O que se sabe sobre a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja?
12-01-2022 - 07:42
 • Ana Catarina André

Qual o âmbito de intervenção deste grupo de trabalho? Que método de investigação irá usar? Que meios podem ser usados para denúncia?

A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, criada pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), começou esta terça-feira a receber denúncias de vítimas, de casos ocorridos desde 1950, que podem ser remetidos às autoridades e investigados se os crimes ainda não tiverem prescrito.

No final dos seus trabalhos, a comissão vai elaborar um relatório, a ser entregue à CEP, que decidirá que ações tomar.

Com que finalidade foi criada esta Comissão Independente?

A comissão pretende “dar voz ao silêncio” de todos os que foram vítimas de abusos sexuais na infância e adolescência por parte de membros da Igreja. Foi criada na sequência de uma decisão da Conferência Episcopal Portugal, mas afirma-se como estrutura autónoma e independente. Surge na sequência de investigações semelhantes realizadas noutros países, como França, Estados Unidos ou Irlanda.

Ao longo deste ano, a comissão pretende recolher testemunhos, para um estudo que não procederá a reparações financeiras nem judiciais, mas pode dar como reparação às vítimas o quebrar de um silêncio e de um sofrimento pessoal, disse o coordenador da comissão, o pedopsiquiatra Pedro Strecht. “Ter alguém com quem falar” pode ser “absolutamente marcante” na “viragem das suas vidas emocionais”.

A socióloga Ana Nunes de Almeida, membro deste grupo de trabalho, adiantou ainda que o estudo procurará quantificar o número de crianças vítimas de abuso sexual no seio da Igreja e perceber quais as características dos abusos, os perfis das vítimas e perfis dos abusadores. “Queremos conhecer a realidade dos abusos sexuais contra crianças e adolescentes, considerando a faixa etária entre os 0 e os 18 anos, praticados por membros da igreja católica portuguesa ou por leigos que estão envolvidos nas suas várias vertentes de atuação e intervenção: paroquial, educativa, escolar, familiar, terapêutica”, frisou.

Quando haverá conclusões?

A comissão prevê apresentar um relatório com as conclusões da investigação até 31 dezembro de 2022.

Quem faz parte da comissão?

A constituição da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa foi anunciada em dezembro de 2021. Além do pedopsiquiatra Pedro Strecht, fazem parte deste grupo de trabalho o psiquiatra Daniel Sampaio, o juiz conselheiro e antigo ministro da justiça Laborinho Lúcio, a socióloga Ana Nunes de Almeida, a assistente social e terapeuta familiar Filipa Tavares, e ainda a cineasta Catarina Vasconcelos. Na conferência de imprensa desta segunda-feira, 10 de janeiro, Pedro Strecht adiantou que, entretanto, se juntaram à equipa mais dois elementos: um da área da psicologia clínica e outra da comunicação. A seu tempo, e consoante as necessidades, a comissão contará com mais recursos humanos.

Quais são os meios que as vítimas podem usar para denúncia?

A comissão disponibiliza cinco formas de atendimento. As vítimas podem aceder ao site darvozaosilencio.org e preencher o inquérito online ali disponível; mandar um email para geral@darvozaosilencio.org; enviar uma carta por correio para um apartado que “será brevemente divulgado” ou telefonar para o 917110000, todos os dias úteis das 10h00 às 20h00. Como sublinhou a terapeuta Filipa Tavares, “não se trata de uma linha de apoio clínico, mas um meio para receção de testemunhos de quem não possa fazê-lo online”.

Será ainda possível agendar entrevistas com profissionais especializados e que podem decorrer através das plataformas digitais ou presencialmente.

“A comissão irá procurar validar estes testemunhos em sigilo profissional, fazendo-o através de diversas formas, para que cada qual, sem medo ou vergonha, tenha um espaço de referência onde se sinta confortável para poder falar”, disse Pedro Strecht, na conferência de imprensa desta segunda-feira.

Quantos testemunhos a comissão já recebeu?

No primeiro dia de recolha de denúncias, foram validados cerca de 50 testemunhos, adiantou à Lusa Pedro Strecht. O coordenador da comissão disse ainda que “a linha de atendimento telefónico esteve quase sempre preenchida”.

Que período abrange o estudo?

Inicialmente a comissão não tinha anunciado um hiato temporal em que decorriam as investigações, mas esta segunda-feira a socióloga Ana Nunes de Almeida clarificou que o grupo de trabalho irá receber testemunhos de situações ocorridas entre 1950 e 2022.

Que método de investigação será usado pelos especialistas?

A comissão irá pesquisar em jornais, revistas e bases de dados de entidades como a CPCJ, APAV, Procuradoria-Geral da República, Instituto de Apoio à Criança, mas também hospitais e centros de saúde. Será, ainda, feita uma análise aos arquivos da Igreja, quer seja documentação das comissões diocesanas de proteção de menores, quer seja “arquivos históricos das dioceses onde se encontram processos de denúncia”. O núcleo duro do trabalho – frisou Ana Nunes de Almeida – será “dar a palavra às vítimas através de métodos de inquirição científicos”. A socióloga disse, ainda, que o estudo fará também uma contextualização dos casos, atendendo ao período que o estudo abrange.

A comissão vai investigar todos os casos que surgirem?

A comissão irá investigar casos que envolvam crianças e que tenham ocorrido no seio da Igreja entre 1950 e 2022. Pessoas vulneráveis não serão contempladas, tal como casos que ocorram noutros contextos que não o da Igreja. Pedro Strecht sublinhou que este organismo foi criado “para estar ao lado das pessoas, tem disponibilidade total para as escutar, a seu tempo e com tempo”.

As denúncias serão encaminhadas para as autoridades?

Todos os testemunhos recebidos que possam ser enquadrados como denúncias de crimes ainda não prescritos serão “imediatamente encaminhados” para as autoridades competentes, explicou o membro da comissão Álvaro Laborinho Lúcio, juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça e ex-ministro da Justiça.

“Nós vamos distinguir claramente denúncias de testemunhos. As denúncias não as vamos trabalhar. Tudo o que seja revelação da prática de um crime que ainda está dentro do prazo de investigação, será enviado para as instâncias competentes”, disse o juiz conselheiro, referindo que estão já estabelecidos canais de comunicação com as hierarquias superiores da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Judiciária.

Como será financiado o estudo?

O financiamento dos trabalhos será assegurado pela Conferência Episcopal Portuguesa, mas a comissão está aberta a eventuais contribuições de outras instituições, disse Pedro Strecht, logo na sessão de apresentação da comissão, em dezembro passado.


Leia aqui a entrevista a Pedro Strecht.