Biden, um Presidente “normal” com uma agenda progressista
20-01-2021 - 07:56
 • José Alberto Lemos

O homem que se candidatou seis vezes à Casa Branca toma hoje posse como presidente, aos 78 anos de idade. Poucos acreditaram na sua capacidade para derrotar Trump. Mas agora espera-se dele que repare os danos causados pelo “estado de exceção” que representou a administração cessante. Espera-se dele, um homem “normal”, que reconduza a América a tempos de normalidade. Uma tarefa árdua.

Veja também:


No outono de 2015, a pressão para tomar uma decisão sobre a candidatura à Casa Branca era grande. O tempo estava a esgotar-se, os adversários já estavam no terreno, os apoiantes estavam ansiosos por começar a trabalhar e a montar o aparelho. Não era possível prolongar mais a hesitação.

Joe Biden alimentava a ideia há muito tempo e não lhe faltavam apoios. Desde gente que trabalhava na administração Obama até personalidades ligadas aos setores mais tradicionais do Partido Democrático – classes trabalhadoras, sindicatos, minorias étnicas.

O filho mais velho tinha morrido há poucos meses de cancro no cérebro e a dor era ainda devastadora. Essa era a tragédia que condicionava tudo. Mas, nos últimos tempos, o vice-presidente tinha conseguido evitar emoções excessivas em público quando alguém lhe mencionava a perda de Beau aos 43 anos. A família apoiava-o firmemente qualquer que fosse a sua decisão e Biden sentia-se capaz de avançar.

O Presidente Obama não o tinha encorajado, mas também não o tinha dissuadido. Hillary Clinton estava no terreno há muito tempo e toda a gente suspeitava que Barack e Hillary tinham um compromisso desde que ele a bateu nas primárias de 2008 – tu apoias-me agora e eu apoio-te daqui a oito anos.

Apesar da força dos Clinton no aparelho do partido e da gigantesca máquina política que controlavam, Biden sabia que Hillary tinha vulnerabilidades eleitorais. Tinha muitos anticorpos dentro e fora do Partido Democrático, não penetrava nas bases mais tradicionais do partido e isso abria-lhe a ele perspetivas para as primárias. Especialmente para os quatro primeiros duelos decisivos: Iowa, New Hampshire, Nevada e Carolina do Sul. E, para estes combates, o financiamento já estava assegurado.

Num contexto político que tinha por favorável, tudo se jogava no terreno emocional, um terreno árduo, sobretudo após a morte de um filho. Numa vida marcada muito cedo pela tragédia – quando perdeu a mulher e uma filha bebé num acidente de automóvel – Biden estava a lidar pela segunda vez com o infortúnio.

No dia 6 de outubro, um artigo publicado no Politico insinua que esse seria o principal “argumento” da sua candidatura. Que a sua campanha se basearia na manipulação das emoções do eleitorado para com alguém que acabou de perder um filho. Uma ideia que lhe causou “repugnância” e que o levou a compreender subitamente como seria a oposição à sua candidatura.

“Eu devia ter adivinhado, suponho”, escreveu mais tarde, dando conta da “ira” que isso lhe causou. “Conhecia o perigo que isso acarretava, sobretudo no atual estado emocional. Se aquela história sobre o Beau surgisse na minha audiência, temia não conseguir controlar a ira. E diria ou faria algo de que me arrependeria”, ponderou o potencial candidato. Naquele dia, Joe Biden desistiu de avançar para a Casa Branca, deixando o terreno livre para Hillary Clinton e Bernie Sanders.

Sabe-se o que aconteceu depois. Clinton ganhou as primárias para perder a eleição para Donald Trump. E Biden, que já havia tentado mais do que uma vez a sua sorte em corridas à Casa Branca, perdeu a sua grande oportunidade de se tornar presidente.

Sim, porque a tradição é que o vice-presidente tente suceder ao seu presidente. Alguns ganharam, alguns perderam, mas se o vice-presidente quiser, dificilmente alguém lhe disputa a corrida à Casa Branca com sucesso no seu partido.

Aos 74 anos, Biden parecia definitivamente arredado de um sonho natural para quem se envolveu na política desde muito cedo. Ele foi senador com 37 anos, serviu mais de 40 anos no Congresso, candidatou-se cinco vezes nas primárias, foi vice do primeiro presidente negro da história do país e agora estava a apanhar o comboio em Washington DC pela última vez para regressar ao seu Delaware natal.

Um regresso inesperado

Mas a vida reserva surpresas extraordinárias. Com um Presidente disfuncional, ignorante e incompetente como nunca se tinha visto, com um Partido Democrático sem pesos pesados elegíveis para a Casa Branca, Biden espreitou uma oportunidade onde outros viam um desastre, talvez uma humilhação.

Aos 73 anos, lançou-se numa corrida cujos contornos conhecia bem, graças a um impulso moral. Foi quando ouviu Trump dizer que na marcha de neonazis em Charlottesville, em 2017, havia “muito boa gente de ambos os lados”. “Naquele momento percebi que nunca tinha havido uma ameaça tão grande à nação”, explicou.

Ele não tinha os anticorpos de Hillary, não era impopular junto dos setores tradicionais do partido, não era arrogante, não sofria de esquerdismo, não esquecia a comunidade negra e outras minorias, não abandonava os esquecidos pela globalização, e não tinha esqueletos no armário. Era um moderado, sensato, pragmático, homem de Estado empenhado em fazer regressar a América a tempos “normais”. Era, é, um homem “normal”. Apenas isso, um homem “normal” num tempo em que o país mergulhou num estado permanente de “exceção”.

Prognosticaram-lhe o falhanço por várias vezes. Está velho, não tem carisma, não entusiasma, é cinzento, não tem energia para se bater com Trump. As “sentenças” proliferaram. Deram-no como morto politicamente. Quer nas primárias, quando a balança parecia pender mais para a deriva esquerdista do que para a moderação centrista.

Mas ele soube esperar pelo terreno que lhe era mais favorável e reergueu-se na Carolina do Sul, sem dar hipótese aos rivais. Quer na eleição geral, quando as mentiras e o despudor de Trump pareciam valer mais votos do que a decência e o realismo dele. A sua confiança e resiliência ficaram bem patentes na própria noite eleitoral e nos dias seguintes.

Pouca gente poderia ser mais diferente de Trump do que ele. A maior das qualidades que lhe atribuem – a empatia – é exercitada sobretudo em momentos de dor. O que não surpreende. Ele sabe bem o que os outros sofrem por experiência própria. E essa empatia alarga-se ao domínio coletivo quando estão em causa injustiças sociais.

Por isso, a sua presidência será também uma tentativa de reparar as feridas de um país dividido como nunca, tribalizado politicamente, mergulhado numa crise moral e de cidadania que atingiu o zénite no passado dia 6 com o assalto ao Capitólio.

Sarar feridas

Será nesse mesmo Capitólio que Biden começará a sarar as feridas, tentando compromissos políticos com os seus adversários. Antes de tudo com um pacote financeiro para combater a pandemia e os seus efeitos. São 1,9 biliões (trillion) repartidos por vacinação e testes, reabertura de escolas, envio de cheques de 2000 dólares a cada americano, aumento do subsídio de desemprego de 300 para 400 dólares por semana e alargamento do seu prazo até setembro, suspensão de despejos, suspensão de pagamento das dívidas dos estudantes, aumento do salário mínimo para 15 dólares por hora, consagração de 14 semanas de baixa médica paga, subsídios aos estados e cidades, linhas de crédito a juro muito baixo para as empresas.

É o Plano de Resgate da América, assim lhe chamou o novo Presidente, que vai tentar obter um consenso bipartidário no Congresso para o aprovar. Mas se isso não for possível, está em boa posição para avançar só com os votos do seu partido. E não falta entre os democratas quem lembre que os próximos dois anos são cruciais para introduzir reformas no país, porque o partido controla as duas câmaras do Congresso. Não cometer o mesmo erro de Obama nos seus dois primeiros anos, parece ser o alerta geral entre os democratas.

Mas Biden não quer ficar por aqui. Quer reformar a política de imigração, dando uma perspetiva de oito anos para aceder à cidadania aos milhões de indocumentados. Conceder já autorização de residência aos filhos de imigrantes que não conhecem outra pátria (dreamers), acabar com a proibição de entrada de pessoas provenientes de países muçulmanos, que Trump aprovou logo no início do seu mandato, promover a reunificação familiar, acabar com limites de vistos para quem quer fazer doutoramentos nos EUA, sobretudo nas áreas de engenharia, alta tecnologia e matemática, combater as causas da imigração ajudando os países da América Central. Nesta questão pode contar seguramente com a oposição republicana, que acusa os democratas de terem uma política de “fronteiras abertas”.

Tudo isto – aliado a um plano de reconstrução de infraestruturas de que o país tanto carece – serão medidas que configuram uma agenda social bastante avançada. Caso consiga concretizá-las, Biden, o moderado, o centrista, o pragmático, pode entrar na história como um Presidente progressista.

Outra área em que contará certamente com uma feroz oposição é o ambiente. E é uma tarefa gigantesca aquela que o espera. Acabar com o projeto megalómano de um gasoduto que ligaria o Canadá ao Golfo do México (Keystone Pipeline XL), cuja construção ameaça parques, terras férteis, lençóis de água, reservas naturais, etc. Os tribunais foram-se-lhe opondo ao longo dos anos, mas a persistência da administração Trump conseguiu construir alguns troços. Aliás, nas últimas semanas a administração cessante esteve ativíssima a tomar medidas nesta área. Desde autorizar explorações mineiras e petrolíferas em reservas naturais e áreas protegidas no Ártico, Alasca ou Arizona, até permitir a construção de uma autoestrada de quatro faixas numa reserva do Utah, houve um pouco de tudo.

Multilateralismo de novo

Mas a medida de maior alcance nesta área é, obviamente, o regresso ao Acordo de Paris sobre alterações climáticas, que Biden vai assinar nesta quarta-feira, primeiro dia como Presidente.

O simbolismo é notório, mas os sinais já dados pela nova administração é que os EUA estão decididos a liderar os esforços internacionais no combate ao aquecimento global. Uma área em que ficará evidente o regresso da América de Biden ao multilateralismo, num contraste pleno com o seu antecessor.

O unilateralismo de Trump, o célebre America First (América primeiro), acabou por ser na prática um America Alone (América sozinha) traduzido numa atuação errática, inconsequente, sem estratégia e sem fiabilidade, que colocou os aliados na defensiva e instaurou a desconfiança.

Além do Acordo de Paris, Biden tenciona regressar também ao acordo nuclear com o Irão, o que implica negociações que não serão fáceis. E a avaliar pela equipa que escolheu para a política externa e por declarações já proferidas, o homem “normal” Biden vai fazer regressar a América aos tempos “normais”, o que significará antes de mais restabelecer a confiança na relação transatlântica.

Todos os escolhos introduzidos por Trump na relação com a Europa – desde a visão sobre a NATO à congratulação com o Brexit – serão reparados pela nova administração. A Europa passará a ser, de novo, o parceiro privilegiado dos EUA na abordagem das questões internacionais, o aliado histórico, fiável, comprometido com os mesmos valores e objetivos. Não por acaso, uma das iniciativas que terão prioridade será uma cimeira de democracias para lançar um plano internacional de defesa da democracia no mundo.

A cooperação que se antevê entre os dois lados do Atlântico poderá passar mesmo por uma abordagem comum das questões do Pacífico, nomeadamente a atitude perante a China, como forma de pressão mais eficaz para trazer o respeito pelos direitos humanos para o topo da agenda internacional.

Na sua longa carreira como senador, Joe Biden bateu-se sistematicamente pelos direitos humanos nas sete partidas do mundo e, embora um cargo executivo exija uma dose de pragmatismo muito maior do que um cargo legislativo, tudo leva a crer que não será aos 78 anos que quer manchar este registo.

Multilateralismo, defesa dos direitos humanos, combate às alterações climáticas, luta por uma transição energética verde e digital, combate ao terrorismo internacional, pressão sobre regimes ditatoriais são tópicos que agradam particularmente a um português que se viu numa encruzilhada em 2016 quando Trump conquistou a Casa Branca.

António Guterres, de seu nome, prepara-se para fazer um segundo mandato como secretário-geral das Nações Unidas em condições bem mais favoráveis do que o primeiro. Sem o pesadelo Trump pela frente, e com o multilateralista Biden alinhado nos propósitos da ONU, Guterres poderá desbloquear um conjunto de situações que paralisaram muita da sua ação nos últimos quatro anos. A começar pelo próprio orçamento da organização, cujos constrangimentos, a certa altura, até as escadas rolantes fizeram parar no Palácio de Vidro em Nova Iorque.