Quatro meses de conversas com Ricardo Salgado resultaram no livro “BES - Os Dias do Fim Revelados”, da jornalista Alexandra Ferreira.
Ao longo de 242 páginas, o antigo presidente do Banco Espírito Santo (BES) conta a sua versão da história que acabou com a derrocada de um grupo económico com mais de cem anos. Confira alguns excertos do livro agora lançado.
"É pior pedir desculpa do que não ter razão"
Ricardo Salgado, o último banqueiro do país, justifica porque nunca chegou a pedir desculpa aos clientes pela queda do grupo, na comissão de inquérito ao caso BES, ao contrário do que fizeram alguns membros da família.
“Sigo a máxima expressa no verso de Fernando Pessoa: É pior pedir desculpa do que não ter razão. Sempre actuei para salvar o BES, sempre invoquei as razões que me moviam. Pelos vistos não foram compreendidas nem aceites. Mas não vou desistir de apontá-las. O que não me resigno é a pedir desculpas e considerar que, com isso, fica tudo bem.”
A defesa do banqueiro mantém-se: "O BES não faliu, foi forçado a desaparecer. Por uma total falta de visão dos governantes do nosso país e da acção por parte do Banco de Portugal que, no fundo, julgo já tinha intenção de acabar com um banco de família".
“Dono disto tudo”
Ouviu pela primeira vez a alcunha da boca do ex-ministro da Economia de José Sócrates, Manuel Pinho: "Sabe o que lhe chamam agora? ‘Dono Disto Tudo’."
“Eu considerei aquilo imediatamente horrível. Porque eu nunca fui uma pessoa de me andar a pôr em bicos dos pés. Essas classificações são completamente distorcidas. Senti que há um sentimento terrível no nosso país, que é este da inveja. E que de facto pode tornar-se extremamente destruidor.”
“Não, nunca me senti particularmente poderoso”, diz Ricardo Salgado no livro “Os dias do fim”.
“Se fôssemos mesmo egoístas não tínhamos voltado para Portugal. É aquilo que sinto. Nós não precisávamos de voltar para Portugal” depois da nacionalização, sublinha.
“Nós trouxemos mais de oito mil milhões de euros de capital para cá. Nós e os nossos parceiros. Participámos em tudo! Na privatização da Galp, da Portugal Telecom, na fundação da SIC, da Telecel, na privatização das bolsas portuguesas… Sabendo o que sei hoje, claro que não voltava! Acho que Portugal foi extremamente ingrato com o Grupo, principalmente porque é uma ingratidão sem limites. (…) Talvez não se possam pôr todas as pessoas do Grupo, porque havia uma que estava a contribuir para esta crise terrível.”
“Numa empresa familiar, a gestão é influenciada pela família. Jobs for the family”, conta o antigo banqueiro.
O amigo construtor
O episódio dos alegados 14 milhões que o amigo construtor Zé Guilherme terá oferecido ao banqueiro é descrito no livro como um dos muitos que, em menos de dois anos, desfizeram por dentro o clã. Ricardo Salgado nega tudo e diz-se perseguido por determinada imprensa:
"A minha família não aceitou bem a liberalidade do Zé Guilherme. Mas aquilo foi explorado de uma forma inqualificável pela imprensa do Dr. Álvaro Sobrinho. (...) Falaram em comissões quando não era comissão nenhuma. Nunca na vida recebi comissões. Foi, de facto, um acto de gratidão de um amigo para com outro amigo."
No livro agora publicado, Ricardo Salgado continua a chamar-lhe uma "liberalidade". "Um acto de carácter espontâneo e a título gratuito que venha a favorecer ou a beneficiar economicamente alguém".
Um erro chamado Álvaro Sobrinho
Hoje diz que a escolha de Álvaro Sobrinho para a presidência do BES Angola foi um dos grandes erros da sua carreira. Quem vive perto dele diz que "às tantas se considerou uma espécie de Bokassa da Finança", refere Ricardo Salgado, numa alusão aos desvarios do Presidente da República Centro-Africana.
Álvaro Sobrinho, prossegue, "criou um problema terrível em Angola, que acabou por atrasar a entrada da Comissão Executiva no BES Angola. E esse tempo foi de saída avultada de capital do BES Angola".
"Há um comentário que foi lido na Comissão Parlamentar de Inquérito (...) que fala num BESA UK, que é uma sociedade e não um banco constituída pelo Dr. Álvaro Sobrinho na segunda metade de 2012, quando este ainda estava na Comissão Executiva. Para que é que se foi constituir uma sociedade que era dele com o nome do banco e que depois fechou em 2014? Sem nós sabermos! Ninguém sabia! Ele foi usar o nome do banco em Angola para fazer uma sociedade que não era o banco! Merecia investigação."
"O Álvaro Sobrinho convenceu os outros membros que foram para lá da equipa que veio do BES de, no fundo, se associarem."
"Fui inclusivamente ameaçado em minha casa por um irmão dele (Sobrinho). O irmão veio dizer-me que tinha um exército em Angola, com quatro mil homens, uma empresa de segurança", revela Ricardo Salgado.
"O BESA fazia empréstimos a veículos e operações aprovadas pelo Dr. Álvaro Sobrinho completamente fora dos cânones (...) Não havia actas! Depois o dinheiro desaparecia pelos veículos dos quais não se conheciam os últimos beneficiários."
A família
A guerra no seio da família e do grupo Espírito Santo também merecem um capítulo no livro “Os Dias do Fim”. Ricardo Salgado conta a sua versão do braço de ferro pelo controlo da instituição.
"Eu nunca quis acreditar naquilo que ele estava a fazer. Até porque ele negou, por duas vezes, na presença do nosso primo, José Manuel Espírito Santo! Eu disse-lhe 'José Maria, eu tenho ouvido informações que tu andas a preparar a minha substituição e andas com abaixos-assinados e eu gostava francamente que essas coisas se passassem às claras'. Ele negou sempre! Respondeu-me 'De forma alguma! É completamente mentira! Não sou eu que estou a propor a tua substituição. Não pretendo ir para o teu lugar'. Desmentiu duas vezes."
O antigo banqueiro relata os factos ocorridos durante uma reunião do conselho superior do Banco Espírito Santo, onde confronta os que se lhe oponham.
“Não há economia sem bancos e não há bancos sem banqueiros. E os banqueiros têm tipologias de carácter, de contenção e diplomacia, de “savoir faire” que se sintetizam na chamada arte de ser banqueiro. Exercer com arte e ofício – eis o lema. É em nome desse património dos Refundadores e em nome dos valores de carácter e rectidão que são o DNA de um banqueiro, que convoco os presentes a levantar aqui as dúvidas que têm vindo a alimentar; as suspeições caluniosas que muitos comentam nos mais diversos locais e o manifesto que andou a circular para arregimentar e criar fracções que inevitavelmente destruirão esta Família e este Banco. Esta é a prova de fogo que a responsabilidade pela família e pelo Banco nos impõem. Diga cada um o que tem a dizer e decida o Conselho o que quiser decidir sobre o que ouvir. Mas isto tem de acabar hoje e aqui!”
“Era a consciência da realidade. Eu de facto tinha de sair. Não é frequente ver presidentes executivos na banca com a minha idade, 70 anos. Normalmente reformam-se aos 60-65 anos. E eu não saí mais cedo por causa da crise. Uma das regras básicas que aprendi na minha vida é que o comandante da embarcação é o último a abandonar o barco. Mas queria fazer as coisas bem e queria que tivessem uma evolução razoável. Acontece que quando isso foi percebido, começaram a assistir-se a manobras nos bastidores de membros a precipitarem a sua autopromoção para o desempenho das funções. E quando falo em membros do Grupo, estou a falar de membros do Conselho Superior, da família, entre os quais o mais conhecido é o Dr. José Maria Ricciardi. Mas depois apareceram outros, o Dr. Ricardo Abecassis Espírito Santo, que estava no Brasil e o Dr. Bernardo Espírito Santo.”
“Uma das frases que eu disse do Papa Francisco é ‘Não chores pelos que te abandonaram e luta pelos que estão contigo’ É uma visão que está a evoluir. Hoje tenho uma noção mais clara daqueles que contribuíram para o desaparecimento do grupo. Mas vou continuar com o mesmo princípio porque julgo que é assim que devo fazer. Não que me considere um ‘Deus Ex-machina’ ou qualquer coisa parecida com isso mas considero que o melhor que posso fazer, qualquer que seja o âmbito da família a que me estou a referir, é continuar a lutar pela honra e dignidade da minha família.”
“Fiquei com certeza desapontado. Sempre pensei que a família se mantivesse unida. E sempre se tinha mantido unida. O problema da desunião aparece quando vêm os novos para o Conselho Superior e que pretendem ao fim de algum tempo assumir posições de relevo sem quererem saber de mais nada. Sem pesarem bem as circunstâncias.”
O Grupo
Ricardo Salgado também fala sobre aquele que acabou por se tornar numa das peças fundamentais do caso BES, o contabilista Machado da Cruz, e das ambições do primo José Maria Ricciardi.
“Pois é, é difícil. Mas eu não sei de facto explicar. Não sei explicar! O homem estava a fazer um esforço para ajudar a resolver os problemas do Grupo. Achava que estava a ajudar o grupo e depois… aquilo começou em 2008 e depois foi continuando. Nós não tínhamos as contas consolidadas e ele dizia que não era preciso termos contas consolidadas, uma coisa inacreditável! Mas nós também devíamos saber.”
“Eu creio que no fundo foi confiança excessiva e recíproca. Eu não tinha tempo de olhar para as contas da ESI.”
“Ao nível accionista, eu não mandava! Tinha uma posição minoritária como todos os outros!”
“Julgo que o Dr. José Maria Ricciardi, até porque havia uma relação de amizade com o primeiro-Ministro, o Dr. Pedro Passos Coelho, estava convencido que poderia prevalecer, ser ele presidente executivo do banco. Mas não tenho dúvida que o Banco de Portugal também não queria”.
A sucessão
“Se me pergunta se me custou, eu estava convicto que era isso que devia ser feito, era a evolução da gestão”, afirma Ricardo Salgado sobre a mudança na administração do BES operada antes da queda.
“Era já evidente a enorme desconsideração do Banco de Portugal comigo. Eu podia ter ajudado os novos administradores nessa função mesmo não estando já no banco. Podíamos ter conversado. Podia, por exemplo, ter explicado que as cartas de conforto entregues aos investidores venezuelanos não obrigavam o BES a nada. Mas impuseram à nova administração um corte total das relações comigo.”
O abismo
“Eles (Banco de Portugal) sabiam que o BES ia desaparecer. Eles queriam que o BES desaparecesse”, acusa Ricardo Salgado durante a conversa com a jornalista Alexandra Ferreira.
“O banco não faliu. Foi obrigado a desaparecer”, declarou.
“Acho que o objectivo era que politicamente fosse sufragado, primeiro, na opinião pública e, depois, nos actos eleitorais de que era preciso acabar com os poderosos que tinham influência e que provavelmente até eram corruptores”, lamenta Ricardo Salgado, que é arguido no caso Universo GES e Monte Branco.