O historiador Jaime Nogueira Pinto considerou que Marcelo Rebelo de Sousa se tornou "um conciliador" nas funções de Presidente da República, depois de ter sido, noutras fases da sua vida política, "um perturbador".
Em respostas escritas enviadas a questões da agência Lusa sobre o atual mandato do chefe de Estado e de antevisão do segundo, para o qual toma posse na terça-feira, o professor universitário doutorado em Ciências Sociais e autor de vários livros sobre História contemporânea portuguesa elegeu a pandemia de covid-19 como o acontecimento mais marcante dos primeiros cinco anos de Marcelo em Belém.
"A coexistência com a Geringonça, já começada, teve aqui a justificação reforçada. Como em toda a parte", salientou Nogueira Pinto, considerando que, com exceção dos Estados Unidos e do Brasil, no resto do mundo, mesmo com maiores incidências letais da covid-19, "houve um movimento de acalmia, de subjugação e aceitação em relação ao poder estabelecido".
Questionado sobre os pontos fortes e fracos do atual e futuro chefe de Estado, Jaime Nogueira Pinto começou por apontar o facto de Marcelo ter "a escola da Faculdade de Direito da Clássica" (também aquela pela qual se licenciou o investigador), a que acrescentou a sua cultura política e literária - "representa bem o país no exterior" -, convicções religiosas, preocupações com o espaço lusófono e o facto de nunca ninguém ter questionado "a sua idoneidade em matéria financeira".
"Politicamente, depois de ter sido, muitas vezes, um perturbador, passou na função atual a ser um conciliador", considerou, por outro lado. .
"Vê-se como um conciliador e um árbitro num tempo em que as tensões vão, no mundo, na Europa, em Portugal, agudizar-se", prosseguiu.
No entanto, Jaime Nogueira Pinto ressalvou que "às vezes um conciliador tem que tomar decisões, e decisões que podem ser de rutura". .
"Aí veremos. Como veremos na condução de uma questão de princípio e valores, como a eutanásia. Também nesse papel de conciliador tem iniciativas de que, francamente, a direita não pode gostar, como esta de condecorar todos os militares de Abril", apontou. .
Questionado sobre a novidade comunicacional que Marcelo trouxe ao cargo, Jaime Nogueira Pinto recordou a sua faceta de "grande comunicador" desde sempre, na imprensa, na televisão, no governo, no parlamento, nas campanhas eleitorais.
"A eleição para o lugar cimeiro do país deu-lhe uma certa "graça de Estado" que atenuou ou fez desaparecer os hábitos do jogo e da intriga partidária", considerou.
Apesar de o confinamento ter reduzido a dimensão da "política dos afetos", o académico defendeu que as pessoas percebem que o Presidente da República "é genuíno nesses contactos" e que tem "uma natural empatia com a gente comum".
"Daí o apoio da massa apartidária que o reelegeu", apontou.
Desafiado a apontar as diferenças entre Marcelo Rebelo de Sousa e os seus antecessores no cargo, Jaime Nogueira Pinto defendeu que os presidentes da III República "para além da sua personalidade têm um significado histórico funcional, na medida em que representam antíteses ou sínteses, da relação de forças da época".
Depois dos primeiros três Presidentes militares (António de Spínola, Francisco da Costa Gomes e Ramalho Eanes), Nogueira Pinto considera que Mário Soares foi "o triunfo da esquerda unida anti-salazarista perante o risco de volta da direita ainda envergonhada", Jorge Sampaio "a afirmação da esquerda sobrevivente dos anos 60" e Cavaco Silva "a recuperação admitida à direita num regime intrinsecamente de esquerda".
"Marcelo Rebelo de Sousa eleito contra Sampaio da Nóvoa [em 2016], será, nestes termos, um representante da "ala liberal" reformista do outro marcelismo, depois do 25 de Abril. Era o seu território de partida -- na época o centro-esquerda permitido; hoje devia ser o centro direita assumido. Será?", questiona.
Jaime Nogueira Pinto não antevê que o Presidente da República, "este ou outro", possa ter um papel na reconfiguração do espaço da direita.
"A direita e o centro-direita é que têm que, a partir de um projeto político, ou seja, segundo uma linha de pensamento e valores políticos -- identidade nacional, valores religiosos e familiares, combate intransigente à ditadura maniqueísta do politicamente correto, defesa de uma economia livre, mas solidária -- ser capazes de criar uma unidade que, por vias constitucionais e legais, lhes permita apresentar um projeto alternativo. Aí o Presidente terá também, se quiser, uma hipótese de alternativa. Até lá...", refere.