“Estava numa pequena empresa e, apesar de ter funções fixas, trabalhava numa situação de falso recibo verde. Quando se começou a falar de fecharem negócios, fui a primeira pessoa a ser dispensada.”
O relato é feito à Renascença por Carolina Almeida, de 24 anos, fiel de armazém numa empresa de distribuição ligada ao Turismo, com negócios em Lisboa e no Porto. Este é um de muitos casos de trabalhadores precários em Portugal que, 14 dias depois do primeiro caso de coronavírus ter sido registado em Portugal, estão a ser os primeiros alvos dos cortes nos postos de trabalho que começam a suceder um pouco por todo o território nacional.
A CGTP e os Precários Inflexíveis confirmam que − apesar de não terem dados oficias − situações similares à de Carolina estão a acontecer, e a afetar sobretudo os que têm contratos a termo, e os trabalhadores independentes. Os setores da hotelaria e da restauração registam vários casos, nomeadamente de pessoal contratado para fazer face ao aumento de procura na Páscoa, e que com a chegada da pandemia de Covid-19 a Portugal está a ser dispensado durante o período experimental.
Carolina, que foi contratada pela empresa em que trabalhava no passado sábado, diz que esta situação “mostra muito do que acontece às pessoas quando não têm contrato”. “São logo as primeiras a serem dispensadas, como eu”, refere.
Residente em Sintra, a jovem afirma que não lhe foi referido nada de especial para justificar a decisão. “Houve uma reunião, e disseram-me que não precisavam mais dos meus serviços. Explicaram que tinha a ver com esta situação, e que ainda não sabiam muito bem como é que iam atuar com o resto dos colegas. Revelaram que iam fazer cortes, não sabiam muito bem como”, confidencia, acrescentando que os outros funcionários, para já, iam reduzir o horário de trabalho.
A secretária-geral da CGTP, Isabel Camarinha, alerta que as empresas estão a violar os direitos dos trabalhadores.
“O despedimento é uma das áreas em que isso está a acontecer. Temos já conhecimento de muitas situações em que os trabalhadores que tinham vínculos precários foram despedidos, ou os seus contratos não foram renovados”, avança à Renascença a sucessora de Arménio Carlos, que acrescenta críticas à forma como há quem esteja a ser mandado para férias compulsivamente.
Daniel Carapau, dirigente dos Precários Inflexíveis, também confirma que àquela associação chegaram “relatos de pessoas que já perderam o seu emprego”.
“Estamos muito preocupados com os abusos das entidades patronais por não estarem a acautelar a proteção dos trabalhadores nesta altura”, critica.
O mesmo dirigente assume que, neste momento, os casos de que tem conhecimento são pontuai; concentram-se nas áreas do Turismo e da Arquitetura, mas também estão a afetar bolseiros, e trabalhadores independentes que trabalham em “outsourcing”. Carapau soma a este cenário o caso das amas contratadas pelas IPSS que estão a ser dispensadas pela falta de crianças nas instituições e que já pediram ao Governo que resolva a situação.
A líder da CGTP sinaliza ainda que os “trabalhadores com vínculos precários estão a ser duplamente penalizados”. “Já o eram pelo vínculo que têm, que não lhes garante salários dignos”, remata.
Hotelaria e restauração agonizam
No Algarve, região em que a hotelaria e a restauração são o ganha-pão de muitas famílias, Tiago Jacinto, membro do sindicato de hotelaria daquela zona do país, garante à Renascença que na maior parte das situações “as empresas estão a mandar os trabalhadores para casa de férias”.
Mas há também casos de unidades que estão a rescindir os vínculos com os “trabalhadores com contrato a termo”. “Os que têm uma situação mais precária são os primeiros que as empresas estão a descartar”, afirma.
O dirigente sindical dá o exemplo do Club Med, em Albufeira − em que os trabalhadores que tinham sido contratados, e que estão no período experimental, viram os seus contratos rescindidos.
Também no Hotel Faro, os contratados a prazo “receberam um contacto da entidade patronal a dizer que os contratos não se iam renovar”.
A secretária-geral da Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP), Ana Jacinto, justifica que o setor que representa tem uma atividade muito sazonal e que as empresas, em março, para fazer face ao aumento da procura na Páscoa, têm por hábito aumentar os seus encargos com pessoal.
“Neste mês, as empresas já não contrataram mais pessoas, e aquelas que foram contratadas para fazer face à maior procura foram dispensadas no período experimental. Os operadores não podem ter mais colaboradores sem procura”, explica à Renascença.
O presidente da Confederação Empresarial de Portugal, António Saraiva, não confirma que esteja a haver despedimentos entre os associados da CIP, mas não deixa de parte a hipótese de isso estar a acontecer no país. Entre as empresas que representa, a preferência, afirma, tem sido por medidas que suspendam o trabalho − como, por exemplo, colocar os trabalhadores em férias.
“Recordo que há uma enorme quantidade de micro e pequenas empresas que compõem o tecido empresarial português. São empresas que pela sua dimensão nem estão inscritas nos movimentos associativos, e por isso é natural que possam acontecer situações desse tipo [despedimentos]”, refere.
Sindicatos dizem que Governo não está proteger os trabalhadores
A central sindical na voz da secretária-geral não poupa criticas ao Executivo liderado por António Costa. As medidas que o Governo anunciou, argumenta, visam mais proteger as empresas do que os trabalhadores, e muitas delas têm impacto direto nos salários.
Quem sairá com danos graves desta situação, defende Isabel Camarinha, é a economia. “Sofrerá muitíssimo mais se os rendimentos dos trabalhadores sofrerem impactos, com toda a baixa de consumo que isso provocará. E vai levar à colocação de trabalhadores em situação de pobreza absoluta”, identifica.
A mesma sindicalista exemplifica com os casos dos trabalhadores independentes. “O rendimento que lhes é garantido pela Segurança Social, exclusivamente, é de 438 euros. Muito abaixo do limiar da pobreza”, avalia.
Já os trabalhadores por conta de outrem ficam com o seu rendimento reduzido em 33%, “o que é uma quebra enormíssima, que não lhes permitirá fazer face à situação”.
A mesma sindicalista soma ainda a preocupação com a legislação do lay-off simplificado, “porque não só não respeita os direitos dos trabalhadores no que se refere à remuneração, como pode retirar outros direitos”.
“Temos uma grande preocupação que o Governo nas medidas que está a adoptar não esteja a prevenir uma recessão económica, e o aumento do desemprego. As medidas que estão a tomar são canalizadas para as empresas, o que no caso das micropequenas e médias empresas é importante, mas está a haver muito pouco para os trabalhadores”, remata.
Empresários angustiados
Na restauração e hotelaria, a secretária-geral da associação do setor, Ana Jacinto, diz que a situação é mais dramática à medida que o tempo passa. “Tenho um conjunto enorme de estabelecimentos encerrados, uns por via de diploma próprio, como discotecas e similares, a redução do horário dos bares, e outros por razões de saúde pública para salvaguarda dos seus colaboradores e clientes”, ilustra.
“Tudo isso junto está a criar uma enorme preocupação”, frisa a líder de um setor que emprega mais de 320 mil trabalhadores.
Jacinto apela ao Governo e remete para as 40 medidas que apresentou ao ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, para evitar um descalabro no setor.
“Se não formos ajudados e apoiados não é possível manter os postos de trabalho. É isso que não queremos fazer. Não queremos dispensar colaboradores, queremos mantê-los”, enfatiza.
Ana Jacinto diz ainda que a proposta de lay-off desenhada pelo Governo, na prática não se vai aplicar às empresas que representa. “Temos de demonstrar hoje que nos três meses anteriores tivemos uma quebra de 40% na facturação face ao período homólogo, e como sabemos em Janeiro e Fevereiro as empresas ainda estavam num ritmo mais ou menos normal. A quebra abrupta aconteceu em Março”, refere. Ou seja, estes empresários teriam de esperar mais dois meses para conseguirem a demonstração da redução a pique da facturação.
A AHRESP está a pedir ao Executivo que adiante 1000 euros por colaborador, sendo que 50% desse valor ficaria a cargo do Estado. A outra metade, após o período de crise espoletada pelo coronavírus, teria de ser reembolsada pela empresa ao Estado.
Ana Jacinto fala ainda da linha de apoio de 200 milhões de euros, dedicados à tesouraria das empresas, que envolve a participação banca. “Precisamos de ter instrumentos céleres, flexíveis e rápidos e que cheguem às empresas. Não é com estas medidas que requerem demasiadas burocracias, e a banca pelo meio. Alguns dos bancos nem tem a linha disponível. Tudo isso é complexo demais”, argumenta.
Por seu turno, o presidente da CIP, António Saraiva, diz que os parceiros sociais têm reunido com regularidade, e que vão reunir na próxima quinta-feira novamente. Nesses encontros, realizados por videochamada, são discutidas novas medidas e avaliadas as que foram tomadas.
Carolina e o armagedão do futuro
As medidas de proteção do Governo aos precários não se aplicam no caso de Carolina Almeida, a jovem de 24 anos despedida no passado sábado.
“O decreto-lei que saiu por parte do Governo, que diz que os recibos verdes podem receber um ‘x’ a partir dos descontos que fizeram nos três meses anteriores, não me abrange. Eu estava prestes a acabar o meu primeiro ano de isenção, e como não fiz descontos não tenho direito sequer a receber esse contributo da Segurança Social. Estou mesmo a zeros”, lamenta.
Em plena pandemia de coronavírus, Carolina ganhou mais uma preocupação. E as perspetivas são poucas. “Não estou à procura de nada, não há trabalho por aí agora.”
Por isso, neste momento, vai vivendo um dia de cada vez. “O maior medo das pessoas que estão nesta situação é o que se vai passar depois. Acho que haverá muita gente desempregada e não vamos retomar a nossa vida como se nada fosse”, equaciona.
“Depois de sairmos de quarentena haverá muitas pessoas em situações muito más.”