Os juízes cansaram-se. Não apenas uns dos outros, o que muito bem se compreende, mas dos políticos que. de forma hipócrita e ciclicamente. lhes imputam o “ónus da prova” da total ineficácia legislativa na luta contra a corrupção. Assim, numa original interpretação da separação de poderes, resolveram colocar os parlamentares entre a espada e a parede.
Desta vez, levando à exaustão o estado a que isto chegou, provaram aos deputados que, querendo mesmo lutar contra o fenómeno dos subornos, tráfico de influências e troca de favores, não é preciso fazer nada de especial a não ser usar a dose certa de bom senso, evitando o lento corroer do Estado Democrático. Tudo sem atropelar a Constituição, de forma simples, eficaz e sem mais delongas.
A proposta de lei “sugerida” pela Associação Sindical de Juízes Portugueses, que visa combater o enriquecimento ilícito ou injustificado e que, no fundo, se resume a impedir “a ocultação de riqueza” por políticos e titulares de cargos públicos, acaba por dar resposta ao repto lançado pelo Presidente da República que, pela enésima vez, pediu, por estes dias, “rapidez ao legislador” de forma a tornar viável e eficaz o combate ao enriquecimento injustificado.
Marcelo, convém lembrar, é também o supremo magistrado da Nação pelo que, nestas matérias, não se pode subestimar a sua palavra.
Jorge Lacão, que deveria presidir à comissão de transparência e estatuto do deputado (entidade recém-criada, mas sem sair do papel), em artigo de opinião no Público, pronunciou-se já favoravelmente ao contributo da ASJP inserindo-o “no paradigma constitucionalmente correto e já adotado pelo legislador (…) com aspetos que podem representar um aperfeiçoamento dos propósitos já consignados na lei”.
É caso para perguntar: se a solução é aparentemente tão óbvia (pôr os titulares de cargos públicos a declarar além dos seus rendimentos iniciais e finais os movimentos de compras ou acréscimos patrimoniais superiores a 30 mil euros, obtidos durante o tempo de permanência no cargo) porque ninguém se lembrou, até aqui, de tal solução?
Vale a pena recordar que desde 1998, ainda com o chamado caso da “Junta Autónoma das Estadas”, a questão da corrupção e da sua luta foi uma das guerras que o então ministro João Cravinho (pai) nunca deixou de colocar sobre a mesa, sempre sem sucesso, provando que pelo menos o lobby do Centrão dos interesses era, nesta e noutras matérias, uma fortaleza inexpugnável. Combatia-se aqui, ressurgia mais sofisticada além. Caía um bastião e logo ressurgia outro. Sem inocentes. Os partidos (mais uns, menos outros!) acabaram sempre a refletir a conivência de uma sociedade cínica e cúmplice.
Seja como for, a sugestão tem o mérito não apenas de evitar a via do “enriquecimento ilícito”, três vezes chumbada pelo Tribunal Constitucional, as duas últimas já em 2015 e em resposta às dúvidas suscitadas pelo então presidente Cavaco Silva.
Na última vez, em 27 de julho, o chumbo foi mesmo por unanimidade, mostrando que a inversão do ónus da prova, em que o visado tivesse a obrigação de provar como os seus meios de enriquecimento não provinham de nenhuma atividade criminosa, nunca passaria no atual quadro constitucional. O Ministério Público teria sempre de primeiro, apresentar prova de uma qualquer fundada suspeita da sua proveniência ilícita.
E se esta visão “hipergarantista” tem vindo a bloquear praticamente qualquer legislação que vise combater a corrupção, tornando-o virtualmente não só um crime que compensa como o crime perfeito, a verdade é que o tema surge mais uma vez a reboque de “um caso”, a operação marquês, onde a leitura televisionada do despacho de pronúncia deixou em estado de incredulidade boa parte do país.
A parte que resistiu ao argumentário de Ivo Rosa e ao silêncio de Lucília Gago, que viu os membros do Ministério Público classificados de incompetentes para baixo, uma espécie de idiotas úteis de uma enorme cabala persecutória do arguido José Sócrates, acabou, também ela, em estado de choque perante a entrevista “de previsível defesa” dada pelo próprio arguido à televisão. Ironia suprema: exatamente à TVI que ele é acusado de ter tentado silenciar.
Uma entrevista onde o próprio parece, não apenas fora de si, mas sobretudo num estado de negação da realidade mais comezinha da vida de um cidadão comum. A presunção de inocência, que o aparato mediático do caso já molestara gravemente, tornou-se desta vez num autêntico julgamento popular, já não do antigo primeiro-ministro, mas da própria Justiça.
Com todo um país a não confiar num pilar essencial do Estado de direito, tornou-se imperioso recuperar a honra do convento. Desta vez, pelo menos os partidos do PS ao PSD, passando pelo prudente PCP que, embora contra “legislar a quente”, admitiu pela voz de António Filipe em declarações recentes a proposta da ASJP como “bastante válida”. Somou-se-lhe o Bloco e o próprio Chega.
Nem sempre legislar a quente será mau se, com isso, se criarem as condições para travar a vaga populista que vê no descrédito da Justiça, um excelente cavalo de Tróia para minar o regime. Subscrevo inteiramente o sobressalto cívico de Lobo Xavier quando se arrepia por ver uma manifestação frente ao Tribunal Constitucional “exigindo” que revalide a criação de um partido. Que fique claro, não defendo a ilegalização do Chega que me pareceria um disparate sem nome (a estabilidade democrática deve-se em grande parte ao bom senso da não ilegalização do PCP nos anos de brasa da Revolução!), mas “cercos” a tribunais e manifestações exaltadas em pressão sobre os mesmos fazem lembrar esses anos em que felizmente o povo foi, antes do mais e apesar de tudo, “sereno”. Uma serenidade que hoje não existe e precisamos recuperar rapidamente.