Para além dos casos, dos múltiplos debates e da entrada em cena dos “animais que falam”, também há temas chave ausentes desta campanha eleitoral. E a ausência mais chocante é a da pobreza.
Se há dois milhões de portugueses nas malhas da miséria, esse teria que ser um tema crucial da campanha. Muitos destes eleitores não votam. Excluem-se de um sistema que não os inclui. Talvez por isso não haja um discurso para os pobres: se não votam, não decidem.
As receitas políticas e económicas das últimas décadas não resolveram, antes agravaram a pobreza. Se as velhas não resultaram, quais são as novas soluções capazes de gerar mais riqueza que permita aos mais pobres saírem, com dignidade, dessa situação?
Não se trata, sobretudo, de distribuir dinheiro, mas de criar condições de sustentabilidade económica e social que permitam aos mais pobres aspirar a uma vida digna à qual têm direito.
Noutro plano, a agenda escondida dos “costumes” devia preocupar-nos. E também ela se escondeu quase por completo da campanha eleitoral.
O que está escrito nos programas eleitorais sabemos, mas ignoramos os temas que alguns partidos vão tirar da cartola sem coragem de os desvendar no devido tempo, que é este: o momento das eleições.
Por outro lado, vejo dirigentes a falar na dignidade da pessoa humana, a propósito da pena de morte. E com razão. Mas esquecem-na (à dignidade humana e metem-na rapidamente na gaveta) quando se fala na eutanásia, no aborto ou na liberdade de escolha na educação ou na saúde.
A dignidade de toda e qualquer pessoa é uma dignidade integral e abrange por isso todos os capítulos da vida: do nascimento à morte, da escola ao emprego, da saúde à economia, passando pela justiça e pelo sistema penal e jurisdicional.
A dignidade da pessoa humana não é (ou não devia ser) um valor de mercado que possa oscilar, em função da mera ideologia ou do interesse partidário.
A dignidade ‘à la carte’ que se exibe ou esconde conforme a circunstância ideológica de cada um, gera casos como este: no ordenamento jurídico português, um mesmo bebé já concebido, mas não nascido é simultaneamente tratado como pessoa e como coisa.
Para efeitos sucessórios (como estabelece o nosso Código Civil), o bebé é uma pessoa a partir do momento em que é concebido, mas para efeitos abortivos não passa de uma coisa.
Se os direitos patrimoniais do nascituro já concebido são assegurados e tutelados pela ordem jurídica portuguesa, como é que o seu direito à vida pode estar desprotegido e à mercê da decisão de terceiros? Devem os bens materiais ser melhor defendidos do que o direito à vida, enquanto direito fundamental?
Não está obviamente em causa a compaixão devida a tantas mulheres em situações dolorosas e inimagináveis. Mas a mesma compaixão deve ser invocada para a vida humana que tão facilmente se asfixia nessas circunstâncias.
A criança já concebida (e cujo desenvolvimento uterino a ciência permite acompanhar e conhecer com uma impressionante proximidade) é a mesma. Porém, essa mesma vida é tratada com dignidade ou sem ela, conforme as circunstâncias.
Outra preocupação ausente da campanha eleitoral é o que se passa a leste da Europa. Putin procura ressuscitar o império soviético, impondo-se à vontade dos povos pela ameaça da força das armas.
Os tambores de guerra a leste exigiriam uma clarificação das posições dos partidos portugueses. É a leste, mas na Europa. Diz-nos respeito, mas não parece.
Tal como nunca vi André Ventura demarcar-se dos regimes de extrema-direita que provocaram uma tragédia mundial, PCP, Livre e Bloco de Esquerda deviam explicar se rejeitam as receitas trágicas do marxismo-leninismo do passado, com todas as manifestações internacionais que agora Moscovo procura reeditar.
Dir-me-ão que alguns destes temas não são fáceis de entrar na campanha. E é verdade. Mas não o são também porque não há em Portugal uma cultura sólida de debate. Discute-se muito, mas debate-se pouco. Temos fogachos, mas é sol de pouca dura. Os temas mais sérios eclipsam-se e não permitem um debate que, sendo cultural, deve ser acessível a toda a sociedade.
Por isso, é normal que o conteúdo das campanhas eleitorais reflita o que é habitual no país.
E não, não é apenas culpa dos políticos. É tarefa de todos e de todas as instituições, incluindo os meios de comunicação.
Em qualquer caso, as eleições legislativas deste domingo serão certamente das mais imprevisíveis dos últimos anos. Para além dos fatores políticos será necessário aferir o efeito pandémico nos resultados.
Em rigor, ninguém sabe o que farão os eleitores infetados e em isolamento. Irão votar em peso ou vão engordar a abstenção?
E falta também apurar o comportamento daquela percentagem dos eleitores saudáveis que não confiam no sistema (não) montado para garantir a votação dos mais afetados pela Covid-19.
Do ponto de vista político, o PSD cresceu nas últimas semanas. As sondagens mais recentes apontam para uma clara subida de Rui Rio. Mas o efeito das sondagens pode também levar à concentração de votos no PS, ao invés do que sucedeu nas autárquicas.
Em Lisboa, as sondagens negativas beneficiaram Moedas. As sondagens davam-no como irremediavelmente perdido. O povo de esquerda acreditou. E não se mobilizou. Os eleitores de direita fizeram o oposto e concentraram o voto em Carlos Moedas. E Moedas ganhou.
Nas legislativas, sondagens muito favoráveis ao PS poderiam ter semelhante efeito, conduzindo à tranquila pulverização dos votos pelas diversas formações de esquerda.
Sejam de direita ou de esquerda, os eleitores, sem a ameaça de uma derrota, baixam a guarda, administram o voto com mais criatividade ou acabam mesmo por desmobilizar.
Por isso, sondagens que apontem para um empate técnico ou para a vitória de Rui Rio poderão potenciar o voto útil no PS. De resto, é o que indica a sequência das sondagens até agora publicadas. António Costa só voltou a subir quando Rui Rio surgiu à frente ou, pelo menos, tecnicamente empatado nalguns inquéritos de opinião.
Objetivamente, a pressão das sondagens parece beneficiar o voto útil nos socialistas.
E é verdade que a dispersão de votos no PCP, no Bloco de Esquerda e no Livre beneficiam os partidos à direita e enfraquecem o PS.
O mesmo se passa à direita, embora com uma grande diferença. Enquanto a esquerda já fez e no limite pode voltar a fazer a geringonça, tal não parece viável à direita.
Se Rui Rio como eventual primeiro-ministro não desmentir o que já garantiu o mesmo Rui Rio enquanto presidente do PSD, não haverá, em caso de vitória, entendimentos com o Chega. E desse modo, mesmo com maioria de direita no Parlamento, o governo do PSD seria frágil: enfrentaria a firme oposição da esquerda e dependeria da boa vontade do Chega.
Votar no CDS ou na Iniciativa Liberal significa escolher partidos que tendencialmente se poderão entender com Rui Rio em caso de vitória do PSD.
Votar no Chega significa escolher um partido com o qual o PSD dificilmente se entenderá, ainda que vença estas legislativas. Haverá entendimentos sim, mas tão pontuais quanto precários.
A solidez eleitoral do Chega beneficia os partidos de esquerda e fragiliza o PSD.
Dito de outro modo: um governo forte do PSD implica um Chega mais fraco do que as sondagens preveem.
Quanto maior for a votação no Chega, mais débil será uma vitória do PSD. Por isso, os votos no Chega interessam ao PS.
Valorizar André Ventura é um modo eficaz de António Costa desvalorizar Rui Rio. Costa sabe que um Ventura mais forte torna Rio mais fraco, ainda que o PSD vencesse as eleições.
Neste processo eleitoral, Ventura é um “querido inimigo” de António Costa. A subida de Ventura não é um bom sinal para o país, mas representa uma grande ajuda para o PS.
Por outro lado, um Rui Rio vitorioso, mas que não quisesse depender do Chega, também não poderia ensaiar o bloco central com o PS.
Perdendo as eleições, Costa sairia. E se fosse substituído por alguém como Pedro Nuno Santos, teríamos um PS (ainda) mais à esquerda.
Se viesse a substituir Costa, Pedro Nuno (o homem que no tempo da troika prometia pôr os alemães e os mercados na ordem), calibrará o PS à esquerda e a última coisa que lhe ocorre será a viabilização de um governo do PSD.
Sem a muleta do PS para fazer o bloco central e para evitar a ingovernabilidade, não é impossível que Rio olhasse para o PAN. Mas o partido que aposta na humanização dos animais (e, por vezes, parece mesmo apontar para a animalização dos humanos) não parece em condições de repetir as eleições bem-sucedidas de 2019.
Um bloco central só parece viável com uma vitória do PS, caso António Costa, nesse enquadramento, preferisse entender-se com o PSD e não com os parceiros da geringonça.
Ainda assim, seria necessário que Rio se mantivesse à frente do PSD. Com outro líder não parece provável que o PSD viabilizasse novo governo de António Costa.
Estes cenários não esgotam as possibilidades que se vão abrir em Portugal, a partir de 31 de janeiro. Sem a garantia de maiorias estáveis, estaremos mais próximos da ingovernabilidade e de novas eleições a curto prazo.
Desconfio que PS, PCP e Bloco de Esquerda devem estar arrependidos da crise política que geraram. Todos eles, sem exceção, escolheram o caminho das eleições.
Farto da geringonça, Costa calculou mal o calendário, presumindo que a fraqueza do PSD não lhe faria sombra.
Vitimizando-se pelo chumbo de um Orçamento que não quis negociar, o primeiro-ministro apostou todas as fichas num bom resultado eleitoral. Mesmo sem maioria absoluta confiava que o PAN poderia bastar para governar.
Sedentos da rua que abandonaram nos últimos seis anos, por via da geringonça, Bloco e PCP não quiseram aprovar o Orçamento socialista de mão beijada, mas arriscam-se agora a ser derrotados numas eleições que não souberam evitar.
Se o país ficar razoavelmente ingovernável, com o regresso da instabilidade social nas ruas que a geringonça congelou, o epicentro político terá que passar para Belém.
O Presidente gosta de ser ator principal, mas suspeito que até ele dispensaria tantas atenções como aquelas que vai ter, a partir de dia 31 de janeiro. E pode ser um 31.