Desde o tempo de João Paulo II que os Papas têm sempre dado importância aos encontros inter-religiosos durante as suas viagens apostólicas e o mesmo acontecerá durante esta visita de Francisco ao Iraque, que começou na sexta-feira.
Mas esta viagem tem ainda uma particularidade. Na manhã de sábado o Papa faz uma visita de cortesia a Najaf, a cerca de 100 quilómetros de Bagdad, sede do líder espiritual dos xiitas no Iraque.
O grande-ayatollah Sayyid Ali al-Husayni al-Sistani deixa assim claro que o seu papel no país é singular. Não se limita a ir ter com o Papa a um qualquer encontro religioso, como se fosse mais um de vários líderes espirituais no Iraque. O Papa é que vai ter com ele, propositadamente à sua casa. O gesto não é inédito, Francisco já teve a mesma atitude com outros líderes religiosos, como o Patriarca ortodoxo da Roménia e os líderes budistas no Myanmar.
De todos os líderes religiosos com quem o Papa irá encontrar-se, al-Sistani é sem sombra de dúvida o mais importante. O ayatollah comanda a maior comunidade religiosa no país, exercendo sobre ela uma influência que é incomparável com a de qualquer outro líder comunitário.
Os xiitas são a maior comunidade religiosa no país, mas não é apenas a demografia que explica a importância de al-Sistani. Do lado sunita, que representa um pouco menos de metade do país, não existe uma figura equiparável e isso deve-se ao facto de, durante décadas, o governo de Saddam Hussein ter cooptado o clero sunita para a promoção do seu regime.
Ao longo desse tempo os xiitas, apesar de maioritários, eram oprimidos e o resultado é que as suas mesquitas e instituições religiosas não eram contempladas pelo departamento governamental que controlava o clero sunita. Os xiitas, que já por natureza têm uma visão hierárquica do poder clerical, ao contrário dos sunitas – para quem desde a queda do califado cada imã é tão importante como outro – concentraram-se como comunidade de volta dos seus líderes religiosos. A ausência de oposição no país transformou-os também em líderes políticos e as tradicionais peregrinações em massa dos xiitas à cidade santa de Najaf – intensificadas quando o Iraque entrou em guerra com o vizinho Irão, tornando assim impossíveis as peregrinações a locais santos naquele estado – deram aos ayatollahs um palco constante para disseminar as suas ideias e cimentar a sua autoridade.
Quando os americanos invadiram em 2003 e depuseram Saddam e todo o seu regime o vazio político foi preenchido pelos xiitas e o líder por excelência dos xiitas, por mais que tivessem surgido entretanto partidos políticos, continua a ser al-Sistani.
Voz pela paz
O aparecimento de milícias armadas no Iraque pós-Saddam lançou o país numa espiral de caos e violência inter-religiosa entre sunitas e xiitas, com membros das religiões minoritárias a serem apanhadas no fogo cruzado.
Durante todo esse período, porém, Sistani continuou a apelar à paz e à convivência. Isso levou a algumas críticas internas, nomeadamente da parte do líder xiita Moqtada al-Sadr, o líder da principal milícia xiita naqueles tempos conturbados, que comandou a insurgência contra as forças americanas, mas al-Sistani emergiu com o seu poder e a sua autoridade intactos.
O seu papel na promoção da unidade dos iraquianos manteve-se durante a época da insurgência do Estado Islâmico, uma força terrorista sunita que matou incontáveis xiitas. Durante a pior época da violência al-Sistani fez questão de dizer aos seus seguidores que quem os perseguia e matava não eram os seus compatriotas sunitas, mas sim fanáticos de outros países que tinham infiltrado o Iraque para lançar o caos. Em larga medida tinha razão.
Al-Sistani foi ainda instrumental em legitimar as eleições parlamentares no Iraque apelando até, de forma firme, às mulheres para irem votar mesmo que os seus maridos as tentassem proibir. Toda esta sua atividade tem levado a que se fale no seu nome como candidato ao Nobel da Paz, mas tal ainda não aconteceu.
Por fim, Al-Sistani tem sido um contrapeso à influência iraniana, que aumentou exponencialmente depois da queda do regime de Saddam Hussein.
Os 40 minutos passados entre o Papa Francisco e al-Sistani são, por isso, um encontro entre dois homens interessados em promover e preservar a paz no Iraque. Francisco quererá certamente encorajar al-Sistani a erguer a voz pelo respeito pelos cristãos no país e o encontro serve também para consolidar a autoridade de al-Sistani como indisputado líder espiritual da maioria xiita, contra pretendentes como al-Sadr que preferiam ver os xiitas iraquianos a estreitar ainda mais os laços com o Irão e a assumir uma perspetiva mais bélica não só contra os americanos, mas contra os ocidentais em geral.
É ainda uma oportunidade para a Igreja Católica entrar em diálogo com o segundo maior ramo do islão, depois de, ao longo dos últimos anos, se ter aprofundado a relação com o islão sunita, nomeadamente na pessoa do grande Imam de Al-Azhar, no Egito e da assinatura da declaração de Abu Dhabi sobre fraternidade.
Encontro em Ur
O outro grande momento inter-religioso nesta viagem terá lugar em Ur, logo de seguida, no sábado.
O local não foi escolhido ao acaso. Ur é a cidade natal, segundo as escrituras, de Abrãao, pai das três grandes religiões monoteístas no mundo. Aí Francisco encontrar-se-á com líderes sunitas e também com representantes de minorias religiosas como cristãos, mandeus e yazidis.
A presença dos yazidis merece um destaque especial, tendo em conta as atrocidades que esta comunidade, de etnia curda mas que segue uma religião ancestral, ao contrário da maioria dos curdos, sofreu às mãos do Estado Islâmico.
Praticamente desconhecidos a nível mundial antes de 2014, os imagens de yazidis refugiados no topo do Monte Sinjar, que consideram sagrado, com os seus filhos a morrer de sede, correram o mundo e levaram Barack Obama a ordenar ataques a posições do Estado Islâmico para permitir auxílio. Depois vieram as histórias dos massacres de homens e jovens rapazes que tinham sido apanhados pelo Estado Islâmico e ainda os horrores da escravatura sexual a que foram sujeitas as mulheres e raparigas capturadas pelos jihadistas.
A Igreja Católica solidarizou-se com os yazidis e o Papa Francisco recebeu no Vaticano o seu líder espiritual, Baba Sheikh, que morreu no final de 2020, dando ainda mais visibilidade à comunidade e aos seus apelos por reconhecimento do genocídio a que foi sujeita.
[Notícia atualizada às 06h04 de sábado]