O fantasma que mais assombrava a ambição de Hillary Clinton se tornar presidente dos Estados Unidos dissipou-se esta terça-feira quando o FBI anunciou que não deverá haver acusação criminal no caso da utilização de servidores privados para os seus emails durante os anos em que liderou o Departamento de Estado.
Três dias depois de ter ido depor no inquérito que decorria há cerca de dois anos, Hillary deverá ter respirado de alívio ao ouvir o director do FBI recomendar aos procuradores que não deve ser deduzida acusação criminal por não haver “provas claras de que houve intenção de violar a lei”.
Esta foi seguramente a melhor notícia que Clinton poderia ter tido, embora a comunicação do FBI esteja longe de ilibar a candidata de responsabilidades de outra ordem que a deixam bastante vulnerável politicamente.
No entanto, por muito incómodas que sejam as considerações do FBI, elas são um mal menor perante a hipótese de uma acusação criminal a quatro meses das eleições presidenciais, que poderia só por si pôr em xeque a própria candidatura à Casa Branca.
Do ponto de vista jurídico, em princípio, o assunto morre aqui. E dizemos em princípio porque o FBI, enquanto polícia de investigação apenas pode recomendar que não haja acusação, não pode encerrar o inquérito, algo que compete apenas aos procuradores que funcionam no âmbito do Ministério da Justiça. A eles e só a eles compete a decisão final de encerrar o caso ou deduzir acusação, contrariando a recomendação do FBI.
No entanto, segundo juristas americanos citados pelos media, tal probabilidade é quase nula. O director do FBI salientou que não há precedentes deste tipo que tenham acabado em acusação criminal e disse mesmo que nenhum “procurador razoável” acusará Clinton. Nem é crível que James Comey viesse a público dar pormenores sobre a decisão do seu departamento – atitude muito rara, registe-se – sem ter uma grande dose de certeza sobre a convergência de avaliação do caso com a procuradoria.
“Extremamente negligente”
Do ponto de vista político, porém, o caso dará ainda muito que falar, sobretudo porque as declarações de Comey são altamente comprometedoras para Hillary Clinton. Embora não tenha encontrado provas de que houve intenção de violar a lei, o FBI encontrou provas de que os emails circularam de forma “extremamente negligente” e que Clinton deveria saber que um sistema desprotegido não é o modo adequado de conduzir os assuntos de Estado.
Um sistema que foi usado mesmo quando Hillary esteve em “territórios hostis” e por isso, apesar de não ter provas, o FBI admite como possível que “actores (países) hostis tenham tido acesso” à sua conta de email. Uma hipótese não descartada por especialistas, que sublinham a capacidade de alguns governos hostis em penetrar em redes informáticas nos EUA sem deixar qualquer rasto.
Se o conseguiram, terão tido acesso a informação sensível, já que o FBI encontrou, entre os 30 mil emails em causa, 110 com informação confidencial, oito dos quais ‘top secret’. Esta descoberta contraria o argumento de Hillary segundo o qual nunca terá trocado emails confidenciais ou considerados como tal quando os escreveu ou recebeu.
O FBI teve ainda acesso a milhares de emails que tinham sido apagados e que considerou relacionados com o trabalho. Mas disse não ter encontrado qualquer prova de tentativa de esconder esse material.
“Acreditamos que a nossa investigação foi suficiente para nos dar uma confiança razoável de que não houve qualquer intenção de má conduta no esforço de seleccionar os emails”, sublinhou.
As várias afirmações de James Comey apontam para negligência grosseira, mas não para dolo. Pelo menos, o FBI garante não ter provas de que houve intenção de violar a lei, nem de subtrair elementos à investigação, e esta conclusão estará na base da recomendação de não acusar criminalmente Hillary Clinton.
A candidata já tinha reconhecido que se tratou de um erro que não voltaria a cometer, mas a conclusão do FBI é contestada em círculos republicanos, que argumentam que Hillary não podia ignorar as regras em vigor na administração pública americana, que impedem o uso de servidores privados a qualquer funcionário.
Honestidade em causa
O seu rival na corrida à Casa Branca, Donald Trump, escreveu no twitter, logo após a comunicação do FBI, que “o sistema estava viciado”, que era “injusto” e um “mau julgamento”. Invocou ainda o caso do general David Petraeus, que foi acusado “por muito menos”, segundo Trump.
O caso Petraeus tem, porém, contornos jurídicos diversos. O general, antigo chefe do Estado-Maior das Forças Armadas americanas e antigo director da CIA, cedeu a uma jornalista com quem teve um caso amoroso informação secreta alegadamente para uma biografia sua. Quando o caso foi descoberto, Petraeus admitiu em sede de inquérito que sabia que tinha passado informação confidencial, mostrou ter consciência da ilegalidade cometida. Algo que Hillary Clinton sempre negou.
Quem também discorda da conclusão do FBI é Paul Ryan, o líder da Câmara de Representantes. O anúncio “requer uma clarificação” porque “baseado nas próprias declarações do director, parece que o estado de direito sofreu danos. Ao declinar acusar a secretária Clinton por negligência e má conduta na transmissão de informação sobre segurança nacional abre um precedente terrível”, declarou, salientando que “ninguém deve estar acima da lei”.
E, de facto, segundo as sondagens, é convicção de muitos americanos que Hillary Clinton sempre se achou acima da lei. E embora pareça ter escapado a uma acusação criminal que seria devastadora (talvez letal) para a corrida à Casa Branca, não escapará ao fogo político que daqui resulta.
Os seus adversários começaram já a questionar se alguém que comete “negligências grosseiras” deste tipo pode ser presidente. Ou se alguém que não disse a verdade sobre a confidencialidade dos emails pode ser confiável. Ou se alguém que poderá ter permitido acesso de governos hostis a informação secreta pode garantir a segurança do país. Ou se alguém que diz desconhecer regras básicas da administração pública respeitará a lei e o estado de direito.
Honestidade tem sido um dos tópicos das sondagens que dão piores resultados a Hillary. A maioria dos americanos (cerca de 55%) continua a considerá-la “desonesta” e as conclusões do FBI não ajudarão a dissipar essa convicção.
O próprio director mostrou ter consciência disso, ao dizer que sabia que as suas declarações seriam objecto de muito debate e controvérsia, mas garantiu que o FBI era alheio a interferências políticas e que o inquérito tinha sido conduzido de forma “honesta, competente e independente”. E foi mais longe, revelando que nem a Casa Branca nem o Ministério da Justiça sabiam antecipadamente o que ele iria dizer ao público.