Joana fala baixinho até quando lhe apontamos um telemóvel e começamos a gravar a conversa na única mesa livre da biblioteca da Faculdade de Belas Artes do Porto, no final de uma tarde fria de Inverno. Traz na voz delicadeza e alguma aparente fragilidade. Mas tem a bagagem de um percurso que impõe respeito e uma carreira construída num meio onde ainda não há muitas mulheres em posições de poder.
Foi considerada uma das mais influentes, ou “bem conectadas”, da indústria do entretenimento nos Estados Unidos. Em 2013, apareceu na “Women’s Impact List” da revista Variety (a par de Beyoncé, Jennifer Lawrence ou Taylor Swift), elogiada pelo trabalho desenvolvido com os criadores de conteúdos digitais. Perguntamos-lhe até onde se estende essa influência. Reage com um sorriso, diz que é preciso mais mulheres executivas no cinema e sublinha o trabalho feito com novos talentos na instituição que dirige.
É, desde 2009, directora executiva do “Independent Filmmaker Project” (IFP), a maior e mais antiga organização de cinema independente nos Estados Unidos, baseada em Brooklyn. Há quatro anos que é também a responsável do “Made in NY Media Center”, uma espécie de startup para “storytellers” [contadores de histórias] digitais, uma incubadora de talentos projectada pelo IFP, que, ao longo dos anos, já apoiou mais de 10 mil projectos.
É nesse papel que vem ao Porto fazer uma apresentação, como oradora principal da “NEM Summit”, uma conferência europeia de Novos Media e Tecnologia. Elaborando sobre o tema da Economia Colaborativa nas Indústrias Criativas, defende, do púlpito, que “a melhor inovação vem da colaboração”. E usa as origens e o seu percurso global para fazer pontes com a audiência. Mas já lá vamos.
Gotham Awards. Há dois anos a antecipar os vencedores dos Óscares
Quando a conhecemos, Joana está a dias de fazer acontecer mais uma edição dos Gotham Awards em Nova Iorque, sob alçada do IFP. Joana transformou-os no primeiro grande evento da temporada de prémios de cinema.
Nas últimas edições, os Gotham premiaram “Birdman ou (A inesperada Virtude da Ignorância)” (2014) e “O Caso Spotlight” (2015). Antes mesmo de os Óscares os confirmarem em Fevereiro.
No final de 2016, “Moonlight: Sob a Luz do Luar” foi o melhor filme para o júri dos Gotham. Nada de “La La Land”. E para outras apostas que se queiram considerar, vale a pena registar que Casey Affleck conquistou o prémio de melhor actor, com “Manchester by the Sea”, e Isabelle Huppert foi eleita melhor actriz, em “Ela”.
Joana Vicente com a actriz Amy Adams, a quem os Gotham prestaram um tributo de carreira este ano; a apresentar os prémios; com o marido Jason Kliot; com Ethan Hawke e Ellar Coltrane; com Hellen Mirren e Taylor Hackford
Joana Vicente recebe em casa estas e outras estrelas que vemos desfilar nos Óscares. Sabe bem o que é uma passadeira vermelha, das americanas às europeias, das mais "indie" às comerciais.
E na lista de contactos do telemóvel tem nomes de fazer inveja ao comum dos mortais, que enumera a pedido: “Sigourney Weaver, Harvey Keitel, Ethan Hawke, Emily Mortimer... Sei lá... Estou a pensar pessoas que sei que vão estar nos Gotham. O Sean Penn... Tenho esse acesso porque as pessoas, quando fazem um filme, vivem muito próximas… Criamos uma pequena comunidade e os laços ficam”.
A assessora de Pintassilgo que lhe ofereceu o primeiro “laptop”
Nasceu em Lisboa – é filha de um casal de arquitectos – viveu em Macau, Moçambique, Madeira. Depois de cursar Filosofia na Universidade Católica, no final dos anos 80, começa a trabalhar em campanhas eleitorais e já aí se inclina para o audiovisual. Produz sobretudo tempos de antena. É assim que entra no mundo da política.
Trabalha como assessora de Maria de Lourdes Pintassilgo durante o seu último mandato como deputada no Parlamento Europeu. Aí experimenta viver num “território neutro” para ela e para o agora marido, Jason Kliot, um nova-iorquino de Manhattan, seu parceiro de produção no cinema independente.
Em Paris, entre jantares e uma convivência próxima com a antiga primeira-ministra portuguesa, Joana conta que são eles que lhe compram o primeiro computador portátil, que a ensinam a mexer no “laptop”. Há uma clara admiração: “ela era uma pessoa fantástica. Adorava-a. Ela tinha uma enorme curiosidade intelectual”.
Depois de um Verão em Nova Iorque e de um curso de cinema que a fez sentir-se “em casa”, Joana muda-se de vez. Estagia nas Nações Unidas e fica a trabalhar como produtora durante dois anos na secção de língua portuguesa da rádio da ONU. “Fazia tudo. Escrevia, entrevistava, produzia, e depois fazia a locução também”, ri-se. “Ao princípio não sabia muito bem como era, depois lá improvisei e fui aprendendo.”
Depois, sim, vem o cinema a sério. Algum desvio vocacional neste percurso? “O cinema e a política sempre me interessaram imenso. A ideia de no cinema se construírem mundos e de nos ajudar a perceber melhor o mundo e de a política ter a ‘habilidade’ de ser um agente de mudança”.
Como qualquer bom emigrante com mais de 25 anos vividos num país de língua inglesa, deixa escapar alguns “false friends” no discurso. Diz que Portugal faz parte da sua identidade mas as saudades que sente há muito são da casa chamada “Big Apple”. Apresenta-se como portuguesa e americana. E é como americana que se diz “preocupada”.
E agora para algo completamente diferente: o último dos “reality shows” de Trump
Joana fez-se voluntária na campanha eleitoral nos Estados Unidos e andou a bater às portas de eleitores democratas e independentes para incitar ao voto. O resultado da eleição? “Foi um choque enorme.”
E se compreende alguma revolta legítima e uma certa ignorância, choca-a também “a quantidade de informação falsa” que circulou. “Ao ponto de haver anúncios em que diziam: ‘se vai votar na Hillary não tem que votar, mande um ‘texto’ [SMS] para o 4567’. Não sei se alguém fez a investigação e foi ver quantos foram enviados para esse número, mas é impressionante o tipo de tácticas que foram usadas. É absolutamente impensável. Claro que há sempre histórias fictícias, mas isto, quer dizer, é outra coisa completamente diferente”.
A imagem que Trump construiu, acredita, assenta também ela numa falsa ideia de que é um agente de mudança. E reconhece que o presidente dos Estados Unidos é comunicacionalmente “muito, muito, muito bem-sucedido”. “Isto é o último dos seus reality shows. É impressionante.”
Joana está convencida que, agora, os cineastas têm a responsabilidade de continuar a contar histórias, “histórias que não são contadas”, para “dar esperança e distrair”.
E um filme de denúncia como o “Enron: The Smartest Guys in the Room” (2005) será possível na era Trump? “A América é um grande país e mais de metade nem sequer votou nele, certo?”
No caminho dos Óscares
Na produtora HDNet Films, Joana Vicente e o marido aliaram-se a Mark Cuban, o multimilionário que por aqui conhecemos melhor do programa televisivo “Shark Tank”. Foi ele que disse “let’s rock and roll” à hipótese de fazer o documentário sobre o escândalo da Enron, a gigante energética que colapsou em 2001, depois da descoberta de um gigantesco esquema de fraude fiscal suportado pela inflacção artificial de lucros. Para Joana, foi “o testemunho do que não poderia ser feito”, pouco antes de estalar a grande crise financeira de 2008.
O filme recebeu uma nomeação para melhor documentário nos Óscares de 2006. Joana Vicente assinava como produtora executiva, com Alex Gibney e o marido Jason Kliot nos títulos principais. Perdeu para “A Marcha dos Pinguins”.
A produtora pôs realizadores como Brian de Palma a experimentar orçamentos “baixos”, de “4 a 5 milhões de dólares”, gente habituada a orçamentos de 100 milhões. Quiseram por o foco no cinema mais de “auteur”, com realizadores interessados em “puxar o envelope [exceder os limites] da tecnologia”. E “Censurado“ (2007) foi uma experiência para de Palma, focada na guerra no Iraque e no seguimento de “Corações de Aço” (1989). Joana acompanhou a produção na Jordânia. Fez das limitações oportunidades para experimentar.
“Eu adoro o Jarmusch”, atira Joana, enquanto continua a enumerar experiências. “Ele é super-engraçado”. Em “Café e Cigarros” (2003) não houve direito a guião: “nós tínhamos de imaginar o que ele queria fazer. No dia anterior ao início das filmagens, sentámo-nos com o Jim e dissemos: ‘estamos um pouco preocupados porque se calhar não estamos a produzir isto muito bem e você, agora, não vai ter tudo o que precisa’. E ele diz: ‘É a primeira vez que um produtor pede desculpa por eu não ter dado o guião’. (risos) A culpa era toda dele.”
Nesta “compilação de curtas” que envolvem sempre café e cigarros, há Cate Blanchett (para quem Joana teve de pensar em efeitos especiais para que pudesse contracenar com uma prima também interpretada por ela própria), Iggy Pop e Tom Waits ou Roberto Benigni. E lá esteve sempre Joana Vicente.
Na longa lista de filmes produzidos por Joana também há duas experiências com grandes estúdios de Hollywood (ou, pelo menos, os seus “mini-studios”, focados no cinema de especialidade). Mas Joana acredita: “quanto mais dinheiro se tem, menos riscos se toma”. Por isso, continua a preferir a cena “indie”. “Há uma certa excitação quando uma pessoa descobre um talento novo e depois o ajuda a realizar a história”.
Cinema português. Em vez de procurar “catch up”, tentar um “leap frog”
Joana Vicente diz que tem seguido “um pouco” o cinema português e acredita que “há imensa energia e um dinamismo interessante” e que “as mudanças tecnológicas podem trazer uma oportunidade”. E explica: “em vez de fazer o ‘catch up’ [procurar apanhar o ponto] onde os outros estão”, valerá a pena “tentar um leapfrog [saltar para a frente] e pensar como será o futuro e como podemos chegar lá mais depressa, sem ter de usar modelos que se vão tornar obsoletos em breve”.
E se nos Estados Unidos não se conhece o cinema português, Joana sugere “consistência”, algo que “exige investimento”. E concretiza: por que não fazer todos os anos uma semana de mostra do melhor cinema português, com a presença de realizadores e actores, à semelhança do que fazem outros países? "Cria-se o ambiente e as pessoas ficam interessadas". Porque, diz, não falta "curiosidade".
Para início de conversa, há pelo menos uma porta aberta no coração artístico de Nova Iorque. E fala português.