Nuno Garoupa, professor da Texas A&M University School of Law, antigo presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, antevê a decisão sobre a recondução da Procuradora-geral da República como o "momento 2018" do Presidente da República.
Em entrevista à Renascença, no momento do 2.º aniversário da tomada de posse de Marcelo Rebelo de Sousa em Belém, Nuno Garoupa olha para trás e não adere à tese de que o discurso de Oliveira do Hospital, após os fogos de Outubro de 2017, foi o mais importante da acção do Presidente.
"Não tenho uma visão tão específica sobre qual é momento em que o Presidente Marcelo se define", diz Garoupa, certo, porém, de que "Marcelo tem uma noção maximalista do desempenho do cargo".
"A grande questão para o futuro é saber se esta versão maximalista é uma versão conjuntural" ou se numa eventual nova realidade, pós-2019, "o Presidente terá de ajustar a sua visão".
Conhecemos as razões de personalidade, mas porque é que, politicamente, Marcelo apostou numa presidência de proximidade?
O Presidente Marcelo usou a proximidade como forma de adequar o seu mandato presidencial. Penso que a proximidade responde a duas questões importantes. Uma é a conjuntura política em que Marcelo entra, com a novidade da geringonça e com um PSD agastado. Por outro lado, apesar de inquéritos e sondagens constantes,- é preciso não esquecer que Marcelo Rebelo de Sousa chega a Belém com um resultado claro e legítimo, mas não um resultado eleitoral por aí além.
Tem um resultado ligeiramente acima dos 50%, mas com 50% de abstenção. Portanto, Marcelo também sentiu alguma necessidade de se legitimar junto desse vastíssimo eleitorado que não votou nele.
Há um ano, Sampaio da Nóvoa dizia que Marcelo conseguiu revitalizar a função, envolvendo-a numa atmosfera geral de distensão. Quando o principal adversário diz isso, o que significa? Uma unanimidade iminente?
Não penso que a unanimidade esteja próxima, mas podemos - agora já com dois anos de presidência - dizer que Marcelo é um Presidente com uma ideia maximalista dos poderes presidenciais. Desse ponto de vista, contrasta fortemente com o Presidente anterior, Cavaco Silva, que, apesar de todas as críticas, e apesar da esquerda sempre ter suspeitado de que seria um Presidente maximalista, foi, na verdade, um total minimalista durante os seus 10 anos. Tão minimalista a ponto de ter chegado ao fim do seu mandato preso de movimentos e incapaz de resolver a situação política.
A grande questão que se pode levantar para os próximos anos é perceber se o entendimento maximalista - no sentido de ser o Presidente mais interventivo desde Eanes - terá continuidade. Porque o Presidente Marcelo não se coíbe de comentar todos os dias, de comentar decisões do Governo, decisões da Assembleia da República, proclamações dos partidos políticos muito para além daquilo que o Presidente Sampaio, o Presidente Soares ou o Presidente Cavaco fizeram. Marcelo tem, de facto, uma noção maximalista do desempenho do cargo.
Essa intervenção maximalista não levanta grande turbulência. Nem sequer os vetos presidenciais causam agitação...
Por isso, ia dizer que a grande questão para o futuro é saber se esta versão maximalista é uma versão conjuntural, tendo a ver com o facto da actual conjuntura partidária ser favorável a esse tipo de intervenção. Porque, de alguma maneira, o Presidente Marcelo tem sido o suporte da maioria parlamentar de esquerda. Naturalmente, a maioria criticaria o Presidente Marcelo e não o critica porque, em muitas intervenções, o Presidente tem sido, realmente, favorável a essa maioria.
Por outro lado, a minoria de direita, a minoria parlamentar, é a minoria que o apoiou, e também se coíbe de o criticar abertamente. Há uma conjuntura muito favorável ao Presidente da República ser maximalista. A questão é, portanto, saber se, alterada essa conjuntura, no pós-2019, vamos continuar a ter esta dinâmica ou se o Presidente terá de ajustar a sua visão presidencial à nova realidade política.
A tese, perversa, de que ao Presidente não interessam lideranças partidárias muito fortes e maiorias absolutas ficaria em aberto nessa nova dinâmica?
Não usaria a expressão "não interessam", mas diria que lideranças fortes e um governo de maioria absoluta seriam muito dificilmente compatíveis com uma visão maximalista dos poderes presidenciais. Uma de duas: ou esta visão maximalista é meramente conjuntural e o Presidente Marcelo ajustaria a sua forma de estar a uma maioria absoluta do Partido Socialista ou não é uma visão conjuntural e teremos choques e conflitos entre a Presidência e o Governo.
Lembro só que o Presidente Sampaio foi eleito em 1996 numa plataforma de entendimento minimalista dos poderes presidenciais e foi minimalista durante muito tempo, até 2004, quando surge a crise da saída de Durão Barroso, a sua substituição por Santana Lopes e a queda do Governo Santana e o Presidente Sampaio abandona o seu discurso minimalista e impõe-se como um Presidente maximalista.
Portanto, houve um entendimento meramente conjuntural. Houve ali uma alteração de entender os seus poderes presidenciais em função da conjuntura. Não sei se vai acontecer algo de semelhante ou se o Presidente Marcelo manterá a tendência. Cavaco foi minimalista do primeiro ao último dia da sua presidência.
Qual é o momento mais definidor da presidência Marcelo em dois anos? É o discurso de Oliveira do Hospital, na sequência dos incêndios de 15 de Outubro, o mais duro do mandato para o Governo?
Não tenho uma visão tão específica sobre qual é momento em que o Presidente Marcelo se define. Sem dúvida, esse foi um discurso importante, mas também é uma resposta à intervenção que o próprio Presidente teve no incêndio de Pedrógão, em Junho, em que diz a frase infeliz "fez-se tudo o que era possível fazer".
A frase marcou Marcelo naquele momento e traumatizou o Presidente, porque, evidentemente, o Presidente da República não pode afirmar o que afirmou nos primeiros momentos do acontecimento, quando não há informação e quando estão por apurar todos os elementos à volta da operação de socorro às vítimas e de combate ao fogo.
Acho que há um conjunto de intervenções em que o Presidente tem sabido, de alguma forma, equilibrar apoio e crítica na relação com o Governo. Mas diria que o grande momento 2018 do Presidente da República - e que vai ser, esse sim, um momento para definir o papel presidencial - vai ser a questão da Procuradora-geral da República: se há ou não recondução da actual Procuradora-geral.
Na aproximação à diáspora, Marcelo irá deixar marcas? A semana passada, o DN fazia manchete com "Portugueses na Califórnia zangados: queriam Marcelo e não Costa no 10 de Junho"...
Sendo membro da diáspora, sinceramente não vejo onde possa haver uma marca distintiva da presidência Marcelo. Nem sei como é que a comunicação social consegue ter sempre elementos da diáspora a passar informações como a do DN. A minha experiência na diáspora é a de que o Estado português não sabe o que é, não sabe quem a constitui e, na véspera da visita do primeiro-ministro ou do Presidente, manda uns e-mails e faz uns telefonemas para ver se consegue encher a sala.
As embaixadas e os consulados têm um funcionamento que não é mau - é péssimo em relação à diáspora. Sempre tiveram. Eu vivo fora do país há 20 e tal anos e sempre foi mau. Estes eventos são meramente para a comunicação, para a fotografia, para sair bem nas televisões e nos jornais portugueses e não acho que tenha qualquer impacto minimamente significativo na vida da diáspora portuguesa.
E quanto à política externa, área em que, constitucionalmente, Belém tem de liderar?
A política externa na presidência Marcelo é a continuidade da política externa anterior. Não penso que nessa área há uma boa sintonia entre Presidente e Governo, mas, mais uma vez temos de ter noção, do papel que Portugal tem no mundo: um papel limitado e diminuto. Gostava apenas de realçar aquele que foi, provavelmente, o momento mais importante de política externa nos últimos anos: Portugal presidir ao Eurogrupo. Nesse caso, o Presidente da República, através de notícias colocadas na comunicação social, deixou sempre claro que estava contra. Portanto, nesta matéria Marcelo até tem um problema: parece ter estado contra aquele que é o momento mais significativo em política externa nos últimos anos.
Para as próximas décadas, depois de Marcelo, a fasquia do exercício do cargo presidencial vai subir muito, em dimensões como a proximidade, os afectos, a hiperactividade? Antecipa-se já um legado ou é melhorar esperar pelos - no limite - oito anos ainda em falta?
Claramente, estamos ainda dependentes desses oito anos. Se pensarmos nos presidentes anteriores - não o Presidente Cavaco, que foi sempre um Presidente crispado e algo impopular - os mandatos de Soares, de Sampaio e do próprio mandato de Eanes ficaram inevitavelmente marcados pelos últimos anos no exercício no cargo. Portanto, é cedo para pensar em legados. Contudo espero que, isso sim, também nessa matéria o Presidente Marcelo possa inovar porque, de facto, os nossos presidentes têm sido pouco criativos na protecção e mesmo no lançamento desses legados.
Tirando o Presidente Soares, que fez uma Fundação, o Presidente Sampaio e o Presidente Cavaco fazem intervenções pontuais, mas, realmente, não desempenham o papel que se esperaria de ex-Presidentes. Evidentemente, não é com biografias, farpas ou críticas agudas aos seus sucessores que esse legado é cultivado e desenvolvido.
Mais do que avaliar agora o que pode ser o seu legado, espero é que o Presidente Marcelo possa ser criativo na forma de lançar, alimentar e promover esse património quando sair da Presidência da República.