O desenrolar inesperado e a patética evolução do romance democrático, para o qual a nossa vida política resvalou nos últimos meses, tem agitado o frenesim colunista e analítico, apelando a fidelidades, estratégias de sobrevivência, ajustes de contas, saudades do futuro, explorações e apostas das mais variadas. Quase todas artilhadas numa bola de cristal ou, como se diz entre pares, na psicologia do desejo. Certo é que uma desordem inenarrável varre a fiabilidade e a decência de instituições chave na nossa democracia e é alimentada por uma intensa e insana irresponsabilidade que pensávamos ter esconjurado com o afastamento tardio – nunca irrevogável, é certo – dos «animais selvagens» que pretendiam dominar a nossa praça pública, impelidos pelo desejo de poder e a maior falta de vergonha. Neste contexto, que muitos e muitas desejem exprimir o seu ponto de vista sobre o que acontece e o que se anuncia para um futuro próximo, parece natural, oportuno e apropriado.
Esse desejo, que partilho em parte, visa esclarecer – com dificuldade – circunstâncias de crescente volatilidade, e de como estas são alimentadas por uma permanente falta de ética, a que uns quantos chamam, com nobre generosidade e um mais plebeu enviesamento moral, a «audácia» dos jovens turcos e a sua muito celebrada «autoconfiança». Está, pois, a definição de serviço público ameaçada de uma restrição conscientemente malévola, a de uma vida política e de uma governação vistas como subprodutos aceitáveis do egocentrismo individual e da vanglória trauliteira. A meu ver, é algo que merece um pouco de psicologia mas, desta vez, a partir dos dados de observação. Vou, pois, adentrar-me apenas naquilo que conheço. Deixo para outros, mais sábios e capazes, a evolução dos factos que escapam ao meu discernimento, por exemplo, se Augusto Santos Silva vai para Belém e se, pelo caminho, ainda leva Ventura para S. Bento.
Conheci o Professor Marcelo Rebelo de Sousa no virar deste século e no sítio mais adequado a uma extensa e consistente observação, uma sala de aula. Assim foi durante um semestre, numa época em que o excelente docente ainda estava a meio, pareceu-me, de uma certa transformação: longe ia o Expresso e a vichyssoise, mas as aulas extraordinárias também eram pontuadas por uns rápidos outbursts emocionais, aliás bastante irritantes, que contrastavam com a subtileza segura dos restantes professores, que evitavam os inevitáveis incómodos pedagógicos através de uma suave ironia. Marcelo sabia muito, mas não era sábio. De facto, com uma mente tão rápida e informada, tão aguda que nem precisava de finura, era absolutamente evidente que não sentia necessidade disso.
Algum tempo mais tarde, com aquela confiança que nasce numa turma pequena que foi avaliada com justiça, pedi-lhe para me ajudar num projeto de formação vocacional dos estudantes que me estavam confiados. E ele, embora estranhando o modelo, aceitou participar e todas as minhas muitas condições. Nesse dia, a responsabilidade pertencia-me e o Professor cedeu-me o controlo sem pestanejar. Como pretendia que falasse do seu percurso e não de um «tema», reunimo-nos com algum tempo para conversar e construir o guião do que seria feito. Depois, todos aqueles alunos e alunas, tal como eu, pudemos entrar no universo muito privado do filho, do aluno, do marido, do pai, do afilhado, do amigo, e conhecer, ainda por cima, não só as pessoas que o influenciaram profundamente – como a Mãe, assistente social, e a Filha, encaminhada no mesmo sentido – mas o profundo «porquê», as escolhas e as motivações. Agora, há muito tempo que não nos encontramos em condições de conversar, mas também fui aprendendo que na sua vida há – como na minha – uma nova influência e é o Papa Francisco, a sua política de justiça e o seu amor «místico» pelo Povo.
Tudo isto para dizer que não creio em nenhuma das teses que circulam sobre o «combate» de Marcelo com Costa, e do Presidente com todos nós. O rapaz terrível e brilhante, hiperativo, não desapareceu, mas cresceu para se enquadrar no à-vontade de uma educação precoce, excecionalmente virada para o mundo, aquela que, com dramática exclusividade, oferece dom de gentes, aborrecimento pelo privilégio e o classismo, interesse genuíno pelos outros, vontade de terminar com as fontes da estupidez consagrada e a injustiça. E não perdeu nada da irreverência consentida pelos limites da elegância, nem a vontade mordaz de fazer cair quem acha que chegou alto, só que agora o Pai e o Avô levam a melhor e ser um exemplo é a opção.
Parece-me, pois, muito infantil achar que Marcelo inveja o poder de Costa, como também – repito o que continuo a achar – que não saiba ou não possa ou não queira ser um Presidente semi-presidencialista, quaisquer que sejam os atores e as condições. Marcelo, e agora já são tão poucos os seus pares, tem não só o trunfo de uma formação que o ensinou a amar o Povo com verdade, como guarda a experiência direta daquilo que Portugal não tinha nem era antes da Democracia, e de tudo aquilo que foi preciso debater, dialogar e construir para dar uma Constituição sólida e democrática ao país.
Marcelo ainda não tem saudades do futuro da grande História – como esses jovens aspirantes a líder, já tão velhos e gastos pelas suas medíocres ambições – nem das suas notas e dos seus rodapés. Agora gosta mais de crianças e de gelados, e sabe perfeitamente que o país ainda não está a salvo, pelo que, deliberadamente, não quer deixá-lo entregue ao carreirismo perdulário dos boys e das girls de uma qualquer formação política. Por que obra e graça não sei, mas aconteceu-lhe transformar a impiedade do rapaz extraordinário num dever intenso – pois, tão hiperativo e, por vezes, tão inoportuno que espanta – de proteção nossa e do nosso dificultosamente conquistado modo de vida. Marcelo é um democrata e um intransigente defensor da Constituição, que conhece e acredita num sistema alternante de Partidos, mas que lhes pede uma reserva de decência. O demais, são vírgulas.
E embora não creia que o Professor faça oposição – afinal, está apenas a tentar que o Governo governe e, por uma vez, oiça a voz do Povo – não posso não achar graça ao recrutamento que fez para Belém, agora uma Escola de lideranças políticas, uma reserva abundante de jovem e experiente talento político, diverso e variado mas competente, do qual poderiam sair excelentes Ministros e Ministras, treinados na grande exigência do mais experiente político português.