As mulheres não serão ordenadas. Nem mesmo diaconisas. Continuarão a não poder receber “Ordens”. Os homens casados não poderão ser presbíteros. Nem mesmo “os anciãos” (os “justos” da escritura). Continuarão, como agora, “apenas” diáconos permanentes. Para a falta de quem possa celebrar a eucaristia e confessar, o Papa recorre à velha receita: façamos oração por novas vocações. Como Jesus: “Pedi ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe.” Sem novidade que se note, ou mudança que se antecipe, das duas uma: ou a Exortação pós-sinodal “Querida Amazónia” não é notícia ou, pior ainda, “é uma má notícia”. Falso. Leiam-na e verão.
Não admira que o documento tenha sido visto com um quase desprezo pela totalidade da imprensa. Votado à indiferença ou maledicência. Para Francisco escrever um “texto bonito”, afirmam os especialistas na matéria, não precisava ter realizado um Sínodo. Para meter na gaveta as conclusões do trabalho sinodal, então não precisava de as ter publicado, permitindo a divulgação das recomendações, acompanhadas das respetivas votações. Resumindo: o Papa Francisco ou cedeu a pressões ou, pior do que isso, reconheceu-se nelas. Em traços largos esta meia dúzia de lugares comuns foi tudo o que os “media” disseram do texto. Mas a resposta a esta dúvida sobre o que o Papa pretende com a Exortação é legítima e merece ser procurada.
Se lhe propunham o regresso à figura das “diaconisas”, que existiram na Igreja até ao século IV, e a revisão da norma disciplinar do celibato sacerdotal (ainda praticada na Igreja Oriental fiel a Roma) e não queria seguir essas recomendações, para quê, então, este texto? Sobretudo sabendo de antemão qual seria a sua grelha de leitura mais óbvia? Um texto de uma quase perfeita equidistância entre os que maioritariamente pediam mudança e os que ameaçavam escandalizar-se com ela? Ninguém se entende.
Quis Francisco jogar na ambiguidade, esconder-se por detrás de um documento onde apenas sugere a leitura atenta do outro (aparentemente a indicar a direção oposta?) e com isso sugerir que lhe dará uma espécie de aval a prazo? Ao estilo de quem diz “eu não o farei no meu pontificado, mas tomo boa nota da sugestão que, a seu tempo, dará fruto"? Quis ele, no fundo, deixar claro: esse será o caminho, mas comigo não!? As teses da imprensa especializada, sempre vagamente conspirativas, multiplicaram-se e duraram um dia. Depois, deixou de ser notícia e, em rigor, só o foi pela leitura rápida de meia dúzia dos seus pontos. Os outros caíram no esquecimento. Como se o texto de “Querida Amazónia” não fosse exatamente dedicado a todo o povo de Deus e não servisse para que todos aprendêssemos com ele.
E refiro apenas alguns desses pontos importantes com os quais podemos e devemos aprender: primeiro, esquecer a sacristia como reduto sagrado do poder da Igreja e o clericalismo como uma doutrina vagamente paralisante, que tolhe os movimentos dos leigos. Estes não são apenas a maioria dos membros da Igreja, mas aqueles de que no pós-concílio se espera que realizem, se não toda a ação da Igreja em saída, pelo menos a grande maioria da sua ação.
Ao não limitar a vida em Igreja a uma estrutura de poder encabeçada necessariamente pelo Padre (o senhor do “poder”, como se o sacerdócio não fosse comum a todo o povo de Deus), a Igreja continua a não cumprir o mandato de conciliar, 50 anos depois. Na Igreja como um todo é necessário criar (ponto 94) “uma cultura eclesial própria, marcadamente laical” e na Amazónia especificamente essa cultura tem de ser “capilar” e “com incisivo protagonismo dos leigos”, lembra Francisco.
Mas diz mais: faz falta, afirma o Papa, mesmo aos que se consagraram à missão amazónica, “um novo esforço de inculturação, que ponha em jogo a criatividade, a sensibilidade e a força peculiar da vida comunitária”. E o Papa aconselha que não nos precipitemos a julgar (ponto 79), pois “é possível receber… um símbolo indígena sem o qualificar necessariamente de idolátrico. Um mito denso de sentido espiritual pode ser valorizado, sem continuar a considera-lo um extravio pagão”. E para os que se escandalizam facilmente e alertam para os riscos da abundância de corpos desnudos e a efusividade das danças, surge o conselho (ponto 80): “ o pior perigo seria afastá-los do encontro com Cristo, apresentando-O como um inimigo da alegria (…) a santidade não priva as pessoas de forças, vida e alegria”. É fundamental perceber e respeitar essa diferença cultural, ao estilo do que tão bem entenderam muitos santos entre os primeiros missionários.
Nesta linha percebe-se bem a conclusão: “Faltam rostos da Amazónia na Igreja”. E mais adiante (ponto 84), repetindo as palavras da exortação de 2016 “Alegria do Amor: “A igreja deve (…) compreender, consolar e integrar, evitando (impor) um conjunto de normas como se fossem uma rocha”, o que arrisca marginalizar ainda mais os já abandonados por uma “Igreja transformada numa alfândega”. E no mais prega-se a confiança (94) “onde houver uma necessidade especial “Cristo já “infundiu carismas que permitam dar-lhe resposta”; bastará não os travar com raciocínios e estratégias tipicamente humanos. Os cristãos são desafiados a ver a sua Igreja com olhos de crentes e não à semelhança das clássicas estruturas hierárquicas, tão típicas da mundanidade.
E em relação à mulheres, que durante dezenas de anos mantiveram a fé sem que nenhum sacerdote passasse por ali, que “batizaram, catequisaram, ensinaram a rezar “ e mantiveram fé ardente”, a solução para reconhecer o seu papel de missão não é “clericalizá-las”, empobrecendo “subtilmente a sua contribuição indispensável”. No fundo, seria como reconhecer que, até aqui e sem serem ordenadas, o seu papel não teria passado de um papel secundário amputado do seu cariz essencial.
Diz o Papa - para a Amazónia, mas extensivo obviamente a toda a Igreja com quem ele quer partilhar e apresentar publicamente o essencial do trabalho sinodal - que o “lugar próprio da mulher” na estrutura da Igreja “tem de ser melhor expresso”, passando elas a ter “uma incidência real e efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na guia das comunidades, mas sem deixar de o fazer no seu estilo próprio”. Quem acha que dizer isto não muda nada, não sabe qual o papel que as mulheres desempenharam desde o início da evangelização, ou seja, desde o início da cristandade.
Mais do que transformar as mulheres leigas “numa espécie de sacerdotes de segunda”, é importante reconhecer plenamente não apenas o que já são, mas sobretudo o que podem e devem ser, como já acontece em muitas estruturas e movimentos: uma voz que é ouvida e participa nas decisões a tomar colegialmente e em pé de plena igualdade. Porque os leigos não são menos do que os clérigos. Nem os clérigos são uma Super espécie de cristãos.
Mas na “Querida Amazónia” há mais novidades: as mulheres são chamadas a prestar os serviços eclesiais que não requerem a Ordem. E porque tais serviços exigem “estabilidade”, sugere-se um “maior reconhecimento público e um envio por parte de um bispo”. (ponto 103).
E onde a Igreja da Amazónia tiver necessidades peculiares, qual a solução? O protagonismo leigo. Claro que se só os clérigos podem confessar e celebrar a eucaristia e ganham uma indispensabilidade própria, apenas por isso. Mas, não gozam de uma especial inspiração divina em questões de governo, mera gestão, ou até definição de planos pastorais ou conhecimento das grandes feridas e maravilhas da Igreja. A Igreja em saída, a Igreja acidentada, a Igreja “em movida”, é trabalho de e para leigos. Catequistas, pais e mães, orientadores da maioria dos trabalhos apostólicos. Gente que está no mundo em construção e o ama apaixonadamente.
É isto que a “Querida Amazónia ” recorda. O Vaticano II já o dizia, mas 50 anos depois continua a ser preciso gritá-lo. O Papa Francisco volta a anunciá-lo a todo o Mundo. Não apenas de e para a Amazónia.