A direita olha para o segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, que toma posse esta terça-feira, com aquela sensação de quem não sabe bem se pode ou não atravessar a estrada. Na dúvida, é melhor olhar outra vez: para a esquerda primeiro, depois para a direita. Agora outra vez para Belém.
Quem arrisca previsões quando Marcelo é a definição de imprevisível?
Na direção do PSD, pouco. A certeza é a de que o atual Presidente "tem uma componente lúdica fortíssima na visão da política", desabafa uma fonte, que acrescenta: "Ele adora brincar, o que torna muito difícil prever um segundo mandato".
Paulo Portas, que o conhece bem, prevê um mandato “diferente” do primeiro, mas tem certeza que “uma coisa muito importante será igualzinha”: a visita ao Vaticano em primeiro lugar.
“É o primeiro Presidente que interpreta de forma correta a história: Portugal é filho de uma bula de um Papa”, lembra o ex-ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, muito elogioso para forma como Marcelo representa o país lá fora. “Faz um esforço cá dentro para unir e representa-nos magnificamente lá fora”, elogia Paulo Portas, numa curta declaração à Renascença.
Sem grande esperança de que Marcelo seja diferente de si próprio, a direita, apesar de tudo, espera, com os olhos postos na negociação do próximo orçamento do Estado, mas também nas próximas eleições autárquicas.
À esquerda, Belém surge como uma ameaça que não existia no primeiro mandato: agora que já não tem nada a perder, o Presidente vai ou não atuar de forma mais próxima à da sua área política? António Costa e a sua relação privilegiada com Marcelo Rebelo de Sousa serão suficientes para dar ao governo o abrigo necessário perante a tormenta económica e social que se aproxima?
Ouvido pela Renascença, o deputado socialista Sérgio Sousa Pinto diz acreditar que o Presidente vai tentar manter uma relação de colaboração com o Governo e, ao mesmo tempo, patrocinar a recomposição política da direita. “O Presidente vai testar soluções na direita", considera, "se Rui Rio tiver um bom desempenho, contará com a ajuda de Marcelo Rebelo de Sousa na construção de um projeto alternativo; se as coisas correrem mal, é natural que (o Presidente) se interesse por outras soluções".
O socialista e presidente da comissão parlamentar de Negócios Estrangeiros não hesita em fazer a comparação que Marcelo já quis, embora noutras circunstâncias, projetar para si próprio: "Vai ser parecido com o segundo mandato de Soares."
A história dos segundos mandatos presidenciais é conhecida, por mais que o atual Presidente prometa que será exatamente o mesmo que no primeiro mandato.
"Todos os presidentes têm um segundo mandato mais interventivo” - é uma verdade que, para o social-democrata Paulo Rangel, nem merece discussão. O eurodeputado revisita o passado, desde Ramalho Eanes a Cavaco Silva, para demonstrar o facto. Lembra Eanes, quando dissolve o Parlamento após a demissão de Francisco Balsemão, em vez de nomear um novo governo liderado pelo PSD. O Presidente afirmou então que baseou a decisão na "análise das condições políticas". As condições políticas são hoje, como na altura, bastante imprevisíveis, por mais diferentes que sejam os motivos.
Cavaco Silva nem passou do discurso da tomada de posse do segundo mandato, recorda Rangel: "Praticamente demitiu ali o governo de José Sócrates, que caiu meses depois."
José Matos Correia, antigo vice-presidente do PSD e professor de direito constitucional, considera que "este é um mandato que pode ter vários mandatos, tendo em conta a situação económica e social, consequências da pandemia”. “Há um conjunto de coisas que podem determinar a atuação do Presidente", alerta. E um desses fatores, além da muito discutida eventual crise orçamental, são as eleições autárquicas.
“Acho que será um mandato de cooperação estratégica exigente”, diz à Renascença um antigo governante, frisando que exigência será a palavra-chave porque “as circunstâncias do país obrigam a que o Presidente procure que o Governo dê mais atenção à economia real, investimento, iniciativa privada”. E isso, continua o mesmo político, pode ser “um ponto de fricção”.
Autárquicas e Orçamento - condições para uma crise política?
É já a seguir
À esquerda e à direita, os vários atores políticos e os que olham com mais atenção a atualidade política nacional, não têm dúvidas de que as eleições autárquicas vão ser um momento decisivo para Marcelo Rebelo de Sousa.
Entre os mais próximos de Rui Rio, esse pode ser o fator determinante na atuação do Presidente ao longo do segundo mandato. Se o PSD ganhar Lisboa, porque a convicção é a de que as próximas autárquicas se jogam em Lisboa.
Na direção do Bloco de Esquerda, aponta-se o exemplo da interferência de Marcelo na candidatura de Carlos Moedas a Lisboa, tal como a Renascença avançou. “Demonstra que o Palácio de Belém está empenhado em ser um ator ativo na resolução da crise da direita, tendo em vista o seu regresso ao poder",
E por isso, como admitem à Renascença, "é natural que a esquerda entenda que no segundo mandato, este presidente, tal como outros da sua área política, tentará ajudar a direita a consolidar-se, a reencontrar-se, no sentido de voltar a ter um projeto de poder".
O PSD, em parte, concorda: "demonstra como continua a imiscuir-se na vida do PSD e até na de outros partidos", confidencia uma fonte próxima de Rui Rio.
Na análise de José Matos Correia, a tentação de beneficiar a sua área política não existe, mas quer as autárquicas, quer a negociação do Orçamento, serão determinantes porque "podem obrigar a uma intervenção do presidente, como até agora não foi necessária". O ex-deputado considera natural que o Presidente procure ser interventivo na procura de condições que possam garantir a aprovação do OE, mas vê pouca margem para recuos à esquerda, e, a propósito de autárquicas, recorda como António Guterres se demitiu na sequência dos maus resultados do Partido Socialista, sem que tal fosse previsível.
“Os Presidentes são garantes da estabilidade, mas precisam de alternativa”, diz à Renascença um ex-governante, que faz depender o grau de exigência do Presidente em relação do Governo da qualidade da alternativa que tiver: “Vai ser em geral mais exigente, mas vai depender, por um lado do Governo e por outro lado, da alternativa.” Ou seja, será tanto mais exigente quanto mais confiar numa alternativa política.
Recorde-se que a questão da alternativa tem sido uma constante nas preocupações e discursos de Marcelo Rebelo de Sousa. “A ineficiência do Governo também decorre disso, de não ter ‘concorrência’”, analisa um dirigente de centro-direita.
Lá porque Marcelo não quer uma crise política não quer dizer que a crise política não vá ter com ele
Marcelo Rebelo de Sousa tem feito questão em repetir a mensagem: não contem com ele para crises políticas. Já o fez até numa declaração ao país, a propósito da renovação do Estado de Emergência. “Já nos bastam a crise da saúde e a crise económica e social", disse.
Entre os dirigentes do Bloco de Esquerda, acredita-se que essa mensagem não é incompatível com um "empenho ativo do Presidente na consolidação de uma alternativa de direita. Sobretudo se as sondagens começarem a dar sinais diferentes" daqueles que temos atualmente. "É de prever que a opinião dele também se altere, não por acaso a sua própria área política o apelidou de Catavento", diz à Renascença fonte bloquista.
O problema, nota José Matos Correia, é que a existência de crises políticas não depende do Presidente da República. O ex-deputado, professor de direito constitucional, sublinha que por natureza, em Portugal, o "Presidente da República não deve ser alguém que gera crises, mas alguém que gere as crises", são poderes de equilíbrio do sistema perante situações que requerem intervenção de alguém que deve ser "árbitro, bombeiro e polícia", afirma, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira no livro "Os poderes do Presidente da República".
O eurodeputado do PSD Paulo Rangel, concorre para a mesma ideia. "Essa afirmação, (o Presidente) pode fazê-la sem ser alguma vez desmentido, os presidentes anteriores também não causaram crises políticas, resolveram-nas, isto desde Eanes a Cavaco Silva", diz, evocando de novo os presidentes passados.
Rangel não nega que seja genuína a ideia de que Marcelo Rebelo de Sousa não quer uma crise política, mas realça que isso não depende da sua vontade. “O que ele quer dizer também os outros (presidentes) pensavam", afirma, para acrescentar logo em seguida que, no governo de Pedro Santana Lopes. o presidente Jorge Sampaio pode ter antecipado uma crise política: "eu até acho que ele atuou dentro dos seus poderes, mas nesse caso, o Presidente foi um catalisador da crise, fez uma eutanásia política, se quiser".
Na direção do PSD, a leitura é clara. "Ele fará tudo o que puder para não haver crise política", diz uma fonte, que recorda como Marcelo Rebelo de Sousa sempre teve uma visão muito institucionalista do funcionamento dos governos. Mesmo enquanto presidente do partido e independentemente da sua relação com António Guterres, achava, como hoje repete muitas vezes, que os governos devem cumprir as legislaturas.
Por outro lado, nem Rui Rio nem os seus mais próximos contam muito com o atual chefe de Estado para singrar na missão de levar o PSD de volta ao poder. “Nunca tivemos esse conforto de ter em Belém alguém que nos compreendesse ou apoiasse. Entre escolher fazer o favor ao PSD ou ao PS, escolhe fazer ao PS", dizem à Renascença dirigentes próximos de Rui Rio.