“Foi bonita a festa, pá/Fiquei contente” canta Chico Buarque nos primeiros versos de Tanto Mar, a música que compôs de homenagem ao 25 de Abril de 1974 em Portugal. Talvez possa, depois desta segunda-feira, cantar o mesmo sobre a entrega do Prémio Camões que lhe chega às mãos, 4 anos depois, de lhe ser atribuído.
Na altura, em 2019, o Brasil era presidido por Jair Bolsonaro. Na altura, o então presidente recusou-se a entregar ao músico e escritor o maior prémio da língua portuguesa. Agora, o Brasil é governado à esquerda por Lula da Silva e o novo presidente, juntamento com Marcelo Rebelo de Sousa, irão entregar em mãos o prémio a Chico Buarque às quatro da tarde no Palácio Nacional de Queluz.
O momento reveste-se de grande simbolismo, na opinião de Clara Capitão. A editora da Companhia das Letras em Portugal que edita os livros de Chico Buarque no nosso país diz em entrevista à Renascença que “o Chico Buarque receba agora, quase 4 anos depois, o prémio Camões é sinal de que, por fim, o Brasil vive novamente tempos de liberdade e democracia, em que a cultura e a literatura são valores maiores”.
A diretora-geral da Penguin Random House em Portugal acrescenta ainda que Chico Buarque vir “receber o prémio a Lisboa, na véspera do 25 de Abril, uma revolução a que o Chico dedicou a canção ‘Tanto Mar’ torna o momento, ainda mais simbólico para todos”.
Clara Capitão recorda ainda que “o prémio não foi atribuído na devida altura. Bolsonaro recusou-se a entregar-lhe o prémio, e Chico, declarou, sagazmente que isso era uma dupla honra, um prémio duplicado”.
Autor de obras como ‘Leite Derramado’, ‘Estorvo’ ou ‘Anos de Chumbo’, Chico Buarque foi distinguido pelo júri, por unanimidade, pela “qualidade e transversalidade” da obra. Reunido no Rio de Janeiro, o júri composto por Manuel Frias Martins e Clara Rowland (Portugal), Antonio Cícero e Antonio Hohlfeldt (Brasil), Ana Paula Tavares (Angola) e Nataniel Ngomane (Moçambique) destacou na obra de Chico Buarque, a sua “contribuição para a formação cultural de diferentes gerações em todos os países onde se fala a língua portuguesa”.
Em comunicado, o Ministério da Cultura recorda as palavras do júri: “a atribuição do Prémio Camões ao músico e escritor brasileiro reconhece ‘o valor e o alcance de uma obra multifacetada, repartida entre poesia, drama e romance’, um trabalho que “atravessou fronteiras e se mantém como uma referência fundamental da cultura no mundo contemporâneo’, concluiu o júri na sua declaração”.
Para Clara Capitão, a editora do escritor em Portugal, há na obra de Chico Buarque uma dupla dimensão. Quer na música, quer na prosa, Buarque “destaca-se por uma fina observação da sociedade e do indivíduo”.
Nas palavras da editora, Chico Buarque é um “dos grandes prosadores da língua portuguesa”. “Todas as suas criações, falam de amor, de amizade, de solidão, de sonhos e lutas. Mas os seus romances destacam-se por uma particularidade. Chico dedica um olhar sensível e solidário aos que estão à margem, aos que não encaixam e não querem encaixar, aos que procuram encontrar um lugar” refere Capitão.
A editora lembra que Chico Buarque começou a escrever no “tempo da ditadura” no Brasil, “quando precisava de encontrar uma outra forma de se expressar, visto que tinha a sua liberdade condicionada pela censura”.
“Chico voltou à escrita mais tarde, diz-se que para agradar ao pai, para ser finalmente aceite pelo pai que o incentiva sempre a ler mais, para escrever melhor. Talvez por isso, no centro dos seus romances, esteja sempre um indivíduo que procura aceitação, seja nas suas letras, ou nos romances”, explica a editora para quem “uma coisa é inquestionável. O Chico Buarque é um grande prosador e um dos grandes representantes da língua portuguesa no mundo”.
Chico Buarque foi o vencedor da edição 31 do Prémio Camões, um galardão no valor de 100 mil euros, assumido em partes iguais pelos Governos de Portugal e do Brasil. O Ministério da Cultura, através da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e do Gabinete de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC), organiza pela parte portuguesa a atribuição deste Prémio.
Instituído por Portugal e pelo Brasil em 1988, o Prémio Camões é considerado o maior prémio de prestígio da língua portuguesa. De caráter anual, presta homenagem a um escritor que, pela sua obra, contribua para o enriquecimento e projeção do património literário e cultural de língua portuguesa.