José Silva Peneda, antigo ministro do Emprego e Segurança Social e presidente da Assembleia Geral da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), considera positivas algumas das medidas de apoio às famílias inscritas no Orçamento do Estado (OE) para 2023, mas aponta que o seu impacto no IRS é de apenas dois por cento.
Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, afirma que as “medidas de apoio às classes mais baixas são importantes”, mas deixa o alerta de que “a classe média desapareceu”.
Silva Peneda sublinha que “se é simpático ter medidas de apoio aqueles que mais sofrem e que são os mais desfavorecidos, não podemos descurar aqueles que podem ser a energia e a vitalidade e a força que pode fazer uma sociedade andar para a frente”.
“Não é possível uma sociedade livre sem uma classe média forte”, enfatiza.
Para o presidente da Assembleia Geral da UMP, não se pode condenar um jovem que quer constituir família a “não ter outra hipótese que não seja emigrar”.
Nesta entrevista que surge na véspera do arranque do 34.º Encontro Nacional da Pastoral Social, Silva Peneda afirma que “seria um desastre total” pensar a sociedade portuguesa sem a presença das IPSS.
“Se o Estado tomasse conta disto, não tinha nem capacidade, nem energia, nem sagacidade para resolver os problemas que são resolvidos a nível local”, garante.
Silva Peneda declara-se “muito preocupado com a vida das Instituições que estão exauridas” e alerta para a falta de camas para os cuidados continuados. "As instituições que têm cuidados continuados têm de os suportar e isso é insustentável."
“Há um problema de fundo, um problema grave que tem de ser equacionado e que este orçamento não resolve de uma forma clara”, sublinha.
Outra preocupação de Silva Peneda vai para os idosos, pois afirma que “não há uma estratégia clara sobre a forma como os idosos podem ser tratados no futuro” e “este é um cenário preocupante”.
Na semana passada o Governo apresentou o Orçamento de Estado para o próximo ano. Num recente artigo, o senhor afirmava que em Portugal assistimos ao aumento da pobreza e das desigualdades. Pergunto-lhe: teme que a situação económica possa acentuar ainda mais esse problema ou as medidas adotadas pelo Governo serão capazes de o atenuar?
A questão é mais de fundo e julgo que seria tontearia da minha parte se pensasse que o Orçamento podia resolver ou atenuar de uma forma significativa os problemas que a sociedade portuguesa tem. Eu julgo que temos de situar isto num plano mais global. Quando falamos de questões sociais, temos que atender ao mundo em que vivemos, e o mundo mudou muito nas últimas décadas.
Se recuarmos umas boas décadas, quando o Muro de Berlim caiu e assistimos ao fenómeno da globalização, um grande escritor, um pensador, o Fukuyama, que é professor universitário nos Estados Unidos, escreveu um livro que era "O fim da história". Defendia-se que caminhávamos para um mundo em que as democracias liberais seriam dominantes. Criaram-se expectativas no sentido de que tudo seria um futuro risonho no mundo do trabalho, com salários dignos, com aumentos de situação, de vida e de espaço e tempo para o lazer e para a família, e que o mundo seria muito melhor. Ora, quando se criam expectativas tão boas e depois elas não se concretizam, segue-se a desilusão e a falta de ambição. Foi o que aconteceu. O que aconteceu foi que aquilo que se pensava que se podia concretizar depois da queda do Muro de Berlim não se concretizou.
Isso teve consequências políticas e daí, por exemplo, o aumento de peso da extrema-direita em várias democracias liberais. O próprio Fukuyama que escreveu um livro que dizia que era o fim da história, acaba por escrever agora um, muito recentemente, "Liberalisno e os seus descontentes", onde sustenta que este clima de incerteza e de imprevisibilidade põe em causa mesmo o futuro das democracias liberais. No meio desta evolução, acontece a Covid que veio alterar comportamentos e, agora, a guerra na Ucrânia. Vivemos num mundo em que uma coisa é certa: nunca mais voltamos ao ponto de partida, porque, quando se criam tantas convulsões, tantas modificações, não se volta ao ponto de partida.
A tendência é para melhorar?
Depende. Para se melhorar temos de ter algumas âncoras e essas âncoras só se podem contar no plano dos valores. Começo pelo primeiro dos valores, que é a pessoa humana nas suas outras dimensões. A pessoa humana tem que ter o sentido centro de toda a atuação política, no sentido nobre do seu termo porque a vida é o encontro com o outro. E se a pessoa humana não estiver no centro das preocupações de quem dirige, de quem lidera as múltiplas facetas de organizações da sociedade alguma coisa está mal.
E isso foi tido em conta, neste OE, nomeadamente, quando foram anunciadas medidas para reduzir a fatura da luz. Há um pacote de medidas para as famílias...
De algum modo, de algum modo. Mas ainda no plano dos valores queria ainda falar de mais um e vai ao encontro da sua pergunta: é o valor da liberdade. Esse valor está em risco numa sociedade onde grassa a pobreza - e, no nosso caso, são 2-3 milhões (dados do Eurostat) de pessoas em risco de pobreza, ou seja, 22,4 por cento da população. Isto é impressionante e o mais impressionante é que 11% desses que estão em risco de pobreza são trabalhadores, são gente que trabalha.
Portugal, neste momento, é o oitavo país da União Europeia na pior situação. E com a pandemia alguns países conseguiram minorar isto. Doze países conseguiram minorar e diminuir os sintomas da pobreza. Durante o período da pandemia, só no primeiro ano, criámos 228 mil novos pobres, o que dá a ideia de que isto representa a cidade do Porto.
A par disto, quando se fala de pobreza, se falamos de desigualdades, também elas se acentuaram. Portanto, temos uma tendência - e o orçamento é para um ano - e uma tendência que vem de trás, em que a pobreza está a aumentar, as desigualdades estão a aumentar.
A este valores fundamental da social portuguesa, que é a pessoa humana no centro, junta-se o problema das liberdades e acresce mais um e pouca gente fala nele: é que temos seis milhões de compatriotas emigrados. Ocupamos o último lugar na União Europeia. Não há nenhum país europeu que tenha estes valores. Fui ver e só há países que têm mais do que isso são os países em que as pessoas fogem pela guerra ou por catástrofes naturais, o que também não abona muito a nosso favor. Um orçamento não resolve probelmas destes, só pode resolver uma cultura de compromisso.
Mas este Orçamento atenua ou não problemas?
Este orçamento tem algumas medidas e algumas medidas são positivas. Não se pode dizer que não. Há uma serie delas como o aumento do salário minino, o indexante de apoios sociais, o abono de família, todas elas são medidas muito positivas. Mas quando nós somamos estas verbas todas e verificamos o que é que elas representam em termos por exemplo, do total do RS e representam pouco mais de 2 por cento. E, portanto, é pouco. É pouco quando se olha ao volume. Bem sei que há a preocupação com o déficit e a as contas públicas. Mas, por exemplo quando se olha para o lado das empresas, as medidas de apoio representam quatro por cento do IRC, o que mostra que há aqui uma preocupação também muito grande e bem de apoio às empresas.
Eu quero ir a sua reflexão inicial para perguntar lhe se continuamos a olhar para a pobreza como se fosse um fenómeno periférico e esquecendo que, como diz, que a resolução do problema tem de ser assumida a nível global?
A pobreza é um fenómeno global e tem de ser abordada no caso concreto, porque cada país tem as suas características próprias. Eu julgo que o combate à pobreza não se pode fazer por decreto e nele têm um papel muito importante as instituições sociais em Portugal. O combate à pobreza tem que ser feito muito numa base de aproximação à realidade concreta e, socialmente, a pobreza infantil é aquela mais marcante, aquela sobre a qual vale a pena atuar porque é aquele que pode ter mais rentabilidade temos de médio prazo.
É aquela que permite quebrar ciclos, não é?
Exatamente. E é preciso ir tratar isto muito a nível micro, diria quase rua a rua, ou escola a escola. O Estado está organizado pensando que a administração muito centralizada pode resolver os problemas, mas não resolve. Com certeza que dar uns subsídios e donativos às famílias é bom. Mas julgo que o problema da escola, o problema da ação social a nível local, o problema das autarquias, o problema da Junta de Freguesia exigem muito uma aproximação ao nível local. O país não é igual em termos culturais. Se calhar, atacar o fenómeno da pobreza das zonas urbanas do Porto e Lisboa é diferente de atacar a pobreza nas zonas do Alentejo ou Trás-os-Montes.
Há que tentar criar toda uma máquina. Eu diria que isto é quase uma operação militar, é uma atividade onde a parte de componente logística - lembro-me do nosso almirante das vacinas - é muito importante. É preciso identificar muito bem as causas, as raízes, a fonte e atacar as causas.
Isso significa que todos os programas que conhecemos até agora do combate à pobreza não foram devidamente pensados, não foram eficazes?
Na política, saber o que fazer é importante, mas saber como fazer é muito importante. O conhecimento concreto da realidade local, a proximidade é fundamental. E por isso é que eu dou um grande valor às instituições particulares de solidariedade social porque elas conhecem a realidade e, portanto, eu não acredito que possa ser eficaz o combate à pobreza se não houver uma articulação muito forte entre Junta de Freguesia, Câmaras Municipais e instituições sociais que existem na terra, na zona.
O combate à pobreza faz-se através da atuação concreta das pessoas. Eu lembro muito a experiência do Covid. No Covid nas Misericórdias, que acompanhei muito de perto, vi que muitas situações apareceram e foram às Câmaras municipais e às Juntas. Perante uma situação dramática, não se podia estar à espera de orientações gerais do Governo e as pessoas acabaram - não sei se tinham competências legais se não tinham competências legais - por encontrar soluções.
Era uma situação de crise, assim como é a questão da pobreza. E a Igreja tem também aqui um papel importante. Eu julgo que a pobreza tem que ser combatida e com certeza que as medidas financeiras são importantes, mas têm que ser mobilizadas em torno de quem conhece a realidade local. Eu tenho experiência com o antigo e já falecido bispo de Setúbal D. Manuel Martins do combate que fizemos à pobreza e que contou também com o apoio do seu adjunto, Eugénio da Fonseca, que depois foi presidente da Cáritas. Aquilo correu bem. Foi um programa que correu bem porque em Setúbal, quando se deu a grande crise económica, sabia-se que ao contrário do que acontecia no Norte, quem perdia o emprego perdia tudo. Enquanto no Norte as pessoas têm sempre uma horta ou um vizinho, ou um vizinho que ajuda a resolver os problemas, em Setúbal não. Em Setúbal quem perdia o emprego perdia tudo. E a coisa correu bem porquê? Porque alguém conhecia a realidade local e sabia quem realmente precisava.
Referiu há pouco a questão de termos dois ou três milhões de pobres e de cerca de 11 por cento serem trabalhadores. Porque continuamos com uma política de baixos salários? Recordo, só para introduzir mais um dado na nossa conversa, que o Governo fez um acordo de concertação que prevê aumentos e que o salário mínimo chegue 760 euros no próximo ano...
Eu falei que um dos valores é a liberdade. E não é possível uma sociedade totalmente livre sem uma classe média forte.
Deixamos de ter a classe média?
Neste momento, a classe média praticamente está a desaparecer. As medidas de apoio às classes mais baixas são importantes, mas a classe média praticamente desapareceu. E quando a classe média desaparece, desaparece a energia e aquilo pode motivar e dar saltos e ambições em termos de uma sociedade.
Portanto, se eu posso de acordo com as medidas que são tomadas para aqueles escalões mais baixos, julgo que é importante não esquecer aqueles que estão no meio da pirâmide. Especialmente, aqueles que têm mais energia e mais capacidade. É o que eu vejo hoje nos jovens e isso preocupa - eu já sou avô e já tenho netos formados - e vejo os ordenados e vencimentos que se pagam a pessoas que já têm qualificações. Estou a falar de licenciados, de mestrados... Se pensam constituir família com aqueles ordenados, se não é o avô e a avó ajudarem, passam muita dificuldade. E os que não têm avô e avó a ajudar não têm outra hipótese que não seja emigrar. Ora, isto não é liberdade, isto é uma sociedade condicionada. Portanto, se é simpático ter medidas de apoio aqueles que mais sofrem e os mais desfavorecidos, não podemos descurar aqueles que podem ser a energia e a vitalidade e a força que pode fazer uma sociedade andar para a frente.
Depois da pandemia, veio a guerra. A inflação afeta as famílias, a sociedade e também está a ter um grande impacto nas instituições sociais. Numa recente entrevista, o provedor da Misericórdia do Porto, dizia que as instituições “estão de rastos”. Como presidente da Assembleia Geral da União das Misericórdias Portuguesas, faz o mesmo diagnóstico?
Eu estou muito preocupado com a vida das instituições. Na pandemia, tiveram um papel importante, mas estão exauridas. No Orçamento de Estado para 2013 fala-se no apoio à ação social, de um crescimento de 4,4 por cento. Mas basta ver agora o aumento do salário mínimo e o impacto que vai ter, quando grande parte dos trabalhadores das IPSS e das Misericórdias têm salário mínimo. Vai ser um impacto enorme nestas instituições e temos casos dramáticos, não só dos mais idosos.
O que se passou em Boliqueime, no Algarve, mostra que, de facto, vivemos um problema gravíssimo que é o doscuidados continuados. Não há camas para cuidados continuados. As demências em Portugal: se em 2001 eram 250 mil, em 2037 prevê-se que sejam mais de 270 mil, o que significa que a procura de cuidados continuados vai ser maior. Hoje, o Estado não comparticipa nem de perto nem de longe e as Misericórdias têm de os suportar, as instituições que têm cuidados continuados têm de os suportar e isso é insustentável.
Há aqui um problema que foi mitigado com o último acordo que se fez com o Estado, mas as Misericórdias prestam um serviço e um serviço tem de ser remunerado, tem de ser pago. Neste momento, estão a suportar encargos que são estão longe de ser totalmente remunerados. Portanto, há aqui um problema de fundo, um problema grave que tem de ser equacionado e que este orçamento não resolve de uma forma clara. Percebo a posição do provedor da Santa Casa Misericórdia do Porto e dos provedores de todo o país, que vivem muito preocupados com a situação e com os encargos. Para não falar nos custos de energia e de todo um conjunto de situações que estão a ser postos hoje para todos os portugueses, em geral, e que estas instituições sofrem de uma forma dramática.
Na sua opinião, para irmos ao tema do encontro da Pastoral Social, que é a pandemia, a guerra e os pobres, ainda não atingimos todas as consequências da pandemia e da guerra?
Quanto à pandemia, surpreendo-me quando vejo as contas da Segurança Social, porque o efeito da pandemia não pesou tanto como como se poderia pensar à primeira vista. Em termos financeiros, pesou, com certeza, mas quando se fala em termos de percentagem do PIB foi suportável e julgo estar mais ou menos ultrapassado. Há outro tipo de consequências, no mundo do trabalho, comportamentos das pessoas, etc., mas em termos financeiros as coisas foram sendo atenuadas. O que a pandemia mostrou é uma coisa que me preocupa: uma desarticulação muito grande entre serviços da administração pública, entre a Segurança Social e a Saúde, por exemplo. Isso foi patente. O idoso não é um cliente da Segurança Social à segunda, quarta e sexta, e da Saúde à terça, quinta e sábado…
Isso relaciona-se também com o que disse antes, dos cuidados continuados…
Os lares de terceira idade, quando foram criados - eu fui muito responsável por isto, na altura em que se tinha responsabilidades no Ministério da Segurança Social - tiveram o seu tempo, porque as pessoas eram relativamente saudáveis. A partir do momento em que as pessoas vão envelhecendo e a esperança de vida está a aumentar, os cuidados são diferentes e o tipo de assistência é diferente, o profissionalismo de quem está lá tem de ser de outro nível. Há aqui que repensar muito bem o que é que se pode fazer. Eu sei que as novas tecnologias agora podem resolver muitas coisas, mas para isso é preciso dinheiro, investimento.
Os idosos em Portugal são uma preocupação grande, porque vão ser cada vez mais, com maiores problemas em termos de saúde, em termos de atenção. Julgo que ainda não está pensada, não há uma estratégia clara sobre a forma como os idosos podem ser tratados no futuro. Este cenário é preocupante.
Este cenário de incerteza também vai afetar o combate às desigualdades como prioridade política?
Com certeza. Os problemas da desigualdade só se resolvem a partir do momento em que a classe média se vai robustecendo. Mas quando vemos que os mais capazes - e os mais capazes são aqueles que podem proporcionar o grande impulso da classe média – saem do país, perdemos os trunfos para jogar na altura que era necessário. Temos de criar condições e é por isso que o papel das empresas é importante. Uma visão social do país obriga a que se atente muito cuidadosamente ao papel das empresas, porque as empresas também têm um papel social, as empresas não é só o lucro. As empresas têm um papel social e o poder político tem de ter a clarividência de fazer com que as empresas cumpram o esse papel.
O papel social das empresas tem de ser no sentido de criar condições para que possam albergar e ter quadros qualificados, para que o país possa aumentar em termos de produtividade, investigação científica, capacidade de inovação, tudo isso. Não podemos fazer do social apenas uma coisa sobre os pobres e os coitadinhos, o social é também algo que tem a ver com questões de política económica e de política de dinamização da economia.
E não podemos diabolizar as empresas, como diz o ministro da Economia…
Não podemos diabolizar as empresas. Eu acho que ser empresário hoje tem um valor social. A sociedade portuguesa e certas correntes de esquerda veem o empresário como sendo um especulador e um malandro, que quer ganhar dinheiro só para si e - utilizando aquela frase de já há tempos - para “comprar Ferraris”. O verdadeiro empresário é aquele que consegue criar condições de riqueza e fazer da sua empresa um lugar de realização pessoal e profissional dos que lá trabalham. E nós temos bons empresários em Portugal, felizmente.
As associações de solidariedade social de iniciativa privada ou associativa surgiram depois de 1974 e eram, no início, quase todas ligadas à Igreja. Hoje, a realidade é muito diferente. Encontra explicação para este facto?
A história mostra que as instituições nasceram, mesmo as ligadas à Igreja, como duma comunidade e vizinhos. Costumo dizer que a razão de ser das Misericórdias é o bem comum e o bem comum faz-se num encontro com o outro. Isto é a essência da vida. Nós, se não tivermos o outro, não temos vida. As Misericórdias nasceram para tratar daqueles que sofriam nas suas comunidades e, ao longo de séculos, conseguiram responder de uma forma positiva perante as vicissitudes que se iam pondo. Tiveram capacidade de adaptação às circunstâncias, porque os problemas sociais daquela época não eram os mesmos de hoje nem o Estado tinha o poder que tem hoje, em termos de intervenção na política social. Há uma história, há um legado: as Misericórdias foram as primeiras e a Igreja Católica foi importante, em Portugal, como fomentadora dessa atividade. Há aqui um papel e um património muito grande da Igreja Católica.
Depois, apareceram outras instituições, que não estão diretamente ligadas à Igreja, mas têm em comum o facto de serem todas muito localizadas e terem nascido todas em redor de comunidades de vizinhos - umas de raiz mais católica, outras não. Mas têm todas o mesmo pendor: são todas muito localizadas e, portanto, são muito controladas também pelos seus pares e as comunidades de vizinhos, o que é bom. Julgo que, ainda hoje, as que estão ligadas à Igreja tem um pendor e uma importância muito, muito significativa no panorama nacional.
Nessa reflexão, pergunto-lhe se se fará algum dia sentido pensar a sociedade portuguesa sem a presença destas instituições…
Acho que seria um desastre total. Já quando foi da “troika”, toda a gente disse que se não fosse o papel das IPSS, a dor que a sociedade portuguesa sofreu seria muito maior. Agora com a Covid isso ficou demonstrado, até na qualidade do serviço. Os números recentes mostram - eu só conheço os números de Misericórdias -, que comparando a mortalidade verificada nas Santas Casas com as Santas Casas ou os seus congéneres noutros países da Europa do mundo desenvolvido, as nossas instituições portaram-se muito melhor que todas elas.
É inimaginável uma sociedade sem as instituições sociais…
Eu julgo que seria um desastre completo, um caos. Nem mesmo aqueles que há uns anos - e mesmo no início da Covid algumas forças de esquerda diziam que se devia nacionalizar e que tudo isto devia ser do Estado - hoje já não se atrevem a fazer isso. Deus me livre se o Estado tomasse conta disto, não tinha nem capacidade, nem energia, nem sagacidade para resolver os problemas que são resolvidos a nível local.