Soluções criadas por doentes e cuidadores “não são mezinhas”. Há exoesqueletos de 85 mil dólares
15-09-2022 - 07:15
 • Ana Carrilho

Plataforma de origem portuguesa tem cerca de 1.800 soluções validadas. E já não é vista com tanto preconceito pela classe médica. Até ao início de outubro decorre mais uma edição do programa de aceleração, que este ano tem dez equipas com projetos inovadores.

“Neste momento temos cerca de 1.800 soluções validadas pela equipa médica da Patient Innovation, num contexto de mais de cinco mil submetidas por doentes e cuidadores informais”, diz Pedro Oliveira, um dos fundadores da plataforma, em entrevista à Renascença à margem da 3.ª edição do bootcamp, que teve a primeira etapa no início de setembro, na NOVA SBE, em Carcavelos.

Todas as propostas validadas são convidadas a candidatar-se ao programa de aceleração que passa também (virtualmente) por Barcelona e termina com uma semana de trabalhos na Copenhagen Business School, na Dinamarca.

“Depois fazemos uma seleção e aceitamos uma pequena percentagem. Este ano candidataram-se mais de 100 equipas e selecionámos dez. Não temos capacidade para trazer mais, infelizmente”, diz Pedro Oliveira.

As equipas vêm de oito países: Portugal, Dinamarca, Espanha, França, Polónia, Reino Unido, Holanda e Ucrânia, mas envolvem membros de muitos mais países. “As equipas são cada vez mais multinacionais”.

Por outro lado, os projetos selecionados estão em estádios de desenvolvimento mais avançados do que anteriormente, com protótipos, prestes a entrar no mercado ou já a ser comercializados.

Proposta pode ajudar muita gente? É o primeiro critério

Trata-se sempre de projetos desenvolvidos por equipas que incluem doentes ou cuidadores informais. E que têm impacto ou potencial de impacto para muita gente nas mesmas circunstâncias.

“Isto pode ajudar muitas pessoas ou não? É um critério fundamental para a seleção que é feita pela equipa médica da Patient Innovation, com colegas da Copenhagen Business School e do Imperial College” para entrar no programa de aceleração”, refere Pedro Oliveira.

Estas equipas participam ainda num concurso interno e no fim do ano, no bootcamp do IET Health (Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia em Saúde). “Tem sido uma boa experiência porque as nossas equipas chegam lá e ganham, como aconteceu com os Biel Glasses (1º entre mais de 350 concorrentes) ou dão nas vistas”.

Como as empresas não estão, normalmente, prontas a ter sucesso, recebem uma ajuda adicional. “Temos universidades envolvidas no projeto. O que faço com alunos da minha universidade em Copenhaga e também aqui da NOVA SBE é criar equipas de cinco elementos que, com a supervisão de dois professores, ajudam as equipas do bootcamp a ultrapassar alguns desafios. Por exemplo, uma equipa quer entrar no mercado canadiano e precisa de saber como o pode fazer, as questões logísticas, jurídicas e fiscais a ter em conta; como é que os utentes poderão ter acesso ou reembolso de despesas com o produto. Os nossos alunos ajudam nessas questões”, explica Pedro Oliveira.

Acerca dos resultados obtidos pelas equipas participantes nas edições anteriores, Pedro Oliveira é claro: “não temos notícia de que algum tenha morrido. Pelo contrário, há casos de grande sucesso, que já se materializaram e estão no mercado.

É o caso dos Biel Glasses, uns óculos digitais criados por um pai para o seu filho com visão reduzida. Biel via apenas uma pequena área à sua frente, tornando tudo o resto perigoso. Mas com estes óculos há uma construção que permite que tudo fique no seu campo de visão.

O projeto já recebeu vários prémios, incluindo o do EIT Health Tour em 2020 e o Prémio Empreendedor XXI no Mobile World Congress.

Por outro lado, os Glooma – equipa portuguesa que participou na edição do ano passado – conseguiu que a sua SensoGlove recebesse já inúmeros prémios. Esta luva com sensores nas extremidades que ajuda a mulher na apalpação da mama e a detetar precocemente o cancro da mama está em ensaios clínicos. O projeto só não está mais desenvolvido devido à escassez de componentes, potenciada pela pandemia e pela guerra.


“Mezinhas?! É o pior que me podem dizer”

A plataforma foi criada em 2014 pelos professores universitários Pedro Oliveira e Helena Canhão e, a princípio, olhada com alguma desconfiança pela comunidade médica.

Oito anos depois, Pedro Oliveira admite que ainda existe algum preconceito de certas pessoas quando ouvem falar do projeto pela primeira vez; questionam-se como é que é possível que doentes arranjem soluções médicas. Riem-se, normalmente assumem que são soluções simples, reagem com alguma coisa do tipo “ah, toma um chazinho para se sentir melhor, não é?”, conta Pedro Oliveira.

“Fico um bocado danado quando me perguntam se são mezinhas. Acho que a pior coisa que me podem dizer. Há soluções simples, mas por vezes também estamos a falar de exoesqueletos para ajudar tetraplégicos a andar e que custam 85 mil dólares, como o que um pai israelita criou para o filho”, sublinha o fundador da Patient Innovation.

No entanto, admite que a plataforma hoje já é mais conhecida e aceite. “Ainda não acontece a nível global, é mais no mundo que fala inglês, português e um bocadinho de alemão. Embora também já tenhamos algumas partes do site em chinês”.

Ainda assim, a Patient Innovation já envolve uma comunidade de cerca de 300 mil utilizadores, em todo o mundo. E tem recebido diversos reconhecimentos internacionais, nomeadamente das Nações Unidas.

Em 2016, o então secretário-geral, Ban Ki-moon referiu-o como um dos cinco projetos selecionados como exemplo de “Compromissos com a Ação Coletiva” e recentemente foi nomeado como um exemplo de Boas Práticas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Mais do que crescer, Pedro Oliveira diz que o foco, agora, é perceber bem que outras coisas podem ser feitas. E refere as três atividades principais: os bootcamps, para ajudar os empreendedores a desenvolver os projetos; os showrooms, para as empresas que mostram interesse em conhecer as soluções e eventualmente, comercializá-las (o que grande parte dos empreendedores não têm condições) e a ajudar à divulgação, para aqueles criadores que não querem comercializar, mas apenas partilhar livremente as suas ideias.

E é com entusiasmo que o docente e fundador da plataforma refere que já sente a curiosidade de alguns académicos e investigadores em relação ao trabalho da Patient Innovation.

Plataformas úteis para partilha rápida de conhecimento

O foco da plataforma é a Saúde, mas assim que começou a guerra na Ucrânia foi criada uma secção dedicada a partilhar soluções simples, mas inovadoras, que pudessem ajudar os refugiados e as vítimas do conflito: fazer um kit de emergência, construir um power bank para carregar o telemóvel, fazer um purificador de água, um chuveiro portátil, um fogareiro ou até, procurar alojamento noutro país. Tudo traduzido para ucraniano.


“Recebemos mais de 100 propostas, algumas muito interessantes e até bélicas; estas obviamente, não partilhamos. Tem sido um grande sucesso. Há muita gente que vem diretamente à plataforma, mas a divulgação é muito superior através dos grupos nas redes sociais”.

Anteriormente, já tinha acontecido o mesmo em relação à pandemia de Covid-19, em que a plataforma recebeu centenas de propostas de soluções. Algumas acabaram por ser adotadas em ambiente hospitalar.

Foi o que aconteceu, por exemplo, com a máscara de mergulho da Decatlon que, no pico da pandemia, foi adaptada e usada para substituir os ventiladores que não chegavam para todos os doentes. “Em circunstâncias normais isto não aconteceria, mas de repente, foi preciso improvisar”.

A adesão à Patient Innovation leva Pedro Oliveira a sugerir que este tipo de plataformas pode ajudar a sociedade a ser mais resiliente. “Hoje é uma guerra, mas amanhã pode ser um sismo. E se tivermos um sismo – esperemos que não – há um conjunto de informações básicas que era útil a população saber e se calhar, não sabemos onde está”.

“Perante as catástrofes naturais crescentes, as inundações, os incêndios, os problemas com o aquecimento global, as mudanças drásticas no clima … será que este tipo de plataformas pode ajudar as pessoas? A resposta que tenho, nomeadamente com a experiência da Ucrânia e da pandemia, é que sim, pode” frisa Pedro Oliveira.

“Hoje, para o bem e para o mal, estamos todos online. As plataformas podem, de facto, ser muito úteis para partilha rápida de conhecimento. É a mensagem que gostava de deixar”.