Escrevo-te porque aprecio o teu esforço, a tua juventude e o teu empenho em salvar a humanidade neste mundo em profundo desequilíbrio. Habitamos uma casa que devia ser comum e agora está doente e se tornou ameaçadora, não só para o nosso modo de vida ocidental mas para a subsistência de todos os seres humanos. Antes de avançarmos, aproveito para te dizer que amo as baleias e os tigres da Malásia mas o que realmente me preocupa são os seres humanos: que no século XXI haja milhões de crianças sem assistência médica, sem vacinação, sem acesso à escola, parece-me inultrapassavelmente revoltante e uma causa de desgosto e de preocupação constante.
Mas, claro, reconheço o mérito de quem investiga e cuida dos animais e das plantas, das paisagens, dos recursos naturais, do ordenamento do território, do reverter dos focos de poluição, da produção de energia limpa, … todas essas coisas maravilhosas que constituem a estrutura mãe da nossa vida na terra e o cenário natural de um existir dignamente humano e pleno e pacífico, no belo planeta azul. A guerra, que muitos acham uma medida inevitável de controlo do crescimento populacional e uma purga justificada dos pecados individuais e coletivos, também me preocupa imenso. Aflige-me este massacre constante de inocentes por mecanismos de destruição não convencional e, as mais das vezes, inidentificáveis, logo, impossíveis de controlar e de suprimir. Esse desgosto da guerra tornou-me uma europeísta convicta e, por isso, esta loucura do brexit parece-me isso mesmo, uma loucura bárbara, bronca e tresloucada, feita de ganância e alzheimer da História. Por isso, já vez, querida Greta, também estou zangada.
No entanto, tenho aprendido a canalizar a minha irritação para fins úteis e, assim, as pessoas, sobretudo as frágeis e aquelas que ainda não têm futuro, são o centro das minhas atenções, pois estão a crescer na incerteza mais constante, mesmo nas sociedades aparentemente pacificadas e com alguma segurança social. E acho que todos esses meninos e meninas que vivem nas margens das margens uma vida indigna do mais pequeno animal, triste e dolorosa, traumática e insalubre, têm para mim um valor superior a qualquer calote polar e é precisamente para eles, especialmente para eles, que quero que o céu continue azul e o oceano seja limpo, que se reduzam as emissões poluentes e se tenha controlo sobre o aquecimento global. Nos meus dias de incerteza e neura, penso naquelas mães da Síria, fugindo com os seus pequenitos nos braços, sob o fogo ou a nuvem de gazes tóxicos: esses meninos nunca chegarão à escola, Greta, nem à ONU. Ninguém lhes roubou nada porque nunca tiveram nada… Afinal, por uma culpa global, vivem uma infra-vida e é incrível que ainda consigam andar de baloiço no campo de refugiados que é o único habitat que conhecem.
Isto, querida Greta, leva-me à questão final, à única importante, talvez. Desculpa-me este discurso todo, a dificuldade em ir direta ao cerne: significa apenas que os problemas que vivemos são incrivelmente complexos, que mesmo os cientistas estão na aurora das suas descobertas, que conciliar os interesses comuns planetários com a vida real de milhares de sociedades diferentes e a prioridade de fornecer comida e trabalho a milhões de pessoas em circunstâncias alarmantes de desigualdade, é um desafio que já engoliu muitos políticos e ativistas sérios e trabalhadores e é a batalha quotidiana de muitas pessoas anónimas, a começar pelos pais de família e pelos professores de todo o mundo.
Por isso tenho pena de te dizer, embora me pareça útil e necessário, mas os teus pais e os teus mentores deveriam ter-te ajudado a não gritar, a não fazer um discurso que, para além da relevância dos protestos, argumentou em direção ao medo, à angústia e à confusão, transformando os opositores em inimigos, deitando por terra as bases de uma cultura democrática. E queres a prova? Pois, agora já leste o Twitter do troll global e talvez alguém te tenha explicado o que está em jogo quando os discursos demagógicos ou apenas emocionais fazem eleger para cargos de influência global precisamente o tipo de pessoas que tu criticas. Levaste um tiro no porta-aviões, ainda bem que não era nuclear.
Mas não te preocupes, ainda há remédio: é preciso ajudar os mais novos a perceber duas coisas: que isto não é uma crise de girassóis nem de libelinhas, mas uma crise sobre a nossa ideia de pessoa; e que a educação para a vida democrática deve ser o objetivo mais urgente de todas as sociedades abertas e livres, pois, com o mesmo ritmo da subida das águas, amadurecem, perigosamente, gerações sem raízes nem memória. Apesar de tudo, obrigada pelo teu testemunho e pela tua coragem.