Para os nossos deputados, está tudo esclarecido. Não têm mais dúvidas e estão prontos para votar uma lei que envolve, literalmente, uma questão de vida ou de morte. Uma daquelas em que o comum dos mortais acumula as maiores dúvidas. Em 20 de Fevereiro, ou seja, daqui a pouco mais de 15 dias, a questão da legalização da eutanásia volta ao Parlamento e, ao que tudo indica, passará. Na cultura do descartável, sobe-se para um novo patamar. Um retrocesso travestido de modernidade.
O pior é que esta sobranceria sobre o conhecimento que pensam deter sobre a matéria é tão grande que os nossos representantes nem esperam por conhecer todos os pareceres do Conselho Nacional para as Ciências da Vida sobre os vários projetos em debate. Tudo na pressa de obter rapidamente os cinco votos que faltaram na última votação e parecem estar agora mais à mão de semear. Aproveite-se! Entre os projetos favoráveis do BE e do PS, os líderes favoráveis do IL, que prometia uma iniciativa e talvez ainda a venha a apresentar, e do PSD (com garantia de liberdade de voto), resta a indefinição do PC e uma meia dúzia de votos contra, da direita.
O tempo é, admitámo-lo, politicamente certo. Distraídos com a batalha orçamental (e a dramatização política associada), que só termina no dia 6, resta uma semana e pouco em que estaremos imersos na emergência global do Coranavírus e nas ondas de choque das várias revelações dos novos e dos velhos “Leaks”. Quando despertarmos do previsível “tsunami” noticioso dos próximos dias, já passou o debate e a votação. Nem dá para discutir as diferenças e semelhanças entre o vencedor e os vencidos.
A experiência belga
São, contudo, muitos os que hesitam em classificar estes projetos como uma janela de solução ou como uma porta escancarada para um precipício. Perdoem-me a contradição, mas faço parte dos que já passaram o tempo das dúvidas. Já não discuto “os limites”, as “salvaguardas”, as “garantias” as juras de “excecionalidade”. Levo 18 anos a discutir o tema e a seguir a aplicação da lei belga, em cujo debate participei, como novata, vai para 18 anos. Sinto-me veterana.
Em 2002, temia um retrocesso civilizacional. Hoje, vejo que ocorreu. Não apenas pela banalização da morte, apresentada não apenas como uma das soluções para o sofrimento quase inevitável, mas como a única e mais prática solução que “o sistema”, no seu pico capitalista/liberal, se propõe oferecer - sobretudo àqueles que, pela sua fragilidade e sofrimento extremo, já teriam sempre um número muito escasso de alternativas.
Na Bélgica, houve, pelo menos, o cuidado de completar, primeiro, uma rede de saúde eficiente (incluindo um serviço alargado e nacional de cuidados paliativos). Não se podem confundir as situações nem se trata de alternativas, mas, pelo menos, dificulta ou facilita a discussão. Em Portugal, nem isso. Mas percebo a pressa dos políticos: a degradação acentuada a que estamos a assistir no SNS não permite a esperança de que nada melhor surja nos próximos tempos. Temo, aliás, o efeito da lei ao estilo das amnistias no sobrelotamento das prisões. Mas concedo que posso estar a exagerar levada pela emotividade.
A “rampa deslizante”
Nesse primeiro debate na Bélgica, todos os riscos e temores levantados pelos que, como eu, estavam “contra” a eutanásia chocavam com a falta de um histórico de aplicação. A única lei de referência tinha uns meses de existência na vizinha Holanda. Contudo, o cenário mais negro veio a confirmar-se. As dúvidas são agora certezas confirmadas, por isso não voltarei a cair nas armadilhas argumentativas do lado dos” pró”. O risco da “rampa deslizante”, ou seja, de se ir alargando a aplicação da lei a cada vez mais situações, banalizando o recurso à eutanásia (e não adianta recorrer a eufemismos para que soe melhor, chamando-lhe “ antecipação da morte” ou “morte assistida!”) veio rapidamente a acontecer.
Os números observados comprovam-no. Só se aplicaria a casos excecionais? O povo deu-lhes o benefício da dúvida. Hoje já não pode ser dado. Os números nunca pararam de crescer. A pretensa excecionalidade ultrapassou os 2.500 casos em 2018. Nos últimos anos, foi variando entre cinco e sete eutanásias praticadas por dia!
Em 2014, a lei estendeu-se às crianças (em 2002 garantiam “Jamais!”) e já foi praticada em pessoas de 9, de 11 e de 17 anos. O sofrimento psíquico “insuportável” foi visto de forma cada vez mais abrangente e até os desgostos de amor ou a anorexia já foram contemplados (antes acusavam os que falavam em casos destes de recorrerem a “caricaturas demagógicas” de quem só quer desconversar). E quando se perguntava se a depressão ou a solidão seriam vistas como doenças incuráveis? Nunca, asseguravam. Pois agora já são.
O pedido reiterado e consciente estende-se já de forma alarmante a pessoas dementes. Mas era essencial fazer prova da saúde psíquica e estavam vedados todos os abusos. Vê-se no que deu.
As comissões de acompanhamento, criadas para garantir que a lei não seria atraiçoada, são as primeiras a alertar para o exagero com que está a ser aplicada, mas nada muda. Os médicos de família, que a podem praticar ao domicílio, facilmente compram o respetivo Kit nas farmácias. Dizem-me os amigos que por lá continuam que a cultura de “morte a pedido” está de tal forma banalizada que se organizam mesmo “despedidas”. Já não chocam ninguém.
A cultura do descarte
O sinal errado dado pela sociedade ao “reconhecer o direito à morte (dita boa!)” foi-se entranhando na e, como era de prever, a cultura do descarte da vida “inútil” foi fazendo o seu caminho. Com o pretenso “direito” a morrer “uma morte boa” acabou o dever coletivo de proporcionar uma vida “boa” sem prazo de validade.
As famílias e a sociedade foram subtilmente retirando a água do capote, esquecendo o dever de não largar a mão de ninguém até final. Como esse dever pesa, passou a pesar também uma espécie de dever de quem sofre, mas continua a amar, de pôr fim à culpa entranhada nos demais. Para quê delapidar o património da família, exigir-lhes que venham ver-nos? Para quê viver mais um dia, quando todos nos olham como um peso? Como assumir que queremos, mesmo no desalento mais profundo e até em sofrimento mais insuportável, continuar a ver, uma vez mais, nascer o sol e receber, pelo menos, ainda um beijo? Como assumir que queremos, contra tudo e todos e até mesmo contra nós, continuar vivos, pelo menos, até morrer?
É este o peso que cresce a par do medo. O medo de morrer sozinho sem ter pelo menos a mão do médico solícito para nos acompanhar. Sozinhos na casa vazia ou na enfermaria, quando a voz já se tornou tão baixa que nem a enfermeira exausta, mais próxima, será capaz de ouvir o grito que daremos ao chegar?
A sociedade como um todo fará também de mansinho a sua pedagogia da utilidade perdida. Primeiro, a empresa dispensa os nossos serviços, depois a família começa a dispensar a nossa presença, depois até os que nos querem mais começam a dispensar o nosso amor entaramelado. Entretanto, fica aquela lei que nos lembrará que temos maneira de evitar estar sós.
Agora que o SNS colapsa e os idosos estão, mais do que nunca, enredados nas malhas da solidão e da doença no limite do descarte de que são alvos, ultrapassa muito o possível pedir-lhes para “aguentar”, tudo o que a sociedade tem para lhes oferecer é um desapiedado: ai aguenta! Aguenta! E se não aguentar? Tem bom remédio: escolha morrer, que nós estamos aqui para o ajudar.
Já não há mais mãos. Faltam as mãos para nos mudar as fraldas, nos enxugar as lágrimas, nos chegar um copo de água, ajustar-nos a roupa ao corpo, ajeitar a almofada que resvala, atender a campainha, se a morte pela calada estiver a chegar. Faltam para tudo mãos, mas encontraremos mãos para nos matar.
Já só faltam quinze dias. Eu, que não considero a vida referendável, nem sequer tenho o consolo dos que ainda vão lutar por um referendo. Tomara que consigam. Talvez abane um bocadinho as consciências daquela maioria que assume ter dúvidas. Boa sorte! Mas, se assim for, irão insistir. Hão-de repetir o referendo, martelando argumentos até que a sua tese nos vença pelo cansaço.
O BE conseguirá, assim, a aprovação da sua última conquista “civilizacional”, levando, mais uma vez, a reboque o Partido Socialista e em fila indiana, pela ilusão da modernidade, quase todos os demais. Farão mais uma vez prova de vida. Agarrados ao inesgotável tesouro das “fraturâncias”. Dividem para reinar. E vão reinando. Nisso, tiro-lhes o chapéu.