Um compromisso eleitoral para o combate à corrupção
04-12-2023 - 06:18
 • Luís Caeiro

Os responsáveis que hoje contestam as disfunções da justiça estão no papel paradoxal de vítimas e de responsáveis. Só têm que se queixar de si mesmos. As eleições que vão ocorrer em março devem ser uma oportunidade para se dar um passo no sentido de promover uma cultura de transparência e integridade.

A Deloitte acabou de publicar o Corruption and Fraud Survey 2023 que dá a visão dos líderes empresariais portugueses sobre a ocorrência e causas dos fenómenos de fraude e corrupção, no contexto empresarial, e esclarece os mecanismos que estão a ser adotados para mitigar estes riscos. Foram sondadas 137 grandes empresas e PMEs, abrangendo os setores industrial, financeiro, dos bem de consumo, tecnológico e outros.

Os resultados indicam que mais de metade dos inquiridos considera ter havido um aumento ligeiro ou significativo dos casos de fraude, durante o último ano. Só 9% refere que o número de casos diminuiu. Apesar do reconhecimento de que o fenómeno aumentou, apenas 23% dos inquiridos afirma que a sua empresa experimentou algum tipo de fraude ou conduta imprópria, nos últimos dois anos. As ocorrências mais frequentes são os crimes cibernéticos e fraudes tecnológicas (35%), os desvios de fundos e a apropriação indevida de ativos (17%) e o crime financeiro (14%).

Os dados obtidos também permitem caracterizar a perceção dos responsáveis empresariais sobre os riscos de fraude e infrações conexas, que as empresas enfrentam. Os principais são os conflitos de interesses não manifestados (63%), os recebimentos ou ofertas indevidos de vantagens (45%), o abuso de poder (23%), o tráfico de influências (23%), os pagamentos para facilitação de processos (20%), e a lavagem de dinheiro e branqueamento de capitais (12%).

Na perceção dos inquiridos, as principais causas da ocorrência de fraudes nas empresas portuguesas são a ineficiência dos sistemas de controlo (46%), a falta de valores éticos (32%) e a pressão para a obtenção de resultados (11%). Quase metade das empresas identificam os mecanismos de controlo e a escassez de recursos como os principais riscos na mitigação da ocorrência de fraudes.

A perceção de que a fraude e a corrupção têm aumentado nas empresas portuguesas, apesar do investimento que muitas estão a fazer na aplicação do Regime Geral de Prevenção da Corrupção, pode significar que há mais casos, mas também pode querer dizer que se está mais atento à sua ocorrência e à necessidade de os controlar. De qualquer modo, 16% dos inquiridos afirma ter perdido receita nos últimos dois anos em resultado de eventos de fraude e corrupção. Note-se, contudo, que os prejuízos da corrupção no meio empresarial vão muito além do plano financeiro. A corrupção destrói as regras de mercado e da sã concorrência, quebra a confiança nas relações negociais com os parceiros, condiciona as decisões de investimento, arruína a reputação das empresas e as carreiras dos profissionais e, em muitos casos, leva à destruição do negócio.

O quadro traçado pelo estudo da Deloitte não pode ser isolado da situação geral do país. Dos casos que têm vindo a público nos últimos anos e da crise política atual. Os riscos de corrupção que existem nas empresas privadas são os mesmos que ocorrem na gestão pública e que agora estão sob investigação da justiça: os conflitos de interesses, o tráfico de influências, o compadrio, o recebimento indevido de vantagens e o abuso de poder. Só que, na esfera política, o seu impacto atinge a credibilidade das instituições, a legitimidade moral dos líderes, as bases da democracia representativa e o próprio estado de direito. Os indícios de corrupção, o uso da mentira, a manipulação da comunicação e, sobretudo, os conflitos institucionais a que estamos a assistir, mesmo antes de a ajustiça se pronunciar sobre os eventuais responsáveis, são um tapete vermelho para o radicalismo e uma via rápida para a polarização social.

O poder destrutivo da corrupção na esfera política agrava-se ainda com sucessão de atitudes e declarações dos atores políticos, na sequência da intervenção da justiça. É o que está a suceder com as críticas de vários responsáveis à investigação judicial que levou à demissão do governo. As críticas estão a vir de governantes e deputados, uns no ativo, outros que já desempenharam funções oficiais, que tiveram nas mãos o poder de alterar o quadro legal de que se queixam, nada tendo feito. Só agora despertaram para problemas que afetam há muito a generalidade dos cidadãos. Sabe-se que a justiça necessita de reformas e de meios que reduzam a sua morosidade, criem mecanismos que aumentem a transparência, que finalmente se resolva a questão do segredo de justiça, que se reveja o garantismo que leva os processos à prescrição, mas nunca se conseguiu o consenso político necessário.

Os responsáveis que hoje contestam as disfunções da justiça estão no papel paradoxal de vítimas e de responsáveis. Só têm que se queixar de si mesmos. Entretanto, os problemas que não souberam ou não quiseram resolver são trazidos pelos próprios à praça pública, favorecendo o descrédito da função judicial e lançando a suspeição sobre a separação de poderes. São, por isso, duplamente responsáveis: pelas reformas que não fizeram e pelo alarme público que provocam. As suas intervenções estão também a contribuir para a perceção negativa das instituições, da atividade política e da democracia representativa. É mais uma prova de que a corrupção, ou a simples suspeita, tendem a desencadear sequências de reações incontroláveis que ainda contribuem mais para minar a confiança social e o prestígio das lideranças.

Segundo o estudo da Deloitte mais de 90% das empresas que responderam estão a promover uma abordagem de tolerância zero à corrupção. Estão a investir em mecanismos de big data e em ferramentas de inteligência artificial generativa para identificar padrões e comportamentos suspeitos, e simular cenários hipotéticos. Muitas estão a reforçar a formação, a liderança pelo exemplo, a recorrer a auditorias internas e externas, e a avaliar periodicamente os riscos de corrupção, designadamente a existência de conflitos de interesses. Outras estão a implementar as normas ISSO 37001:2016 e 37002:20021, para garantir que têm práticas éticas nos negócios.

É o momento de os partidos políticos e dos órgãos do estado seguirem o exemplo do esforço que está a ser feito no setor privado. As eleições que vão ocorrer em março devem ser uma oportunidade para se dar um passo no sentido de promover uma cultura de transparência e integridade, na atividade política e na administração pública. É da maior importância que todos os partidos políticos que se candidatarem nas próximas eleições incluam nos seus programas propostas de planos de combate à corrupção, e de promoção da transparência e integridade, no exercício de funções públicas. Não se trata de fazer da corrupção o tema da campanha nem de encontrar soluções no calor dos acontecimentos. É aproveitar a oportunidade para se comparar propostas e vincular o futuro governo a compromissos de ação que ficarão sob o escrutínio da opinião pública. Quem receia aceitar o desafio?


Luís Caeiro, professor na Católica Lisbon School of Business & Economics

Este espaço de opinião é uma colaboração entre a Renascença e a Católica Lisbon School of Business and Economics