O presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), João Vieira Lopes, mostra-se apreensivo sobre Orçamento do Estado (OE) para 2022 e denuncia um ambiente generalizado de “não-valorização” das empresas. Pode ouvir esta entrevista na íntegra na Renascença esta quinta-feira às 23 horas.
As medidas anunciadas terça-feira pelo ministro Matos Fernandes para controlar os aumentos da eletricidade são suficientes? Tinham outra proposta? Chegaram a apresentá-la ao Governo?
A área do comércio e serviços não é das mais atingidas pelo preço da eletricidade. Mas as medidas anunciadas para a eletricidade são pouco dinâmicas nesta fase e não vão ter um efeito significativo. Comparadas com as de Espanha, são pouco ambiciosas. A questão dos combustíveis preocupa-nos mais. Portugal é dos países onde a sobrecarga fiscal sobre os combustíveis é das mais altas.
Tem expectativa que o próximo OE traga algumas novidades nessa área?
O sector dos transportes tem a expectativa de que possam ser dados alguns passos. Mas nós estamos muito preocupados com este Orçamento. Apesar de o CFP ter afirmado que existe uma folga de 1.600 milhões de euros, o nosso problema é se esses 1600 milhões de euros vão ter impacto no tecido empresarial, o que seria extremamente importante até para consolidar a saída da crise por que todos passámos. Vemos o Governo demasiado otimista e pouco dinâmico nas medidas. Houve medidas durante a crise, mas isto não pode ser visto como um interruptor que agora se desliga e tudo volta à normalidade. Aí, temos algumas expectativas que o Governo olhe para as empresas - coisa que não fez no último OE - e por isso participámos ativamente na proposta conjunta das confederações empresariais nessa área do OE.
O Governo já anunciou a revisão dos escalões de IRS, há a proposta fiscal das confederações patronais, há uma petição a correr, assinada por economistas e empresários que propõe a criação de uma espécie de crédito fiscal para quem em rendimentos até 50 mil euros de forma a fomentar o consumo. Para a CCP, o que poderia ser mais favorável?
Somos favoráveis ao aumento do rendimento dos consumidores - foi isso que aguentou parte da economia durante esta crise. O Governo tem um conjunto de propostas, na área social e na área dos rendimentos individuais, que poderão ser positivas, mas até agora as experiências passadas, como mexidas de escalões de IRS, foram todas de efeito muito limitado. Neste momento, o tecido empresarial precisa de um choque fiscal, não maximalista, mas que apoie o mercado interno e o exportador sem um incremento de custos significativo. Como os salários têm que subir, compete ao Governo criar um sistema de desagravamento fiscal.
Por exemplo, uma baixa de IVA temporária.
É uma das propostas, uma baixa da taxa intermédia de IVA. Pedimos audiências ao Governo e até este momento não temos qualquer resposta. Estamos bastante preocupados até porque há uma questão de fundo relevante: pensar que o crescimento da economia só se faz através dos rendimentos é claramente insuficiente. Estamos bastante preocupados com o facto de a agenda política do Governo para fazer passar o OE poder não valorizar suficientemente o papel que as empresas têm. No OE do ano passado, [isso] foi público e notório. Neste momento, não vemos nas discussões, seja do OE ou de outros aspetos legislativos, forças políticas cujo centro de preocupações sejam as empresas condutoras da economia.
Nem nos partidos à direita?
Não vemos praticamente peso político nessas questões. Há manifestações de intenções, mas que não se concretizam em propostas ou incentivos. Precisamos de incentivos à capitalização, de incentivos fiscais, à criação de emprego e vemos um ambiente global de aplicar restrições nomeadamente na legislação laboral. É um ambiente em que as empresas não são valorizadas, em particular, as privadas que são o motor da economia.
Sente que há um ambiente anti-empresarial?
Não diria anti-empresarial, embora também exista em alguns sectores da política. Diria de não-valorização. Por outro lado, há uma grande confusão em que os sindicatos por vezes alinham. Quando se fala de empresas, as pessoas só se lembram das empresas grandes quando o nosso tecido empresarial tem uma média de 10 pessoas por empresa.
Vemos pouca atenção e vou dar dois exemplos sobre o PRR: uma parte significativa do investimento é feita no sector público, a prioridade é claramente essa em detrimento dos projetos virados para as empresas. O Governo transferiu para o PRR parte das despesas de investimento que deviam ter sido feitas pelo OE porque está a suportar custos de estrutura acima do que seria razoável. Por outro lado, a primeira versão do PRR era praticamente omissa na área de comércio e serviços (que pesa mais do que dois terços quer no emprego, quer no valor acrescentado bruto, quer no PIB). Nesta versão final, tem uma ou duas coisas positivas como o acesso à qualificação e ao digital. Na parte dos últimos fundos europeus que foi para o sector privado, apenas 4% foi para o comércio, 11% para os serviços e 15% para o turismo. Esta menorização é extremamente negativa.
Essa menorização tem-se agravado desde 2015 quando o primeiro Governo de António Costa tomou posse?
Aqui não há inocentes. As percentagens têm-se mantido. Verbalmente, [os membros do Governo] dão-nos razão, mas as consequências práticas são muito baixas. Portugal tem um problema de produtividade devido a: qualificação de mão-de-obra, em que tem sido feito algum investimento; um problema de qualificação de gestão (o nosso tecido empresarial é muito atomizado e a qualidade de gestão é fraca) mas também é preciso aumentar a massa crítica do tecido empresarial. Para isso, os fundos europeus deviam incentivar os projetos coletivos, em particular o PRR. Não há, volto a dizer, inocentes em termos políticos: por vezes, é mais fácil ou mais interessante em termos eleitorais aos governos distribuir por projetinhos do que fazer projetos maiores que obriguem empresas a juntar-se, a agregar-se, a trabalhar em rede.
O número de empregados no país bateu recordes em julho, atingindo o valor mais alto desde 1998. Mas se a quantidade cresce para níveis históricos, a qualidade deixa muito a desejar. De acordo com um trabalho publicado na Renascença esta segunda-feira, quase 80% dos novos contratos são a termo ou a recibos verdes e metade entrou a ganhar menos de 900 euros. Como explica isto? É uma situação passageira porque ainda vivemos tempos de incerteza?
A economia tem algum peso de contratação a prazo, mas a incerteza quanto ao futuro é uma questão relevante para as opções. Por outro lado, o facto de não se ter generalizado o período experimental de 180 dias fez com que muitas empresas contratem as pessoas a seis meses para perceber se estão ou não adaptadas ao lugar. Há um problema global de flexibilidade em termos de contratação. As empresas têm dificuldades em fazer ajustamentos se tiverem que fazer ajustamentos individuais. O despedimento coletivo em Portugal é mais favorável do que na maior parte dos países europeus.
É preciso flexibilizar o despedimento individual, é isso?
Sim. Portugal aí tem uma rigidez bastante grande, talvez só ultrapassada pela França.
O Governo entregou uma série de propostas na concertação social para combater a precariedade e no último congresso do PS, em Agosto, o secretário-geral e primeiro-ministro, António Costa, disse mesmo que pretende obrigar as empresas de trabalho temporário a terem trabalhadores efectivos. Acha isto possível?
Nós achamos que isso é um absurdo, em função do conceito em si de trabalho temporário. A alteração que neste momento se pretende fazer em termos de Código de Trabalho tem claramente a ver com uma agenda política. Estávamos a discutir o Livro Verde há mais de um ano, deram-se avanços significativos, fez-se um acordo em 2018 que devido à pandemia não está totalmente aplicado. A agenda do Governo neste momento tem mais a ver com os objetivos políticos de aprovação do OE e outros do que com os ajustamentos que são necessários.
Está a dizer que o Governo está refém do PCP, com quem está a negociar a viabilização do OE?
Não nos pronunciamos nessa ótica partidária. Nascemos no PREC e habituámo-nos a negociar com todos os Governos. É evidente que o Governo ao fazer opções políticas para aprovar o OE, terá necessariamente que fazer compromissos com os parceiros que encontrar.
A negociação sobre o Livro Verde mudou em função do calendário orçamental?
E da agenda política do Governo, sim. Neste pacote de medidas que o Governo apresentou, há questões que são óbvias como incentivos ao emprego jovem, aumento da produtividade para fazer aumentar os salários.
E como é que se deve combater a precariedade ou acha que ela é necessária porque faz parte de alguma flexibilidade laboral?
O modelo económico nos países europeus tem que ser bastante mais flexível em termos de mercado de trabalho do que era há uns anos. Infelizmente, ainda há muitas forças políticas e sindicais e nos próprios governos que têm dificuldade em perceber que hoje em dia a flexibilidade tem que ser maior e que sem essa flexibilidade não há emprego. Isso é uma questão. Outra questão é garantir apoio social, a integração na segurança social, garantir que as pessoas e os empregadores descontam. A rigidez de tornar tudo obrigatório não tem consequências porque as empresas depois têm medo de contratar. As presunções de laboralidade e outras questões que estão a querer ser colocadas neste momento acabam por criar dificuldades ao trabalho independente, a formas de trabalho ajustadas à sazonalidade.
Já o teletrabalho, tem sentido ser regulamentado, mas damos preferência ao comum acordo, não à imposição da empresa, nem à do trabalhador, ao contrário do que se pretende fazer numa série de situações. Mas, tendo em conta a dimensão do nosso tecido empresarial, temos um problema de fundo que é a viabilidade das próprias empresas. Com um conjunto de direitos, licenças e situações em que as pessoas não podem trabalhar [na sede da empresa] por isto ou por aquilo, uma empresa de oito ou 10 pessoas tem dificuldade em ter três ou quatro em teletrabalho. O Governo começou a ter em conta a situação das microempresas porque nem tudo é uma grande elétrica ou um grande banco.
Nas propostas de alteração que já apresentou, o PS salvaguarda o caso das microempresas.
Porque foi um dos problemas que nós levantámos.
PS, BE e PCP já apresentaram propostas de alteração aos seus projectos e parece haver convergência no sentido do pagamento do acréscimo das despesas com o teletrabalho: energia e internet. Como vê estas propostas?
É lógico e legítimo que as empresas comparticipem esse tipo de despesas. Criar um fee [taxa] fixo mínimo é um absurdo, não tem lógica nenhuma, iria encarecer brutalmente o trabalho e é desfasada da realidade. O teletrabalho veio para ficar, de preferência por comum acordo e custos perfeitamente quantificáveis, nesse sentido, sim.
Ataque de Costa à Galp “é um bocado contraditório e absurdo"
Acabam agora a 30 de Setembro as moratórias. Como está a correr a negociação de créditos entre banca e empresas?
Até este momento, temos a sensação de um nível de entendimento razoável. Mas ainda não chegámos à situação definitiva. Até agora, a maior parte das empresas com quem a banca tem negociado são aquelas que a banca considera mais seguras ou mais viáveis. Quando chegar o fim do mês é que se destapa tudo.
Pode ser que a solução para as moratórias seja no Conselho de Ministros desta quinta-feira?
Há várias quintas-feiras que estamos nessa expectativa! Desde julho que falámos disso com o Ministério da Economia e o das Finanças.
Espera também que este Conselho de Ministros delibere sobre a pandemia, o fim de restrições, a lotação em restaurantes e superfícies comerciais?
Temos essa expectativa. Na última reunião do Infarmed, fiquei com a ideia que a vacinação atingiu patamares interessantes e que o nível de letalidade baixou significativamente. Há certo tipo de limitações que não tem grande sentido neste momento.
Tem alguma indicação de que o mecanismo de apoio à retoma seja prolongado caso o Governo decrete o fim das restrições às atividades comerciais?
Mesmo que os moldes sejam atenuados, tem sentido naquela lógica que já referi. Isto não é um interruptor que se desliga. As empresas vão sofrer consequências durante algum tempo. Temos estado a fazer ver ao Governo que convinha ir mantendo [apoios] por fases, mais do que por sectores. A CCP defende o critério das quebras das empresas e não por CAE [Código de Atividade Económica].
De acordo com os números apresentados esta semana pelo governo sobre o Ivaucher, foram ‘amealhados’ 82 milhões de euros, quando a previsão do Governo quando lançou a medida era de 200 milhões de euros. O que falhou?
Para já, a adesão a esta medida era complicada. Depois, foi mal comunicada. Não é uma medida linear, não faz parte da cultura portuguesa estar a amealhar para ir buscar o desconto passados três meses. A intenção era interessante, mas foi tudo um pouco mal atamancado.
Uma vez que sobram cerca de 120 milhões, tem esperança que esse dinheiro seja reinvestido nos sectores para os quais a medida se destinava?
Esperança, não tenho muito, mas que seria justo, seria.
O presidente da CIP tem insistido muito nos certificados digitais ou testes obrigatórios nas empresas. Concorda?
A CCP apresentou uma posição pública sobre esses temas ainda antes de eles terem sido abordados. Têm aparecido duas situações: de trabalhadores que se recusam estar ao lado de pessoas que não foram vacinadas e pontualmente já apareceram clientes de estabelecimentos que perguntam se os empregados estão vacinados. Não têm sido muitos casos, mas são preocupações. No caso de as pessoas não quererem ser vacinadas, das duas uma: ou o Governo considera isso um problema de saúde pública e o SNS paga os testes ou então as pessoas pagam os testes do seu próprio bolso. A empresa não deve ser obrigada a suportar esse custo.
Esta semana, na qualidade de secretário-geral, António Costa proferiu alguns ataques à Galp, dizendo que precisa de uma “lição exemplar”. Acha que se excedeu dirigindo-se desta forma a uma empresa privada?
O secretário-geral de um partido pode dizer aquilo que entender. O que é um bocado contraditório e absurdo é que se trata do primeiro-ministro. Isto só pode ser encarado no contexto da subida de temperatura de uma campanha eleitoral. É evidente que não tem grande sentido um membro do Governo colocar as questões dessa maneira, não por ser um ataque a uma empresa privada, mas porque é contraditório com a atitude mais normal de um Governo. O problema da Galp tem uma envolvente muito mais complexa do que uma postura de crime e castigo.