só pode ser muito bom para o país. Se não tivéssemos a Web Summit teríamos outro tipo de eventos. Portugal é criativo e temos muitos eventos diferentes que também são muito importantes.
Lisboa é uma cidade onde há muitas conferências e mini Web Summits. Agora a Web Summit tem uma dimensão extraordinária e ter isto em Portugal tem um valor muito grande. Orgulho-me porque foi quando estávamos no Governo que conseguimos ir buscar esta ideia para Portugal.
Deixando esta pasta na Comissão, tendo em conta a aposta de Portugal, está descansado em relação ao essencial deste percurso? Vai ser garantido daqui para a frente com outro comissário?
Tive a sorte de estar num momento em que pude desenhar o futuro. Ou seja, deixei a proposta de 100 mil milhões para o meu programa europeu de ciência. Deixei o desenho, a articulação e a arquitetura desse programa, com a criação de um novo Conselho Europeu para a Inovação, que praticamente não existia quando cheguei em 2014. A capacidade de investir em ciência é fundamental. O desenho e arquitetura do futuro, fui eu que o desenhei, com a minha equipa, Comissão Europeia e com a ajuda de vários ministros. Isso ficou. Quem me vem substituir vai viver com isso. Espero que bem e contente por lhe deixar todo este programa.
Isto vai ligar-se de alguma maneira com a pasta de Coesão que Elisa Ferreira vai protagonizar?
Sim, sem dúvida. O programa Horizonte 2020 era de 80 mil milhões que eu fiz a proposta de chegar a 100 mil milhões. A pasta da Coesão também tem muitos milhões. Aliás, a Comissão Europeia tem também 80 mil milhões para infraestrutura na área da inovação e da ciência. Temos aqui a Coesão a criar infraestrutura e depois o programa de Ciência conseguirá financiar programas de ciência. Para fazer ciência precisamos de laboratórios. A Coesão constrói laboratórios e o meu programa dá a capacidade de os investigadores fazerem ciência. Eles estão completamente interligados.