Caso TAP/Alexandra Reis pode envolver crimes de gestão danosa, abuso de poder e falsificação de documento
07-01-2023 - 12:00
 • Marina Pimentel

É o que defendem os especialistas ouvidos pela Renascença. Luís Fábrica, especialista em Direito Administrativo, considera ainda que os ministros com tutela sobre a TAP incorreram “numa omissão grave dos seus deveres”, no caso da ex-secretária de Estado Alexandra Reis.

Estão duas investigações em curso, uma do Ministério Público e outra da Inspeção Geral das Atividades Económicas, mas especialistas ouvidos pelo programa Em Nome da Lei da Renascença não têm dúvidas: o acordo para a saída de Alexandre Reis da administração da TAP é ilegal.

Entre os atropelos à lei, que responsabilizam não só a presidente da companhia portuguesa mas também o ministro das Finanças e o ex-ministro das Infraestruturas, está o facto de Alexandra Reis nunca ter assinado o contrato de gestão, o que significa que juridicamente já nem era administradora quando foi despedida. Em todo este caso, que deu origem à saída do Governo de Pedro Nuno Santos, podem estar em causa crimes de gestão danosa, abuso de poder e falsificação de documento.

O especialista em Direito Administrativo Luís Fábrica considera que os ministros com tutela sobre a TAP incorreram “numa omissão grave dos seus deveres”, no caso da ex-secretária de Estado Alexandra Reis. O advogado considera que a falha é especialmente grave no caso de Fernando Medina porque “a tutela sobre o setor empresarial do Estado pertence em primeira linha ao ministro das finanças e complementarmente, segundo a lei, ao ministro setorial. E tutela significa controlo e controlo significa fiscalização. Não é admissível que os ministros digam que não sabiam porque as entidades de tutela existem exatamente para saber.”

Luís Fábrica explica que em Direito Administrativo “é proibido tudo o que não é permitido”. Entende por isso que “não há qualquer lacuna na lei" que justifique o recurso ao Código das Sociedades Comerciais, como fez a administração da TAP, para dar um indemnização de meio milhão de euros à administradora que queria destituir. “A saída negociada com valores de indemnização acordados pelas partes não está no Estatuto do Gestor Público porque o legislador não quis”, defende.

”A lei prevê que a cessação do vínculo ocorra apenas por dissolução do órgão colegial e, em termos individuais, por renúncia ou por demissão. Ponto final.”

O especialista em Direito Administrativo acrescenta que, ao contrário do que chegou a ser dito, não há nada no Estatuto da TAP que excecione a forma de saída dos administradores das regras previstas no Estatuto do Gestor Público. Explica que se tivesse sido aplicada a legislação que era devida, Alexandra Reis teria direito a receber ainda assim uma indemnização, mas de cerca de metade do valor. E ao ir para outra empresa pública, no espaço de 12 meses, como aconteceu ao assumir a presidência da NAV, teria que devolver parte do meio milhão recebido.

"A indemnização não pode ir além do vencimento dos 12 meses equivalentes ao rendimento base que receberia se o contrato tivesse sido executado até ao fim. E depois, por outro lado, se houver uma aceitação posterior nos sectores público administrativo ou empresarial, como aconteceu, há lugar a um acerto de contas”. A indemnização é reduzida ao valor da diferença entre o vencimento como gestor do lugar de origem à data da cessação de funções e o novo vencimento, devendo o remanescente ser devolvido.

Portugueses vão pagar mais de meio milhão

Outro dos participantes no debate adverte que a indemnização a Alexandra Reis não vai custar aos portugueses meio milhão de euros, mas sim bastante mais. O advogado Garcia Pereira fez as contas e afirma que a verba vai rondar os 800 mil euros.

"Tudo o que sejam créditos laborais estão sujeitos à taxa social única patronal. Portanto essa, de 23,75 % sobre as remunerações, que entraram também no acordo, têm de ser pagas. E depois, tratando-se de uma indemnização paga a um gestor por uma empresa que averba prejuízos ela está em meu entender, de acordo com o código do IRC, sujeita a tributação autónoma, na modesta percentagem de 45 por cento .Nós portanto estamos aqui a falar de mais 300 mil a somar aos 500 mil do valor da indemnização”.

Garcia Pereira não tem a menor dúvida da ilegalidade do acordo feito pela TAP com a ex-secretária de Estado do Tesouro. O especialista em Direito do Trabalho afirma: “Foi pura e simplesmente um golpe para simular a tal renúncia, quando verdadeiramente do que se tratou foi de um acordo. Depois assistimos à criação de uma figura sui generis, quando a mentira é apanhada, que foi, bom, foi uma renúncia por iniciativa negocial da TAP!”

A mentira foi detetada pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) que obrigou a presidente executiva da TAP a repor a verdade; ou seja a reconhecer que a administradora foi demitida e não renunciou. Garcia Pereira só encontra por isso uma explicação para o facto de Christine Ourmières-Widener, CEO da TAP, se manter em funções.

"Uma presidente que primeiro fica calada como um rato e depois mente ao regulador e que é obrigada agora a fazer um esclarecimento, julgo que se acontecesse a qualquer um dos nós morríamos de vergonha. E no entanto está de pedra e cal na administração. E esse é um aspeto que deve preocupar os portugueses."

"Porque é que alguém que se comporta desta forma, sente que está de pedra e cal", adianta Garcia Pereira. "E essa pergunta quanto a mim só tem uma explicação e é política. Ela tem a confiança pelo menos ao nível do Primeiro-Ministro se não fez mesmo parte do acordo com Bruxelas par a Comissão Europeia aprovar o plano de reestruturação da TAP.”

Juridicamente nem era administradora

No rol de ilegalidades cometidas pela tutela e pela administração da TAP está o facto de nunca terem assinado com Alexandra Reis o obrigatório contrato de gestão, alerta o professor de Direito Administrativo Luís Fábrica.

”O contrato de gestão tem de ser assinado até três meses depois da entrada em funções do gestor público entre os ministros da tutela e o gestor público. Ora a lei diz que se não for celebrado dentro desse prazo, que foi o caso, é nulo o respetivo ato de nomeação .Ora bem, eu não sei se tecnicamente o nome de nulidade está bem colocado a mim parece-me mais uma situação de caducidade. De qualquer forma, o que a lei diz de uma forma muito clara é que passados três meses, ela já não é administradora."

A procuradora geral adjunta jubilada Cândida Almeida sublinha que, “estando a empresa em declarada situação económica difícil, teria sempre de ser assinado um contrato de gestão”. A antiga diretora do DCIAP diz que há tantas contradições no caso que a decisão da PGR só poderia ser abrir um inquérito à legalidade do acordo da TAP com Alexandra Reis.

”Há uma série de contradições que levam à suspeita fundamentada de que algo não está bem. E daí naturalmente a Procuradoria-Geral da República teria de instaurar um inquérito, e assim o fez, para averiguar todos estes pormenores e, sobretudo, como os factos não são conhecidos, uns são intuídos e outros são especulações, ter-se-á de saber que contrato é que a senhora assinou, quando é que entrou, quando é que saiu, quais são as especificidades do contrato…”

Acordo pode ser nulo e acarretar responsabilidade criminal

Se a Inspeção Geral das Atividades Económicas ou o Ministério Público (MP) concluírem que há ilegalidades, o acordo de saída da TAP de Alexandra Reis é nulo. E pode haver responsabilidade criminal por parte da administração da empresa de bandeira portuguesa.

Cândida Almeida fala em eventuais crimes de gestão danosa e abuso de poder. Já o advogado penalista Paulo Sá e Cunha admite que, "num caso com os contornos deste, poderá haver também crime de falsificação de documentos e fraude fiscal".

O recém eleito presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados mostra-se “surpreendido” com o facto de haver cláusulas de confidencialidade no acordo que foi feito entre a TAP e Alexandra Reis, porque está em causa uma empresa onde o Estado já investiu mais de 3 mil milhões de euros.

“Um valor tão elevado exige critérios de transparência na gestão dos dinheiros públicos”, defende. Sá e Cunha lamenta que a opacidade continue quando o MP submete o inquérito a segredo de Justiça.

”Há muitos inquéritos de casos que a seu tempo também causaram um escândalo público grande que nós hoje ainda não sabemos que destino é que tiveram. Se já foram concluídos, se não foram, se os arguidos foram acusados ou não... Enfim, há uma certa opacidade da ação penal que também era bom que fosse alterada. Desde 2007 o Processo Penal passou a ser em regra público.”

O penalista Paulo Sá e Cunha admite também que o facto de a presidente da TAP ter dado informações erradas à CMVM “pode configurar, em determinadas circunstâncias, um crime de falsificação de documento”.

São declarações que podem ser ouvidas no programa Em Nome da Lei, da jornalista Marina Pimentel, que é emitido aos sábados ao meio-dia na Renascença e que pode ser ouvido em qualquer altura nas habituais plataformas de podcast.