Guterres. Desprotecção de refugiados “está a espalhar-se como um vírus”
22-11-2016 - 10:59

A comunidade internacional falhou e os refugiados transformaram-se numa ameaça. “Não é sensato ignorar” a sensação “de medo", alerta.

O sistema internacional de protecção de refugiados tem sofrido “uma evolução dramática” desde 2015, que começou na Europa, mas “está a espalhar-se como um vírus”, afirmou o próximo secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

Num discurso proferido durante o Vision Europe Summit, que decorre na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, o ex-Alto-Comissário das Nações Unidas para os Refugiados defendeu que é crucial “restabelecer a integridade do sistema internacional de protecção” de refugiados, incluindo uma gestão de fronteiras “sensível às necessidades das pessoas”.

Porém, desde 2015, assiste-se a “uma dramática deterioração do sistema de protecção de refugiados” e à prevalência da “agenda da soberania nacional” sobre “a agenda dos direitos humanos”, assinalou o antigo primeiro-ministro português.

Nenhum país conseguirá resolver sozinho o desafio das migrações, devendo os grupos regionais, como a Europa, “assumir colectivamente as suas responsabilidades”, defendeu.

Ao mesmo tempo, é essencial “criar mecanismos de efectiva solidariedade” com os países de primeiro acolhimento, que estão mais a Sul do que a Norte. “Por que devem eles manter as suas fronteiras abertas, quando os outros estão a fechá-las”, questionou.

“A comunidade internacional fracassou” na protecção dos sírios, reconheceu, sublinhando que os mecanismos de cooperação regional têm “um impacto limitado”, nomeadamente porque “o nível de desconfiança é muito grande”.

Guterres defendeu que “as políticas de cooperação para o desenvolvimento têm de ter em conta o impacto na mobilidade humana e têm-no ignorado”.

Ameaça e medo associados aos refugiados

Criar mais oportunidades para as pessoas ficarem nas suas comunidades é uma das sugestões do próximo líder das Nações Unidas. Assim, “as migrações resultarão de vontade e não de necessidade, de esperança e não de desespero”, distinguiu.

Referindo-se aos recentes resultados de eleições e referendos, Guterres reconheceu a “grave deterioração nas opiniões públicas do mundo” sobre as migrações. “Os refugiados transformaram-se numa ameaça”, lamentou.

O secretário-geral das Nações Unidas designado disse acreditar que “não é sensato ignorar” a sensação “de medo". “Não seremos eficazes se não formos capazes, líderes políticos, organizações internacionais, sociedade civil, de dar respostas concretas aos sentimentos” de comunidades e populações, frisou.

As migrações “são inevitáveis” e, com elas, as sociedades serão, inevitavelmente, “multiétnicas, multirreligiosas e multiculturais”. O segredo – reclamou – está em gerir a “riqueza” da diversidade, firmando um “sentimento de pertença”, o que implica um “forte investimento”, político, económico, social, cultural, de Estados, autarquias, sociedades civis.

“Se não investirmos na diversidade, seremos surpreendidos por mais dos que certos resultados eleitorais, pois os valores que temos e a segurança global serão postos em causa”, alertou.

Guterres – cuja eleição para secretário-geral das Nações Unidas foi apresentada como “a única boa notícia de 2016” pelos anfitriões do Vision Europe Summit – confessou não estar “particularmente optimista com o atual cenário internacional”, mas disse acreditar que, enquanto alguns vêem as migrações como “o problema” de hoje, outros sabem que são “uma solução”.

Respostas globais precisam-se

Desde logo, para os desafios demográficos. “Sem migrantes, as sociedades europeias não serão sustentáveis”, avisou.

As migrações “estão cá e estão para ficar”, resumiu, assinalando “a falta de capacidade dos governos em gerir” este “fenómeno inevitável” e instando à adopção de “respostas globais ou, pelo menos, regionais”.

“A melhor atitude é tentar gerir as migrações e o problema é que, até agora, não houve um esforço concertado para o fazer”, criticou.

A “ausência de mecanismos globais” só tem beneficiado traficantes e criminosos, hoje “corporações multinacionais”, observou, comentando que se gasta “muito mais dinheiro a combater o tráfico de droga do que o tráfico de pessoas, que é muito pior”. E acrescentou: “Nunca vi barões do tráfico de pessoas serem detidos, mas já vi barões do tráfico de droga serem-no”.