"Murro no Estômago" é o título do mais recente livro de Paulo Jorge Pereira sobre violência doméstica. São sete histórias de
mulheres, oito depoimentos de profissionais que “combatem este flagelo” e
trabalham na área, testemunhos reunidos num esforço para revelar a essência de um
problema que persiste, explica à
Renascença o autor do livro que, durante um ano, procurou casos e trabalhou depoimentos num projeto apoiado apela
Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV).
“Algumas mulheres têm filhos, temos também a história de uma senhora com mais idade cuja situação diz respeito a um marido que esteve na guerra colonial e voltou com stress pós-traumático e as agressões começaram aí. Há ainda o caso de uma senhora que não é portuguesa e que sofreu agressões”, revela. O autor lembra, “como diz o Daniel Cotrim da APAV, a violência doméstica é demasiado democrática, não acontece só a estratos sociais baixos e com pouca formação, infelizmente pode acontecer a todos nós”.
Na conversa com as diferentes mulheres (sublinha que não encontrou testemunhos do sexo masculino, embora essa seja também uma realidade) “continua a ser doloroso para a maioria falar do que viveram, até porque se trata de um regresso a situações dolorosas que não as envolvem só a elas mas também aos filhos, família e amigos”.
Paulo Jorge Pereira percebeu uma linha comum nos testemunhos: “ todas continuam a ter problemas de sono e recordam com facilidade o que viveram por muito que tentem ultrapassar esse momento da vida”. O autor sublinha a coragem que estas mulheres tiveram ao denunciarem as situações que estavam a viver, encarando este desafio como uma forma de mostrarem às pessoas que sofrem em silêncio que é possível mudar e melhorar a vida e “servem de exemplo para que essas mulheres venham a público denunciar as suas situações”.
Paulo Jorge Pereira admite ter detetado diferentes tipos de tratamento, em função da zona do país onde moram as mulheres . “Todas elas foram tendo contacto com autoridades ao longo do período em que foram vitimas de violência doméstica e há de tudo: casos em que foram bem acolhidas pela polícia e muito compreendidas e depois temos algumas que se queixam das autoridades e da ausência de acompanhamento”. Há pelo menos um caso, único no livro, que tem identidade verdadeira, as outras estão protegidas. É o caso de Sónia Grilo, que conseguiu dar uma volta positiva à vida, “fez um percurso incrível e invulgar que vale a pena ler no livro”.
O autor considera que “há uma série de dificuldades no terreno, embora as coisas tenham melhorado. Há muitas entidades que já se ocupam do apoio às vitimas de violência doméstica e não só, mas há ajustamentos que devem ser feitos. Por exemplo: em relação às crianças, e a forma como são apoiadas, continuam a existir problemas . Era importante tornar conexo com a violência doméstica crimes como a injúria, difamação e tentativa de homicídio. Embora a perseguição e assédio já sejam. Há toda a questão dos apoios de que necessitam as vítimas, como a educação para os filhos. São as vítimas que são deslocadas de casa, o que é errado. Isso implica todo um novo mundo de alterações desde o emprego à educação dos filhos”, recorda.
Deslocadas e muitas vezes sem qualquer rede de apoio, há uma nova dificuldade que começa a bater à porta destas mulheres, confessa Paulo Jorge Pereira. “Muitas das vítimas estão a pagar casas e se entrarem em incumprimento os bancos não querem saber, não há qualquer proteção. As vitimas vão muitas vezes parar à lista de devedores”, acrescentando que “são vitimas da violência e da sociedade, são várias vezes vítimas”.
O livro “Murro no estômago” deixa contactos de organizações a quem as vítimas podem recorrer quando precisarem e já chegou às mãos do primeiro-ministro, António Costa, e ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. “Deixo o apelo para que tomem medidas para alterar este panorama. Estamos numa situação complicada e a palavra solidariedade não pode ser vã, temos de esticar a mão para o lado e ajudar”, pede o autor.
Onze mil casos de violência e mais de 20 mortes
Recentemente foram divulgados números da PSP (entre janeiro e setembro de 2020) que apontam para 11.100 casos de violência domestica este ano (média de 40,5/dia), o que representa uma diminuição de 8,58% em relação ao período homólogo de 2019.
O número de crimes de violência doméstica participados pela PSP nos meses subsequentes aos períodos de estado de emergência acompanha os valores participados em 2019, sem registo de picos. Ao contrário da possibilidade considerada de o confinamento obrigatório poder ter contribuído para dissimular práticas de violência, o regresso à (quase) normalidade não se materializou num acréscimo de denúncias.
Diz ainda o relatório que o número de vítimas de violência doméstica com necessidade de condução e internamento em unidade hospitalar acompanha a mesma tendência fortemente descendente durante os períodos de estado de emergência, com uma diminuição média de 60% de 2019 para 2020. A PSP, na mesma janela temporal, concretizou 440 detenções pelo crime de violência doméstica (média de 1,6/dia), tendo 274 sido concretizadas em flagrante delito (média de 1/dia).
O recurso a canais alternativos de denúncia, nomeadamente o email violenciadomestica@psp.pt, conheceu especial relevância e utilização durante os períodos de estado de emergência, com 25 solicitações até 15 de julho, mais do dobro das queixas apresentadas por via eletrónica (11).
A UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta - dá conta de 22 vitimas mortais até ao dia 15 de agosto de 2020.