O provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP), António Tavares, diz que o sector social está “uma crise brutal, do ponto de vista financeiro” e afirma que “o Estado paga abaixo do preço de custo”.
Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, António Tavares alude a uma “situação muito complicada”, sem deixar de manifestar a esperança de que se consiga ultrapassar este momento de grande dificuldade, porque “têm sido 10 anos de dificuldades”, com “troika, pandemia e agora a guerra”.
Nesta entrevista, por ocasião do Dia Internacional do Idoso, numa referência ao caso registado na misericórdia de Boliqueime, o provedor da SCMP sublinha que “em instituições como as Misericórdias ou noutras quaisquer, o maltrato a idosos não é permitido, não é aceitável, não admissível”.
António Tavares defende a aposta “na prevenção e na criação de mecanismos de auditoria permanente”, ao mesmo tempo que lembra aos trabalhadores que um lar “não é uma fábrica, não é um talho onde qualquer pessoa pode estar", devendo as instituições ser "locais onde o trabalho implique envolvimento, implique permanência, implique a atenção, implique o cuidado”.
Para António Tavares, o maior crime sobre os idosos continua a ser o do abandono, sobretudo em contexto hospitalar. "É uma das novas tarefas do CEO do Serviço Nacional de Saúde", aponta, convicto de que Fernando Araújo "poderá dar um excelente contributo nesta matéria”.
“A institucionalização não é a resposta”, para os idosos. “A resposta é poder ficar em casa até ao mais tarde possível”, defende.
Sobre a pandemia de Covid-19, Tavares está convicto de que deixará "uma cicatriz, a cicatriz da solidão, do medo, do isolamento”
É tempo de alterar a forma como olhamos para os nossos idosos? Por vezes, ainda são vistos como um fardo para as famílias...
É verdade. Eu acho que hoje, infelizmente fruto das circunstâncias que estamos a viver - vivemos uma crise das dividas soberanas, depois uma crise da pandemia e agora estamos a viver esta crise motivada pela guerra - o que vemos é que aquele que era o grande sustentáculo da sociedade moderna, a família, está a viver um momento de crise.
Essa crise não deixa de ser uma crise económica, mas é também uma crise social. E os idosos, inevitavelmente, serão as maiores vítimas deste problema. E porquê? Porque são os mais indefesos, são aqueles que precisam de mais cuidados de saúde, são aqueles que têm as suas pensões extremamente reduzidas, as suas reformas com valores perfeitamente irrisórios e estão, portanto, desarmados. Desarmados quer perante o Estado quer perante a sociedade. Por isso, temos que olhar para os idosos de uma maneira diferente. Temos que olhar para o problema demográfico que Portugal tem. Precisamos de, rapidamente, renovar o nosso tecido social.
O PRR - a famosa "bazuca" - pode ser uma oportunidade importante, por exemplo, no que diz respeito ao apoio domiciliário?
O PRR, tal como acontece com qualquer fundo comunitário, é sempre muito importante. Nós, por exemplo, na Santa Casa da Misericórdia do Porto, ensaiamos um modelo novo de apoio domiciliário assente, acima de tudo, numa resposta inovadora: uma resposta que traz tecnologia. Isto é: equipamentos que estejam próximos dos idosos e que os façam sentir-se acompanhados. Que os façam sentir envolvidos na sua vida com a comunidade. Que tragam também os serviços tradicionais de apoio domiciliário.
É muito importante também que a saúde esteja com os nossos idosos e que os nossos idosos se sintam apoiados, através da ida de um enfermeiro, da ida de um médico, da ida do psicólogo. Temos estado a fazer isso nesse novo modelo de serviço de apoio domiciliário, que teve um grande sucesso. Esse sucesso passou, inclusivamente, por uma primeira fase de contratualização com as autarquias da Área Metropolitana do Porto, já que que muitos desses idosos não teriam condições financeiras para poder ter acesso a esse serviço.
O novo figurino do apoio comunitário, do apoio da União Europeia, veio ajudar a criar essas condições, porque este não é só um problema de Portugal: é um problema de toda a União Europeia. Vivemos mais tempo, temos mais esperança de vida e isso obriga a novas respostas sociais e o serviço de apoio domiciliário pode ser uma nova resposta para os cidadãos mais idosos, pode trazer valor acrescentado para eles com estas novas vertentes, onde a tecnologia ganha um papel importante.
Fruto das circunstâncias de cada família, os idosos são deixados em lares ou ERPIS - estruturas residenciais para idosos - e, pelo menos aparentemente, não se cuida devidamente do chamado envelhecimento ativo. É assim?
Concordo. Muitas vezes isso acontece porque, por exemplo, há idosos que estão hoje a viver nos hospitais, ocupam camas que acabam por ser camas sociais e saem muito caro ao Serviço Nacional de Saúde. Há, nestes casos, claramente, uma ausência de resposta. Por outro lado, as ERPIS e o tal envelhecimento ativo que falou não podem de maneira nenhuma ser a única resposta do sistema.
A institucionalização não é a resposta. A resposta é poder ficar em casa até ao mais tarde possível. É poder ficar em casa a viver o máximo possível no seu ambiente, naquilo que as pessoas gostam e conhecem bem e, ao mesmo tempo, também permitir que as pessoas possam ter alternativas a essa institucionalização. Uma das alternativas à institucionalização é o chamado "co-housing", isto é, a habitação partilhada, onde há áreas que são comuns e áreas individuais. Isto é um conceito que ainda não chegou muito a Portugal, mas que, inevitavelmente, vai-se colocar até porque as novas gerações são mais exigentes, têm mais cultura e isso leva a que o Estado e as Instituições tenham que encontrar uma nova geração de políticas sociais vocacionadas para o envelhecimento. E o envelhecimento ativo é também fazer com que estas pessoas continuem a sentir-se cidadãos e não alguém que está à espera que chegue a morte.
Falou de uma realidade muito cruel a envolver os idosos: o abandono. O abandono em casa, mas, sobretudo, o abandono em contexto hospitalar. Há notícias de que há cada vez mais idosos abandonados nos hospitais à espera de vaga em lares ou cuidados continuados. Como se combate este flagelo, sabendo-se que, por exemplo, desde o início da pandemia e até dezembro de 2020, mais de 1250 idosos foram colocados pela Segurança Social em lares porque continuam a ocupar camas de hospital por não terem para onde ir?
Exatamente por esse motivo. Ou seja, a pandemia deu o alarme e, então, o Estado arregaçou as mangas. É preciso trabalhar em rede e ver de que forma é possível a cooperação entre as instituições, a cooperação entre os vários sectores da economia social e do Estado, e isso vai ser possível agora. É uma das novas tarefas do CEO do Serviço Nacional de Saúde: é, exatamente, poder casar estas situações, poder aproximar estas pessoas e poder criar condições para que entre a Saúde e a Segurança Social haja um caminho mais estreito e que o Orçamento seja mais bem gerido, mais bem aproveitado.
O Dr. Fernando Araújo pode dar um excelente contributo nesta matéria. Conhece bem esta realidade, é alguém que tem um conhecimento desta situação e, de certeza absoluta, vai poder conciliar o papel da Saúde com o papel da Segurança Social e evitar estas situações constantes de abandono e de maus tratos que as pessoas vão sofrendo, nomeadamente aqueles que são mais incapacitantes, como idosos de elevada idade.
Um vídeo divulgado recentemente chocou a sociedade e as instituições. A União das Misericórdias fala de um caso isolado. O que se passou na Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime requer uma vigilância permanente da parte de quem dirige?
É evidente que sim. Ninguém está imune a isto. A Santa Casa da Misericórdia do Porto também foi alvo de alguma suspeição, mas, acima de tudo, tem que haver mecanismos de prevenção e mecanismos de auditoria permanente e isso só se ganha com qualidade, só se ganha com procedimentos preparados que obedeçam a certificações em termos de qualidade e a recursos humanos extremamente bem preparados.
Isto implica recursos humanos com capacidade para trabalhar o idoso, que tenham inteligência emocional e que, acima de tudo, gostem de pessoas. Isto não é uma fábrica, não é um talho onde qualquer pessoa pode estar. Não. Têm que ser locais onde o trabalho implique envolvimento, implique permanência, implique a atenção, implique o cuidado. De certeza absoluta que a provedora da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime de maneira nenhuma se aproxima daquele tipo de situações. Foi de certeza absoluta uma má prática que exige seja esclarecida, como disse o senhor Presidente da República.
Em instituições como as misericórdias ou outras quaisquer o maltrato a idosos não é permitido, não é aceitável, não é admissível. Sobre isso, o nosso comportamento deverá ser sempre de repulsa, de censura, acima de tudo para quem está nesse ato concreto e para quem atuou daquela maneira. Porque uma situação como aquela, obviamente, choca-nos a todos e isso implica que todos nós, mas absolutamente todos nós sejamos responsáveis e tenhamos uma palavra de repúdio sobre a situação.
Há que criar meios de auditoria, meios de controle, meios que envolvam entidades de certificação e entidades de qualidade. Custa dinheiro e também aí eu gostava de dizer que, muitas vezes, o Estado não é generoso com as instituições. O Estado faz um financiamento às instituições subavaliado e isso, obviamente, não permite que se encontrem depois meios para poder dar respostas a essas situações.
A União das Misericórdias está a promover um ciclo de conferências para debater os desafios que se colocam ao setor social e a 4 de outubro o destaque irá para a experiência das instituições durante a pandemia. A Covid-19 deixou muitas marcas na vida dos mais velhos e de quem cuida deles?
A Covid-19 vai, acima de tudo, deixar uma cicatriz: a cicatriz da solidão, do medo, do isolamento. Nós tivemos uma pandemia que separou pessoas, afastou netos e avós, filhos e pais, foi muito crítica. Não tenho quaisquer dúvidas: independentemente do recurso a novas tecnologias, do recurso a outras práticas, a pandemia é algo que ninguém quer lembrar.
As grandes lições foram o cuidado com as infeções, com as más práticas, isso ficou muito interiorizado. Os níveis de higiene elevaram-se bastante nas Instituições e, acima de tudo, o apoio médico e de enfermagem. O Estado hoje está mais sensível a esses custos, a essas despesas. No passado, não foi assim. O Estado era sempre mais resistente a este tipo de comparticipações e eu penso que não se perdeu tudo, ganhou-se também alguma coisa com a pandemia: ganhou-se em solidariedade, em disponibilidade, em dedicação. Isto hoje é algo que tem um impacto brutal e vamos saber ultrapassar, naturalmente, estamos a saber fazê-lo.
Persistem muitos receios por parte dos idosos, receios que fazem com que muitos ainda se mantenham muito isolados. Qual é a experiência da Santa Casa da Misericórdia do Porto?
O receio existe. Desde logo porque as pessoas têm medo de que a Covid volte no inverno, volte nos tempos mais frios. Com os problemas de racionamento de energia, esse medo aumenta. Mas a nossa experiência mostra que as pessoas continuam a acreditar no dia de amanhã, que continuam a acreditar na bondade humana, na disponibilidade das pessoas. Hoje há a convicção de que já passou o pior, que o pior já lá está, muito para trás. A próxima fase vai ser enfrentada com mais tranquilidade. Sinceramente, as pessoas só se lembram da pandemia quando têm de colocar a máscara, para estar junto dos seus familiares. Aí é que elas se lembram.
Depois da pandemia, estamos a viver um período muito marcado pela guerra na Ucrânia, a inflação... Em crises anteriores, vimos que os idosos funcionaram quase como o “último recurso” para muitas famílias. Admite que venha a acontecer o mesmo, nos próximos tempos?
Acho que não. Com as medidas que o Governo adotou, que a União Europeia está a adotar talvez isso não venha a acontecer. Não venha a acontecer como aconteceu aquando da "troika". Nessa altura, lembro-me que muitos idosos saíram dos lares e foram para casa, porque as receitas que tinham, as suas reformas eram importantes para o equilíbrio das famílias.
Penso que, neste momento, não corremos esse risco, não teremos essas dificuldades. Foram feitas políticas públicas de apoio, quer às famílias quer às instituições, e, independentemente de todos acharmos que é pouco ou não chega, poderemos estar em melhores circunstâncias do que estávamos aquando da "troika". Eu quero acreditar que esta guerra também não vai demorar muito mais tempo, que esta situação não vai demorar, mas os problemas que agora vamos enfrentar são diferentes: a inflação, a energia, a capacidade de fazermos comércio... Esses serão talvez os grandes problemas.
Em Portugal, diria, o sistema social está preparado para enfrentar esta nova fase e o Estado não se tem demitido das suas funções, os governantes têm estado em articulação direta com as Instituições. Quero acreditar que Instituições, famílias, idosos, todos juntos vamos conseguir ultrapassar esta crise e não ter situações dramáticas como tivemos por altura da "troika".
Numa altura de aumentos generalizados dos preços e, consequentemente, das despesas das famílias, várias instituições que apoiam quem mais precisa enfrentam vários desafios. Segundo o presidente da União das Misericórdias Portuguesas, um desses desafios é a própria sustentabilidade destas Instituições…
As instituições, neste momento, estão de rastos. Estão a passar uma crise brutal, do ponto de vista financeiro. A prova disso é o apoio ao gás, à energia, que o Estado definiu, de 120 milhões de euros, e uma linha de crédito, para apoiar a tesouraria, de 120 milhões, também. Não é para investimento, é à tesouraria das instituições. Isto mostra bem o estado em que elas se encontram. As instituições estão todas de rastos, porque os seus resultados são sistematicamente deficitários, desde logo porque quem nos compra o serviço, o Estado, paga abaixo do preço de custo. Quando assim é, com as exigências estatais - os pagamentos de impostos, contribuições para a Segurança Social -, a situação é muito complicada, muito difícil. Espero que se consiga ultrapassar, a curto prazo, porque têm sido 10 anos de dificuldades: "troika", pandemia e, agora, a guerra.
Falou na necessidade de investimento. No início desta conversa, recordávamos que muitas das estruturas para idosos foram pensadas para outro tipo de população. Precisam de ser adaptadas, remodeladas?
Diria que nós estamos numa primeira geração de equipamentos sociais, que foram feitos com capacidade financeira das próprias Instituições. A seguir, houve uma segunda geração, feitos com os primeiros fundos comunitários, há cerca de 30 anos. Daí para cá, há pouca coisa nova feita. Isso significa que precisamos de remodelar todo o parque existente, dando-lhe mais condições, tornando-o mais moderno, com tecnologia, equipamento, mobiliário que respondam às novas necessidades. Estes são os grandes desafios que temos, precisamos de uma nova geração de equipamentos sociais, precisamos de ter dinheiro para remodelar. O PRR não foi simpático, apenas apostou em novos equipamentos, esquecendo a necessidade de remodelar os equipamentos que existem e, acima de tudo, a necessidade de colocar novas tecnologias. Ainda temos muitos equipamentos que vêm do final do séc. XX, estão desatualizados, não têm conceitos de modernidade que são exigíveis. As novas leis da vida a isso obrigam e os nossos idosos exigem-no.
Para encerrar a nossa conversa, gostaria de voltar a falar da violência sobre os idosos. A APAV apoiou, em média, quatro idosos por dia, vítimas de crime e de violência, em 2021. Também se confronta com esta realidade nas instituições que a Santa Casa da Misericórdia do Porto dirige?
Muitas vezes, temos essas situações: pessoas que são vítimas de maus-tratos e depois vêm para a Santa Casa para ficarem protegidas, tal como acontece com as pessoas vítimas de violência, como crianças. Os cidadãos e as famílias não estão preparados para estas situações, o risco aumenta a partir do momento em que aumenta a pobreza, quando as pessoas vivem em zonas suburbanas da cidade. Muitas vezes, estes idosos estão sozinhos, são vítimas de assaltos violentos, de roubo. Esta é uma situação que existe, as autoridades judiciais nem sempre conseguem compreender este fenómeno, ainda estamos num tempo de aprendizagem, de enquadramento novo sobre estas questões. Diria que o principal crime será o abandono, porque quando se junta o abandono à violência estamos num domínio que atenta contra a dignidade humana, da pessoa concreta que é idoso. É uma situação que nos preocupa a todos.
Falta mais prevenção?
A prevenção faz-se com mais gente na rua, em equipas de apoio domiciliário. O caminho seria este. Eu sou um grande entusiasta do apoio domiciliário, de novos modelos. A experiência que fizemos na Misericórdia do Porto, a "Chave de Afetos", mostra isso: equipas que estão mobilizadas, preparadas, um "call center" que responde ao apelo do idoso. Aí, pelo menos, vamos dando uma resposta. A prevenção só é possível se as equipas que estão no terreno tiverem capacidade técnica para apoiar. Gostaria de deixar um elogio à PSP e à GNR, que têm trabalhado muito nesse domínio e são hoje, indiscutivelmente, os primeiros a defender os idosos, a sinalizar situações menos boas, para que depois as Instituições possam responder.