Sobretudo em épocas de raiva, como a atual, domina uma interrogação que é recorrente ao longo dos tempos: “como pode o Deus omnipotente e bom aceitar tanto mal?”
Quem faz esta pergunta não pensou com cuidado no problema. Se o fizesse, teria de considerar os contornos do tal mundo sem mal que, na sua opinião, o Deus omnipotente e bom deveria ter criado. Ao fazê-lo, a única conclusão possível é que nenhum ser humano existiria nessa obra ideal.
Num mundo sem mal não há lugar para o próprio, os seus familiares, amigos e conhecidos. Todas as pessoas falíveis, por melhores que sejam, seriam demasiado perversas para uma realidade tão perfeita. Assim, a pergunta não faz sentido, pois ela pressupõe a inexistência do perguntante.
A questão implica dois erros fundamentais. O primeiro é desconhecer a realidade. “Se um ignorante entrar na oficina de um artesão, verá uma quantidade de ferramentas cuja finalidade desconhece e, se for muito estúpido, vai julgá-las inúteis. Se, por tolice, for ferido por alguma ferramenta afiada, considerará que existem muitos seres nocivos (...) É assim que neste mundo algumas pessoas se atrevem a criticar muitas coisas de que não vêem as razões.” (S. Agostinho De Genesi contra Manichaeos I, 16, ML 34.185).
Aquilo que parece mal numa perspetiva, pode ser indispensável se bem considerado. A chuva na eira vem por causa do nabal. O mundo perfeito, que muitos imaginam, teria de ser povoado por marionetas, incapazes de liberdade. Ora o Deus bom só pode sê-lo criando capacidade de escolha, sem a qual não existe amor. E liberdade implica a possibilidade de recusar o bem. Porque, afinal, o mal não existe em si mesmo; é apenas a negação do bem; como o escuro é só a ausência de luz, o silêncio a privação de som e a morte a falta de vida.
Apesar disso, o mal é um mistério: por que razão alguém recusa o bem? Se o bem é bom, como será rejeitado, fazendo-se o mal? Mais uma vez o exemplo da oficina nos ajuda. As pessoas só querem o bem. Por isso, aqueles que recusam o bem só o fazem por causa de outro bem. Ninguém rejeita o bem, senão pelo bem.
Os piores males da atualidade, as guerras no Sudão, Ucrânia, Gaza, etc., são geradas por pessoas com ótimas intenções. Não se arrisca a vida senão por aquilo que se considera excelente. Só que, na busca desses bens, como a prosperidade, o patriotismo, a liberdade, a justiça, gera-se a destruição de outros bens, como a vida das vítimas e das cidades.
Por isso é que ambos os lados do conflito repetem sucessivamente as razões que lhes assistem, recusando-se a ver as justificações do lado oposto, enquanto se chacinam mutuamente. É assim que o mal explode, devido apenas e sempre à busca de bens particulares.
Estes pontos podem ter muita verdade, mas escapam à questão fundamental: “Como o Deus bom convive com isto?” Chegamos ao segundo erro da pergunta, esclarecido por outra frase do grande Agostinho, a pessoa que mais penetrou este mistério: «O Deus todo-poderoso de nenhuma maneira permitiria que um qualquer mal se introduzisse nas suas obras se não fosse suficientemente poderoso para tirar bem do próprio mal.» (Enchiridion ad Laurentium de Fide et Spe et Caritate c.11, ML 40.236).
Regressamos ao exemplo da oficina, mas agora do ponto de vista divino. Ao criar seres livres, Deus fez recuar a sua omnipotência para abrir espaço à autonomia das criaturas. Por isso o mal, a destruição do bem, acontece, mas é da nossa estrita responsabilidade. Assim, em vez de culpar Deus das nossas perversões, devemos procurar antes seguir as leis que Ele nos deu para melhorar o mundo.
Só que Deus, quando se limita para nos dar espaço, não abandona a suas criaturas, sempre tirando bem das ruínas que vamos causando. A coragem dos heróis, a paciência dos mártires, a genialidade dos criadores e a perspicácia dos líderes não seriam necessários na ausência de mal. A virtude, a grandeza e a dignidade manifestam-se apenas no meio das dificuldades. Só no fundo negro se vê o brilho das estrelas.
Isso chega ao ponto de o pior dos males gerar o maior bem. Até Wagner e Nietzsche, não propriamente religiosos, admitiram que o supremo horror é a morte de Deus. Segundo os cristãos, essa maldade extrema aconteceu realmente no Calvário; e dela resultou a salvação da humanidade. Jesus, o Deus feito homem, conviveu aqui com o nosso mal, e foi vítima dele, para nos indicar a forma de lidar com isso. Assim o bem só triunfa numa vida vivida na companhia de Cristo vivo.