Há um mês, António Costa acharia que ia chegar ao debate do Estado da Nação a desfiar conquistas. Saída do procedimento por défice excessivo, crescimento da economia a superar previsões, desemprego abaixo dos dois dígitos... Mas os acontecimentos do último mês fizeram com que o Governo enfrente o debate desta quarta-feira no seu pior momento de sempre, como reconheceu Pedro Nuno Santos, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares.
"Objectivamente", disse Pedro Nuno Santos em entrevista à Renascença e ao "Público", este é o "momento mais difícil" do Governo. O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares referia-se, sobretudo, ao impacto causado pela morte de 64 pessoas no incêndio que, a 17 de Junho, começou no concelho de Pedrogão Grande. "É uma tragédia que nos atinge a todos e ao Governo também, em particular", dizia Pedro Nuno Santos na entrevista, em que tentava desvalorizar o furto de material militar das instalações do Exército em Tancos.
Ainda não tinha, contudo, acontecido o terceiro episódio deste mês "horribilis" de António Costa: a demissão de três secretários de Estado por causa de um caso já com quase um ano. Fernando Rocha Andrade, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, João Vasconcelos, secretário de Estado da Indústria, e Jorge Oliveira Costa, secretário de Estado da Internacionalização, demitiram-se no domingo por causa das viagens que fizeram a convite da Galp para verem fotos da selecção nacional, no Euro 2016, em França.
Os três governantes pediram para serem constituídos arguidos na investigação em curso. Soube-se, depois, que a decisão de os constituir arguidos já tinha sido tomada, embora ainda não tivessem sido notificados.
Trata-se de três nomes de peso dentro do Governo, apesar de não serem ministros. Muito próximos do próprio primeiro-ministro, eram os homens de António Costa nos respectivos ministérios. Dos três, Rocha Andrade será o mais difícil de substituir, pelas funções que tinha e pelo facto de já estar em curso o processo de preparação para o Orçamento do Estado do próximo ano.
Apesar de uma parte importante – as alterações aos escalões do IRS – estar praticamente fechada (o primeiro-ministro já anunciou o desdobramento do segundo escalão), substituir, nesta altura do processo orçamental, um secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, habituado a lidar com o que os socialistas chamam os "primos" à sua esquerda, não será tarefa fácil.
Pedrogão, Tancos e o caso que ficou conhecido como "Galpgate" tornaram este debate do Estado da Nação bem mais difícil para António Costa do que o desfile de resultados económicos que gostaria de fazer no plenário.
Oposição ataca crise nos serviços e na autoridade do Estado
A oposição vai, certamente, pegar naqueles três casos para atacar o Governo no debate que terá cerca de quatro horas. PSD e CDS consideram que as políticas lideradas por António Costa estão a pôr em causa os serviços públicos, mas também a autoridade do Estado.
O PSD, que tem nas últimas semanas, atacado o Governo pelo uso de cativações como estratégia para cumprir o défice, vai voltar a criticar o que Luís Montenegro chama de "austeridade manhosa".
"Mais listas de espera nos hospitais, cirurgias adiadas, escolas encerradas, transportes públicos com muito menos ofertas e pior serviço. E, agora recentemente, um sistema de Protecção Civil que colapsou no exacto momento em que as pessoas precisavam dele — com perdas humanas como nunca antes tinha acontecido — e uma estrutura de defesa que não cuidou de garantir a própria segurança", antecipou o líder parlamentar do PSD em declarações à Lusa.
Também o CDS quer saber onde o Governo tem fechado os cordões à bolsa. "Que diga onde e quais os programas, quais as obras em concreto na saúde, educação, forças de segurança e Forças Armadas que, por força das cativações, deixaram de ser feitos, até para sabermos qual é o estado real da Nação", diz o líder parlamentar, Nuno Magalhães.
O dirigente do CDS-PP considera que a tragédia dos incêndios e o furto de armamento pesado em Tancos vão inevitavelmente marcar o debate e diz que os dois casos mostram uma crise de confiança nas entidades do Estado.
A presidente do CDS, Assunção Cristas, já pediu a demissão dos ministros da Defesa e da Administração Interna. E, há cerca de um ano, o CDS foi o único partido a pedir a demissão dos secretários de Estado que agora estão de saída.
Esquerda não ataca, mas tem críticas
À esquerda, as criticas também hão-de aparecer, apesar da aliança parlamentar que sustenta o Governo de António Costa. Mas o tom geral deve ser de congratulação pelas conquistas alcançadas ao longo do último ano político, sobretudo no que toca à reposição de rendimentos. PCP e Bloco devem, cada qual, salientar o que consideram ser as suas conquistas, mas também insistir que é possível fazer mais. Alterações no IRS, na legislação laboral, aumento do salário mínimo, melhoria nos serviços de saúde e educação fazem parte do caderno de encargos dos partidos à esquerda do PS.
"Em 2016, o défice ficou abaixo do previsto pelo Governo, mas a margem orçamental não foi utilizada para reforçar os serviços públicos", lamenta o líder parlamentar do Bloco de Esquerda, Pedro Filipe Soares, à Lusa. E o mesmo tom é usado por João Oliveira, o presidente da bancada comunista. A governação do PS, diz João Oliveira, "confirmou a derrota da ideia que não havia alternativa aos cortes de rendimento", mas "é preciso ir mais longe".
"Não deixamos de sublinhar que a incapacidade e falta de vontade do Governo em romper com a política de direita deixa o país sujeito a fragilidades e vulnerabilidades, algumas delas estruturais", afirmou João Oliveira à Lusa, reconhecendo, tal com os outros partidos da esquerda, que os casos de Pedrogão e de Tancos vão entrar no debate.
"Há um antes e um depois de Pedrógão na reflexão política porque estes incidentes penosos chamam-nos a atenção para os aspectos mais frágeis da nossa organização social e da capacidade operativa do Estado", reconhece Carlos César, presidente e líder parlamentar do PS,
César, no entanto, adianta que o seu partido vai destacar, neste debate a conjugação da consolidação orçamental com a política de "progresso social e económico".
A maioria dos indicadores económicos teve uma evolução positiva no último ano. O défice ficou abaixo dos 3%, permitindo a saída do procedimento por défice excessivo, o Banco de Portugal e FMI reviram em alta as previsões de crescimento da economia para este ano e a confirmar-se os 2,5 de crescimento será o maior do século em curso e o desemprego desceu abaixo dos 10%.
Mas a dívida não para de crescer, os juros estão mais altos do que o previsto e a venda do Novo Banco continua por fechar (o Governo já adiou para Novembro o negócio que devia estar fechado no início de Julho). Até a aprovação de Bruxelas a este negócio, que poderia ser outra das conquistas que o primeiro-ministro levaria ao Parlamento, passou despercebida numa semana em que António Costa voltou de férias, que acabaram também elas por ser um caso e um motivo de crítica a um Governo que contava chegar a este debate em estado de graça.