“Quando o Pedro e eu começámos a namorar, e é uma memória que tenho muito forte e muito presente, comungámos juntos. Foi a última vez. E isso para mim é penoso.” Foi há quase três anos.
Raquel, 31 anos, e Pedro, 41, nomes fictícios, decidiram começar uma relação. Raquel trabalha numa organização não-governamental católica. Pedro é arquitecto e “faz igrejas”.
Raquel é divorciada e Pedro tem um processo de divórcio por resolver no tribunal civil. Pedro tem três filhos. Ambos decidiram pedir a nulidade dos respectivos anteriores casamentos na Igreja e deram início ao processo há poucos meses. Entretanto, vivem juntos e estão à espera de um filho.
Conheceram-se, já separados, através de amigos comuns. “Eu já tinha decidido que ia pôr a correr o processo de nulidade. Era uma coisa muito presente. O meu ex-marido não era crente e até equacionámos casar com separação de culto”, conta Raquel. Mas na altura, como para ela era importante, decidiram casar pela Igreja.
Olhando para trás, confessa que não foi fácil aceitar que o casamento pode ter sido nulo. “Demorei muito nesse processo, porque tinha feito preparação para o matrimónio e eram muito claros os termos do compromisso que estávamos a assumir.”
O pedido de nulidade surgiu como “um desejo de reposição da verdade”, sublinha. “Eu não tinha qualquer perspectiva de voltar a ter uma relação. E não estava privada da comunhão. Era a clarificação.”
“Deus não é esquizofrénico – eu fiz discernimento quando me casei, também o fiz quando me separei, não me separei em dois dias. Para um católico é, de facto um processo internamente conflituoso.”
Já Pedro, quando a conheceu, “não tinha pensado em nada”. “Sinceramente, com os três miúdos, nunca pensei que pudesse vir a juntar-me com outra pessoa. Tipo: ‘Mas quem é que vai querer alguém que venha com mais três?’”.
A decisão de se separar foi um processo longo e o grande factor foram os filhos. “Não o que era bom para mim nem para a minha ex-mulher. Se continuar juntos fosse melhor para elas, fá-lo-ia, sem dúvida.” Pedro tinha a plena noção daquilo que enfrentaria caso desse o passo de se separar.
Do “outro lado da barricada”
“Foi uma coisa que rezei muito: se for dar este passo, vai ter um impacto na Igreja. Vou passar para o outro lado da barricada”, recorda Pedro.
O preconceito existe e Raquel viveu-o “fortemente”, diz. Não no contexto profissional católico onde trabalha, nem no movimento de espiritualidade a que pertence, mas na paróquia. “É numa terra pequena onde há para aí duas pessoas divorciadas e que não comungam.”
Ainda antes de namorar com o Pedro, “era claro” que, não estando com ninguém, podia comungar “à vontade”. Mas tinha a sensação de que a olhavam como alguém que estava em incumprimento. Para Raquel, “há uma ambivalência na vivência na Igreja”. Diz que o facto de viverem uma situação irregular chega a ter implicações profissionais que nem sempre são claras.
E depois correm as conversas. “Ouço dizer que se encara a família de uma maneira muito ligeira, que agora é ‘quando as coisas estão todas fixes e assim que deixar de ser fixe separamo-nos’ ... e muitas vezes estão a meter tudo no mesmo saco”, critica Pedro. “Eu não me revejo absolutamente em nada disso. Continuo a acreditar plenamente na família.”
“Ouvem-se estas conversas e parece que a coisa foi encarada assim. Não percebem a dor que isto implica”, aponta. “Agora parece que estou atrás da nulidade para [comungar], mas não é isso. Em honestidade e em verdade, tenho 100% certeza que, de acordo com os 'cânones', com as 'regras', não houve sacramento”, afirma.
Quando se casou, diz, Pedro, “nem sequer tinha fé, não era crente, não era nada. A conversão foi posterior”. “A ironia é que, quando casei pela Igreja, excomunguei. Hoje tomaria a comunhão com muito mais presença de espírito e consciência.”
Ambos reconhecem a “razão legal” para a comunhão não ser ministrada a casais irregulares e Raquel admite dificuldade em passar do particular ao geral: “Percebo que a Igreja tenha de ser prudente”. Mas “a razão espiritual”, para Pedro, é difícil de entender.
“Tenho a certeza que não é como está a acontecer, isto não é solução. Também acho que é isso que o Papa está a querer no sínodo [dos bispos, dedicado à família]. Quem olha os olhos de Jesus, num Evangelho cheio de misericórdia, dificilmente pode andar aqui por onde tem andado.”
Apesar das complexidades da situação, os primeiros contactos com o Patriarcado, em Julho, correram bem. Foram recebidos pelo juiz do Tribunal Eclesiástico, que explicou o processo e depois falou com cada um individualmente para perceber se havia matéria para basear os pedidos de declaração de nulidade. A avaliação foi positiva e ficaram a saber que o tempo médio de um processo demora cerca de um ano e meio – e a informação que receberam chegou ainda antes das declarações do Papa.
Oito anos para declarar a nulidade
Para já é difícil prever quanto tempo demorará, mas as perspectivas para Raquel e Pedro são “animadoras”, pelo menos que toca às declarações de nulidade. Não foi o que se passou há onze anos com João (60 anos) e Rita Almeida (51).
João faz restauro. Dedicou-se aos azulejos e chegou a ter um ateliê, mas “nos últimos tempos tem havido pouco trabalho nesse sentido”. Rita é educadora de infância e tem dois filhos, de 21 e 26 anos, da união anterior. Casados pela Igreja há três anos, esperaram mais de oito pela declaração de nulidade do casamento anterior da Rita.
“O grande problema foi falta de informação ao princípio”, lembra João. “Não nos permitiu perceber porque é que as coisas levavam tempo. Penso que hoje em dia está melhor e que há mais atenção. Naquela altura as coisas pareciam um bocadinho amadoras, feitas em cima do joelho”, confessa. Relutante em criticar a instituição do Tribunal Eclesiástico, admite: “Algumas vezes não funcionou tão bem, tanto do nosso lado como do lado deles”.
Mas durante o longo processo, houve a “tentação” de desistir, reconhecem, “casar pelo civil e ir para a frente”, por vários motivos.
Quando já tinham passado quase seis anos, deram um passo que, na opinião de João, foi “mal interpretado”. “Acho que é legítimo: um tribunal deste tipo tem a vida das pessoas na mão. Usámos os conhecimentos que tínhamos no sentido de apressar as coisas. Acharam que nós queríamos influenciar o tribunal no sentido de nos darem a resposta que nós queríamos.”
A motivação para continuar foi a fé e a convicção de que o casamento da Rita era nulo. “Senti-me sempre muito acompanhada por Deus”, garante Rita. João diz ter acreditado sempre que, “apesar de todos os erros, há uma presença do Espírito Santo para além disso”.
Quando deram início ao processo, Rita ainda não tinha 40 anos: “A espera foi o que mais nos custou. Porque gostaríamos de constituir uma família e já não foi possível porque eu já não tinha idade.”
Viver separado e viver junto
“Não quisemos ter um filho antes de nos casarmos”, sublinha João. “Pensámos sempre que ia ser mais rápido, e vai-se esperando e vivendo um dia de cada vez.”
Os anos foram passando, “sempre a namorar”. Optaram por nunca viver juntos maritalmente enquanto o processo não estava concluído. “Custou um bocadinho, mas cumprimos”, admite Rita.
“Para podermos frequentar os sacramentos, tivemos de fazer opções. Nem sempre a coerência é a 100%. Há avanços e recuos, mas vivemos sempre com isso presente”, aponta o marido.
Ainda sozinha, Raquel lembra-se de equacionar a vida celibatária “para não ter de prescindir da comunhão”. Mas, com Pedro, escolheu outro caminho. “Gostávamos de casar pela Igreja, mas, para nós, estamos casados. Quando decidimos morar juntos, aí é que foi a decisão de nos casarmos”, aponta.
Para eles, não fazia “sentido nenhum” colocar a hipótese de não viverem juntos por causa do acesso à comunhão. “Se há algo errado nessa situação, não é o vivermos juntos, é o reverso da medalha. Atenção que não estamos a generalizar. Se calhar o problema também reside aí, porque as leis são gerais e são cegas, e esta justiça tem de ser tudo menos cega, mas muito ‘olhos nos olhos’”, considera Pedro.
Ambos sentem que deviam ter acesso à comunhão. “Somos pessoas muito pecadoras, mas muito comprometidas com a Igreja. E com desejo de comungar”, diz Raquel.
“Eu sinto que Cristo me chama à comunhão. É uma vocação. Sinto-me chamada e quero dar resposta.”
Existe algum consolo na comunhão espiritual? “Que o Espírito consola, consola todos os dias. E isso é que vale. Sei que há quem dê a comunhão espiritual e ainda bem que o faz. É uma solução de recurso possível para tentar integrar, mas é sempre um plano B. Se formos dizer que é a mesma coisa, estamos a desvalorizar aquilo que é a Eucaristia”, considera Pedro.
O preço de declarar nulo um casamento
Para Rita e João Almeida, o aspecto financeiro foi uma surpresa negativa. “Tivemos que recorrer a familiares para nos ajudarem, porque nós não tínhamos esse dinheiro”, admitem.
Para este casal, o custo fui bastante superior ao esperado. “A meu ver, todas as pessoas, tenham dinheiro ou não tenham, têm direito a pedir a nulidade de um casamento e a serem felizes na sua fé”, defende Rita.
Numa fase do processo, sentiram as coisas parar e nunca chegaram a perceber se foi por causa do tempo que demorou a pagar. Mas isto passou-se há vários anos.
Hoje, Raquel e Pedro dizem que a parte financeira foi uma boa surpresa. “Percebemos que é acessível, não é barato, mas o que pagamos são as custas judiciais e os advogados que nos vão depois ajudar a constituir o processo. É de uma forma faseada, se em algum momento não conseguirmos pagar, podemos pagar mais tarde.”
O que não mudou foi o inquérito inicial, que é duro para todos. “A Rita recebeu um inquérito muito pormenorizado da vivência do casamento anterior. E levou muito tempo a fazer aquilo, porque era doloroso e tinha perguntas muito minuciosas. Esteve com aquele papel em mãos quase um ano. Parecia um exame”, observa o marido.
“Não é fácil pôr num papel os mais ínfimos pormenores do casamento”, diz a Rita.
Embora nem se conheçam, Pedro concorda. “Há lá coisas que não sei porque é que são perguntadas. Vão além do que é o núcleo do problema. É me difícil e doloroso pôr aquilo tudo por escrito.”
O inquérito contempla perguntas sobre a relação anterior. Depois, a outra parte é chamada como testemunha para colaborar, ou não. “Eu não quero fazer juízos da outra parte”, sublinha Pedro.
No caso de Raquel e Pedro, as conclusões ainda estão longe. Para Rita e João, apesar da espera, é uma história com final feliz.
“Foi o meu filho que fez questão de me levar ao altar”
João Almeida casou pela primeira vez aos 57 anos. “Eu tive um bocado de medo porque já não era novo e achei que me ia meter numa grande aventura (risos) com enteados. Que não foi fácil, houve uma altura em que não me aceitaram, o que é natural.”
“Hoje em dia estão felizes”, diz Rita. “Foi o meu filho que fez questão de me levar ao altar. Foi muito bonito e comovente, porque foi perguntar ao meu pai se não se importava que fosse ele”, sorri.
“Foi uma alegria enorme. Estávamos à espera daquele momento a toda a hora, mas foi ao mesmo tempo muito natural. Mesmo a primeira pessoa que nos ouviu disse que [a nulidade] tinha ‘pés para andar’ e nós tivemos sempre essa esperança”, diz João.
A sentença saiu em Dezembro ou Janeiro e casaram em Maio. A Rita decidiu ir sem véu nem vestido comprido. “O mais importante era o sacramento e não a roupa. Mas claro que escolhi um vestido de que gostava…”. Olha para o marido.
- E era branco...por acaso, cor de miolo de amêndoa, ou assim.
- Era branco, levei um bouquet na mão, e entrei na Igreja de mão dada com o meu filho.
- Fui normalmente, de fato e gravata. Foi uma festa...
- Linda!
- Fantástica. Acho que se sentiu a presença de Deus. Há uma alegria que não é efusiva mas é de fundo. Sentia-se nas pessoas e no ambiente. E temos sentido essa presença ao longo destes três anos de casamento.
A dimensão matrimonial e a vivência dos filhos
Para os Almeida, o conceito do matrimónio mudou. “Vou dizer uma coisa um bocadinho estranha: é um casamento a três. Não é a soma de um mais um. A Rita é ela própria, eu sou eu, não há uma confusão de personalidades, mas ao mesmo tempo formamos uma realidade com uma terceira presença, a de Deus.”
“Com a minha idade, já tenho o meu feitio, a Rita tem os seus dois filhos e de vez em quando encontramo-nos perante situações difíceis de gerir. Mas sinto que o amor se vai construindo cada dia nas pequeninas coisas. E cada dia dizemos: cada vez gosto mais de ti.”
Com um percurso em tudo diferente, Raquel e Pedro também sentiram mudanças no seu conceito do matrimónio.
“Mudou quando conheci o João e me comecei a relacionar com ele. Mas não tem a ver com a declaração de nulidade. Tem a ver com relacionar-me com alguém com grande espírito missionário”, aponta Raquel. “Um crente e um não-crente podem ser muito felizes, mas de facto há uma dimensão matrimonial que só descobri quando comecei a poder rezar com a pessoa que está ao meu lado.”
“O sacramento do matrimónio. Quando me casei...Nem me lembro dessas duas palavras juntas”, admite Pedro. “Hoje, vivo e descubro coisas na nossa relação que tem muito a ver com essa dimensão espiritual. Este caminho para este destino em comum que vamos descobrindo todos os dias.”
Por agora, como pai, há um caminho difícil vivido com os filhos. “Recordo-me da primeira comunhão do meu segundo filho e de ele ter pedido para o acompanhar até lá. Ele comungou e depois perguntou-me porque é que eu não comungo.”
- Pois, não posso.
- Não podes porquê?
- Agora não te posso explicar, tens de esperar por outra altura para eu te explicar.
“E é muito difícil dizer isto a uma criança, ela não percebe. E eu entendo que ele pense, então porque é que eu vou comungar, se o meu pai não pode? Isto pastoralmente tem muito que se lhe diga.”