A irmã Gabriela Bottani está desde 2015 à frente da Talitha Kum, a rede internacional da vida consagrada contra o tráfico de seres humanos, que tem sede em Roma. Criada em 2009, a rede está atualmente em 77 países, incluindo Portugal, envolve duas mil religiosas de diferentes congregações femininas e atua em colaboração com a Organização Internacional para as Migrações.
Natural de Itália, a missionária comboniana conta à Renascença que foi no Brasil - onde esteve entre 2004 e 2014 - que despertou para este drama e que, apesar de hoje já haver mais sensibilidade para o problema, faltam mecanismos de proteção para quem denuncia os casos de exploração.
Sobre a pandemia – que fez várias vítimas entre as combonianas – a irmã Gabriella diz que veio agravar as vulnerabilidades dos grupos de risco, como os migrantes, e tornou tudo mais difícil, para as vítimas e para quem as tenta ajudar. E que é preciso estar atento ao impacto que a crise económica vai ter nos fluxos migratórios e no tráfico humano, que continua a afetar sobretudo mulheres e crianças.
Está à frente da Talitha Kum, a rede de vida consagrada contra o tráfico humano, desde quando?
Desde 2015. A rede começou em 2009, sou a segunda coordenadora internacional. Antes de mim houve uma irmã salesiana, originária das Filipinas.
Quantas congregações é que integram atualmente esta rede, e em quantos países?
A Talitha Kum nasceu por decisão das madres gerais, que no ano 2001, reunidas em Roma, decidiram promover a colaboração entre os vários institutos religiosos na luta contra o tráfico de pessoas. Foi aí que começou o processo, que foi envolvendo todas as congregações que pelo seu carisma, ou por se identificaram com o combate ao tráfico como uma prioridade, foram aderindo. A rede foi criada em 2009 pela União Internacional das Superioras Gerais, que envolve duas mil religiosas.
É uma rede que congrega, sobretudo, congregações femininas? Por quê?
Esta iniciativa nasceu, estruturou-se e organizou-se a partir da sensibilidade das mulheres consagradas na Igreja, que implementaram o seu estilo de coordenação e colaboração. Hoje temos 54 redes no mundo que se identificam com a Talitha Kum, incluindo em Portugal. Mas nos últimos anos têm-se juntado também algumas congregações religiosas masculinas, leigos e até pessoas de outras tradições religiosas.
Como missionária comboniana já esteve em missão em vários locais, um deles o Brasil. Foi aí que começou a dedicar-se à luta contra o tráfico humano?
Sim, foi. Logo após a formação religiosa, fiz os primeiros votos na Alemanha, onde trabalhei com migrantes. Entre 2004 e 2014 estive no Brasil, em Fortaleza e em Porto Velho, onde o meu compromisso principal foi junto das crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. E foi aí que me deparei com a violência e com a situação dramática do abuso sexual e da exploração relacionada com o tráfico. Entrei em contacto com a rede Talitha Kum no Brasil, que se chama Um Grito pela Vida, e foi aí que começou o meu compromisso na luta contra o tráfico.
Quem são os escravos do século XXI, e quantas pessoas são vítimas de escravidão no mundo atualmente?
Os números são sempre difíceis e incertos. Algumas estatísticas falam de 29 milhões, outras de 40, e mais, milhões de pessoas escravas! Aquilo que podemos dizer de verdade é que nunca tivemos tantos escravos no mundo como hoje, que a escravidão afeta, principalmente, os grupos que se encontram em situação de vulnerabilidade e que essa vulnerabilidade é explorada. É o caso dos migrantes, das minorias étnicas, das mulheres e das crianças. Uma coisa que sabemos é que a maioria das pessoas traficadas são mulheres.
A escravidão que existe hoje é a exploração da pessoa humana, dentro de um contexto de cerceamento da liberdade, e com uma finalidade económica, de lucro, por parte de algumas pessoas. E acontece em diferentes modalidades: tem o tráfico para exploração sexual, que pode ser prostituição, pornografia; o tráfico de pessoas para casamentos forçados; o tráfico para trabalho escravo, para a servidão dentro do contexto doméstico; e o tráfico para a questão do trabalho, no campo ou na construção.
A exploração laboral, como dizemos em Portugal.
Sim, e que também existe em diferentes realidades e contextos. Por exemplo, nos Estados Unidos há mulheres que são traficadas para o trabalho na área da estética. A Inglaterra chegam pessoas traficadas para trabalhar nos postos de gasolina. Aqui em Itália, e noutros locais, temos pessoas que são traficadas e exploradas para o trabalho no campo, assim como no Brasil.
Que tipo de tráfico é que aumentou mais nos últimos anos?
Um mercado cada vez mais lucrativo é o mercado do sexo, isso com certeza. A questão da exploração laboral também. Hoje já se identificam mais as situações de tráfico de pessoas, já se reconhecem algumas formas de exploração como sendo situações de escravidão mesmo. Porque é importante dizer o que são: são graves violações dos direitos humanos!
Mas hoje, em sua opinião, já há mais sensibilidade para este fenómeno? As pessoas já estão mais alerta, até no sentido de denunciarem?
Bom, isso é mais complicado, a denúncia... Acredito que haja mais sensibilidade, e a Igreja teve um papel bem importante nisso, porque além da rede das religiosas, o compromisso do Papa Francisco, e o pedido que fez para a Igreja se comprometer e denunciar aberta e publicamente a escravidão e o tráfico de pessoas, acho que foi muito importante.
O Papa e o Vaticano têm estado muito atentos a este fenómeno e ao vosso trabalho. Recentemente foi publicado um documento com orientações para apoiar os 50 milhões de migrantes e deslocados em todo o mundo, e o Papa Francisco até instituiu um dia de oração contra o tráfico humano (8 de fevereiro, dia de Santa Bakhita). Tem sido importante este apoio?
Tem sido, sim. O Papa entregou a organização desse dia à vida religiosa, reconhecendo o compromisso que existe, mas há outras organizações dentro da Igreja que também vêm trabalhando nesta área, como a Cáritas Internacional, outros organismos católicos e até de outras confissões, governos e organizações não governamentais.
Está muita gente envolvida nesta luta. Agora, a questão da denúncia não é assim tão fácil, porque ainda faltam mecanismos de proteção das pessoas que denunciam. Ainda existe um grande medo. Há uma diferença entre denunciar o tráfico como um problema da nossa época, uma denúncia social, e aquilo que é a denúncia específica dos casos dos traficantes.
Este trabalho das congregações religiosas, da rede Talitha Kum, é valorizado nos vários países pelas autoridades policiais? Quem investiga estes crimes conta com a vossa ajuda nesta luta, sentem isso?
Com certeza. Nós sempre colaborámos. Uma das ideias não é somente colaborar entre as irmãs, mas colaborar com as autoridades. Muitas das congregações, que têm casas para acolher sobreviventes do tráfico, recebem as pessoas que são libertadas diretamente da polícia. Temos irmãs que têm preparação psicológica, ou são assistentes sociais, que acompanham a polícia quando vai resgatar as meninas, estão prontas para as receber nas estruturas de proteção. Por isso, tem sempre uma boa colaboração com as autoridades e outras organizações, quando é possível.
Em 2019 recebeu o prémio Heróis Contra o Tráfico de Pessoas, nos Estados Unidos, por este trabalho à frente da Talitha Kum. Foi importante esse reconhecimento?
Foi o reconhecimento do trabalho em rede das religiosas. A nossa é a maior rede no mundo de luta contra o tráfico, e o prémio deu uma grande visibilidade, um reconhecimento internacional a esse trabalho.
A atual situação de pandemia que atravessamos está a prejudicar de alguma forma esta luta contra o tráfico? Trouxe limitações?
Sim, com certeza, a vários níveis. Primeiro dentro dos serviços que as irmãs da rede oferecem, as pessoas que estão sendo acompanhadas em processo de reinserção social e reabilitação, muitas delas perderam o trabalho, quem trabalhava em restaurantes, por exemplo.
Com a pandemia temos enfrentado situações difíceis, porque muitas irmãs trabalham cinco ou seis vezes mais, porque agora não temos mais os voluntários para organizar as atividades dentro das casas de acolhimento. E essas jovens que vivem nessas casas ainda são afortunadas, porque estão num contexto mais protegido, mas os mais pobres, que estão em situação de exploração, estão sofrendo muito.
Como as mulheres traficadas para exploração sexual, hoje elas não têm mais para comer, e muitas são migrantes, indocumentadas, por exemplo aqui na Europa, têm acesso difícil às ajudas. Noutros casos a exploração sexual está a transferir-se para aquilo que designamos com a expressão inglesa "in doors", "dentro de casa". Cada vez mais a exploração vai vencendo de forma escondida.
E no pós-pandemia, prevê que o vosso trabalho vá aumentar? Será ainda pior?
É uma previsão difícil de fazer. Aquilo que posso dizer é que esta pandemia vem fortalecendo e incrementado as vulnerabilidades que estão a ser exploradas pelos traficantes. Por isso, teoricamente pode ser que sim, que seja pior. Mas, não sabemos ainda o efeito à posteriori de tudo isto no bloco dos movimentos internacionais. Até que ponto vamos continuar com essas dinâmicas? Como é que vai ser reorganizada a dinâmica económica? Qual vai ser o impacto no mundo das migrações e no mundo produtivo? Porque os fluxos migratórios vão incidir também naquele que é o fluxo do tráfico de pessoas.
Vamos observando. Agora, a preocupação vai aumentar sobretudo para a questão das mulheres e das crianças. Eu acredito que esta pandemia está mostrando o quanto somos uma única humanidade, e o quanto temos de tomar consciência de que somos irmãos e irmãs. Isso para mim foi também um caminho aberto no compromisso contra o tráfico, e o que desejo é que no final desta situação tão sofrida, tão violenta da Covid, possamos construir mais essa nossa irmandade, que nos leva a uma maior dignidade para cada pessoa.
Como é que tem sido viver este período de pandemia aí em Roma?
A região mais atingida na Itália foi o Norte. Aqui em Roma temos estado dentro de casa. Em termos de coordenação da Talitha Kum tenho procurado contactar, falar com as irmãs que integram a rede, escutar os problemas, e tentando organizar alguns projetos para sustentar o trabalho das irmãs nas bases. Tem sido muito nesse sentido.
A pandemia fez muitas vítimas entre as congregações religiosas, nomeadamente entre as combonianas?
Sim. Não tenho números exatos, mas a maioria foi na Itália e na Espanha. Nós, irmãs combonianas, foi logo no início da pandemia, porque temos uma casa com irmãs idosas em Bérgamo, a cidade que teve o maior contágio de covid-19 aqui em Itália. Agora a situação está a acalmar, mas houve muitas, muitas congregações atingidas, com várias irmãs que faleceram.