Congresso e administração americana fazem profissão de fé na NATO, apesar de Trump
03-04-2019 - 16:14
 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque

Presidente dos EUA critica europeus por não gastarem mais em defesa, mas os membros da sua administração garantem harmonia. Congresso testemunha hoje o seu apego à NATO. No arranque das celebrações dos 70 anos, a Rússia volta a ser a principal preocupação da Aliança Atlântica, que tem apoio esmagador dos americanos.

As comemorações dos 70 anos da NATO decorrem esta semana em Washington e têm o seu ponto alto no discurso que o secretário-geral da organização faz esta quarta-feira perante o Congresso norte-americano.

É a primeira vez que um secretário-geral da Aliança Atlântica se dirige ao Congresso dos EUA, uma honra geralmente reservada a líderes de grandes potências ou de históricos aliados americanos.

O convite dos congressistas americanos a Jens Stoltenberg — proveniente de um consenso entre as lideranças dos dois partidos — é um testemunho do empenhamento dos EUA na Aliança Atlântica, marcando uma posição política que sugere uma crítica ao presidente Trump. Ao presidente pessoalmente e não necessariamente à sua administração.

Ao convidar Stoltenberg para um discurso solene é como se o Congresso dissesse alto e bom som que a NATO é uma aliança vital para os EUA, que jamais dela se distanciarão ou abdicarão, rejeitando o criticismo que Donald Trump tem exprimido sobre a Aliança desde que foi eleito.

Um criticismo que não é partilhado pelo Congresso, nem por muitos membros da própria administração, que se têm esforçado ao longo de dois anos de mandato por desvalorizar muitas das declarações do seu presidente ou mesmo contrariá-las.

Recorde-se que Trump, desde que foi eleito, se tem mostrado obcecado com a questão do financiamento, concretamente com as contribuições dos aliados europeus para o orçamento da Aliança — “burden sharing”, no jargão da NATO. O assunto monopolizou o seu discurso na primeira vez que se deslocou ao quartel-general em Bruxelas, Trump já considerou a Aliança “obsoleta” e recusou mesmo comprometer-se com o artigo 5 — que garante que um ataque a um membro é um ataque a todos.

Em contraste com esta atitude do presidente tem havido inúmeras declarações de membros da sua administração a reafirmar o total empenho na Aliança. O último exemplo ocorreu esta terça-feira num briefing para a imprensa estrangeira dado pela representante permanente dos EUA junto da NATO, a embaixadora Kay Hutchison.

Demarcação diplomática

Interrogada sobre duas afirmações recentes do presidente, a embaixadora demarcou-se delas claramente, embora num tom diplomático, como seria previsível. Quanto à primeira, Trump estará a ponderar exigir aos países aliados onde há bases americanas que paguem os custos do pessoal militar acrescido de 50 por cento.

A vingar, esta exigência significaria para alguns países quintuplicar a despesa com a defesa e suscitou preocupação sobretudo em países que albergam várias bases americanas como a Alemanha, o Japão e a Coreia do Sul.

É apenas uma ideia que foi lançada para cima da mesa ou é um estudo que poderá ser implementado, foi a pergunta dirigida à embaixadora. A diplomata citou o secretário da Defesa para dizer que isso não era algo para onde os EUA estivessem a olhar neste momento. “Queremos que as nossas bases, que existem para proteger os outros países, sejam financiadas de alguma forma, mas é um misto [de soluções] e isso não está em cima da mesa de modo algum”, afirmou. O tom foi assertivo e o facto de ter citado o chefe do Pentágono dá-lhe maior autoridade.

A outra questão teve a ver com a afirmação de Trump segundo a qual o compromisso dos aliados para gastar 2% do PIB em defesa é insuficiente e deve duplicar rapidamente. A embaixadora começou por dizer que a preocupação principal do presidente é manter os povos da Aliança seguros e que os EUA já gastam 4% do seu produto em defesa. Mas acrescentou que a NATO “não está a colocar esse objetivo em cima da mesa de modo algum”. Advertiu que as novas armas são mais sofisticadas e portanto mais caras, requerendo muito investimento. Os EUA querem que os aliados compreendam isso e os acompanhem no esforço da defesa, mas “não estamos a falar de percentagem, estamos a falar de nos unirmos para fazer o que é necessário para proteger os nossos povos”. Para uma diplomata, era difícil ser mais claro.

Obsessão financeira

Ou seja, duas questões enunciadas por Trump em relação às quais os responsáveis da administração vieram pôr os pontos nos ii. Duas questões que, no fundo, são apenas uma — o financiamento da aliança, a obsessão de Trump, que faz questão de ignorar o compromisso dos aliados assumido em 2014 de atingir os 2% do PIB em gastos de defesa até 2024.

Raramente o presidente fala de outra coisa quando se refere à NATO. Esta terça-feira foi mais um exemplo eloquente. Após a reunião que teve com Stoltenberg na Casa Branca, Trump só abordou dois tópicos perante a imprensa: financiamento e luta antiterrorista.

E no financiamento baralhou as datas dos compromissos. Disse que no fim deste ano haverá mais 100 mil milhões gastos pelos aliados, “mas talvez seja em 2020”. “Creio que em 2020 teremos pelo menos mais 100 mil milhões gastos pelos aliados”. Num ápice, duplicou a verba prevista, exibindo a habitual leviandade com que trata os assuntos.

O secretário-geral esclareceu logo a seguir. Revelou que os aliados já tinham investido mais 40 mil milhões desde 2016 e que em 2020 são, de facto, 100 mil milhões no total. Não o dobro, como seria o desejo de Trump.

Mas enquanto o presidente americano falou apenas deste tema e fez uma pequena referência à luta antiterrorista, Stoltenberg enunciou alguns dos assuntos que preocupam a aliança nos dias de hoje: terrorismo, Afeganistão, Rússia. Retomando a palavra a seguir, Trump referiu-se apenas ao Afeganistão, mas nada disse sobre a Rússia.

O perigo russo e a Turquia

Ora, bastou ouvir alguns responsáveis da NATO e da administração americana para perceber que a Rússia será o principal tópico na reunião dos ministros dos Negócios Estrangeiros dos 29 países-membros, que decorre também esta semana em Washington. Três questões delicadas preocupam a Aliança: a violação por Moscovo do acordo INF sobre mísseis de alcance intermédio, que os EUA denunciaram recentemente; a questão da segurança na região do Mar Negro, que envolve também o problema da ocupação da Crimeia e do leste da Ucrânia; a questão dos ciber-ataques.

Quanto ao tratado INF que o Ocidente deu por terminado por ter sido violado pela Rússia, a NATO vai debater “novas formas de dissuasão” que possam evitar a recolocação de mísseis de alcance intermédio na Europa por parte de Moscovo ou, em alternativa, formas de os contrabalançar. A embaixadora Kay Hutchison usou a expressão, mas não elaborou sobre o tema.

Quanto à região do Mar Negro, estão em causa as ações do Kremlin no estreito de Kerch contra a Marinha ucraniana, a anexação da Crimeia, a ocupação de regiões da Geórgia e a liberdade de circulação marítima em geral naquele mar. Segundo uma fonte do Departamento de Estado americano, da reunião sairá um “pacote de medidas” ainda não especificadas sobre o Mar Negro.

Os ciber-ataques levados a cabo pelo Kremlin estão também na agenda do encontro. A interferência russa no referendo britânico e nas eleições americanas são dois exemplos evidentes que alimentam as preocupações dos responsáveis da NATO.

Outro tema quente da agenda prende-se ainda, embora indiretamente, com a Rússia. Trata-se da compra pela Turquia do sistema russo de defesa anti-míssil S-400, à qual a NATO se opõe firmemente. Se Ancara concretizar a compra, será alvo de retaliações. Os aliados esperam convencer a Turquia a desistir do sistema russo, que consideram incompatível com os sistemas NATO e que colocaria o país em regime de cooperação militar (ou dependência?) de Moscovo. E já o fizeram saber a Ancara com veemência.

Um projeto que ficará em causa é a aquisição pela Turquia do bombardeiro F-35, o mais sofisticado caça americano da atualidade. A venda de algumas componentes do avião foi já suspensa e a fonte do Departamento de Estado falou ainda da eventual recusa em vender outras armas aos turcos, assim como de “potenciais sanções” a Ancara. O assunto é sério e o ministro dos Negócios Estrangeiros turco vai certamente sofrer muitas pressões esta semana em Washington para cancelar a compra do sistema russo de defesa anti-míssil.

A ideia de comprar um sistema deste tipo ao adversário estratégico parece bizarra, de facto. Mas talvez a explicação resida no facto de os dois autocratas que governam a Turquia (Erdogan) e a Rússia (Putin) se entenderem bastante bem, como se viu no conflito na Síria.

Por último, o Afeganistão, um conflito em que tropas da Aliança estão envolvidas há 19 anos e que parece insolúvel, e a Venezuela, onde a Rússia — mais uma vez — detém uma influência marcante, ocuparão também os ministros dos 29 países-membros. Que desta vez contarão com um 30º elemento — o ministro da Macedónia do Norte, que participará como observador. Finalmente liberto do veto grego, o país balcânico pediu a adesão à Aliança e deverá entrar no outono próximo.

77% a favor da NATO

Criada em 1949 por 12 países para fazer face à ameaça soviética, a NATO chega aos 70 anos com 30 membros depois de ter emergido como vitoriosa da guerra fria e de se ter readaptado aos novos tempos pós-soviéticos e de emergência terrorista. Um alargamento que espelha a medida do seu sucesso.

Um sucesso estratégico inequívoco, mas que tem hoje um desafio inédito. Conviver com um presidente americano que não morre de amores pela Aliança e que olha para ela como um negócio de deve e haver. Uma visão que, contudo, o povo americano parece não partilhar.

Uma sondagem que acaba de ser divulgada pela Gallup revela que 77% dos americanos defendem a manutenção da NATO e apenas 19% a consideram desnecessária. Há dois anos, eram 80% a defender a sua existência. A pequena descida no apoio talvez se deva ao criticismo de Trump nestes dois anos, o que também poderá explicar o facto de haver menos republicanos (70%) do que democratas (88%) pró-Aliança, enquanto os independentes se situam a meio caminho (75%).

Em qualquer caso, um apoio esmagador que encorajará certamente todos aqueles que na administração se esforçam por manter o status quo na Aliança, apesar do seu presidente.