Os sistemas de prevenção, penalização e reinserção dos jovens delinquentes têm falhas a vários níveis, mas há uma que se sobrepõe e que o Estado ignora há demasiados anos: a vertente da saúde mental.
No programa Em Nome da Lei da Renascença, Daniel Rijo, psicólogo clínico, professor na Universidade de Coimbra, e com vasta experiência no sistema de justiça juvenil, garante que “a maior parte destes miúdos tem necessidades de intervenção em saúde mental”.
“Andamos há 15 anos no país a discutir esse tema, temos estudos epidemiológicos feitos com esta população, e não temos intervenção ao nível da saúde mental”, lamenta Daniel Rijo.
O especialista considera grave a forma tolerante como o próprio sistema ignora o problema.
"Do ponto de vista dos direitos humanos era inconcebível alguém ter um menor detido com uma doença grave, ou um cancro, e que a medida de internamento o afastasse do tratamento. Isto era impensável para alguém. Mas é perfeitamente tolerável, e toda a gente tolera que estes miúdos tenham necessidade de intervenção em saúde mental, e que não haja técnicos especializados com o tempo necessário para trabalhar com eles”, sublinha.
O tempo e a disponibilidade que os jovens têm durante as medidas tutelares educativas a que são sujeitos “são uma oportunidade privilegiada para trabalhar com eles ao nível da saúde mental”, defende o psicólogo clínico.
No programa Em Nome da Lei, esta semana dedicado à delinquência juvenil, Daniel Rijo aponta falhas também ao nível da prevenção.
A identificação e sinalização de casos de risco até funciona. “A maior parte dos miúdos que vêm parar à justiça juvenil já teve medidas de promoção e proteção. Foram atendidos precocemente, houve sinalização pela escola – às vezes pela escola primária – foram intervencionados pelas comissões de promoção e proteção de crianças e jovens Portanto, não estamos a falhar ao nível da sinalização.”
O especialista considera que o problema está no facto do sistema não ser capaz de evitar que os jovens entrem numa vida à margem da lei.
Daniel Rijo afirma que “as intervenções que nós disponibilizamos enquanto comunidade falharam. Não foram suficientes para travar esse processo, esse percurso comportamental”.
“O que é que a sociedade faz quando os mete lá dentro?”
A este tipo de carências, Johnson Semedo junta falhas graves ao nível da reinserção.
Há mais de 10 anos a trabalhar com jovens no Bairro da Cova da Moura, na Amadora, mas agora também em prisões e centros educativos, Johnson Semedo diz que “a reinserção não começa cá fora”.
“Se o miúdo está lá dentro com uma medida de um, dois ou três anos, o miúdo tem tempo. O que é que é importante? É levar-lhe lá para dentro do sistema coisas que, quando sair cá para fora, já esteja ligado a alguma coisa. Porque, senão, o miúdo sai para o mesmo meio, com as mesmas coisas, os mesmos amigos, com tudo igual. Para estes miúdos isso é um bilhete. É um até já. Saem da cadeia, e dizem-lhes até já. Porque não há trabalho de reinserção”.
Johnson Semedo lamenta, também, que o tempo passado em centros educativos não seja aproveitado para prevenir a reincidência.
Lembra que é frequente ouvir-se que “estes miúdos não têm os valores e os parâmetros da sociedade”, mas contrapõem com a pergunta: “e o que é que a sociedade faz quando os mete lá dentro, para que possam sair com esses valores? A nossa sociedade e o nosso sistema de justiça está para castigar, não está para educar”.
Aspetos concretos que os convidados do Em Nome da Lei gostariam que fossem incluídos, e resolvidos, pela Comissão criada pelo Governo para estudar e combater a delinquência juvenil.
Mais armas e mais agressivos
A Comissão começa a trabalhar na próxima semana, dia 27 de junho, e, nas palavras da secretária de Estado da Administração Interna, resulta dos “últimos dados que estão a surgir relativamente à prática de crimes, que não revelam um aumento do número, mas sim um aumento da gravidade com que o crime é praticado”.
Isabel Oneto refere que “há indicadores que indiciam que a forma como os crimes são praticados pode estar a mudar, e temos que perceber porque é que está a mudar. Porque é que se está a recorrer mais a armas de fogo e armas brancas, porque é que as pessoas estão mais intolerantes, estão mais agressivas perante situações a que reagem de forma mais violenta”.
Nestas declarações à Renascença, Isabel Oneto afirma que a violência associada aos gangues juvenis, sobretudo na zona de Lisboa, parece estar relacionada com “o regresso à rua, ao espaço público, depois do confinamento. Isso tem gerado alguns conflitos em relação aos domínios dos territórios. E isso pode estar na origem desta reorganização de alguns grupos”.
Confrontada com a ausência de diversas entidades na Comissão agora criada, como por exemplo as associações privadas que trabalham com estes jovens no terreno, a secretária de Estado da Administração Interna garante que isso não significa que não sejam ouvidas.
Isabel Oneto explica que procurou “fazer uma comissão que não fosse muito grande, para não ser inoperacional, porque senão tornava-se muito difícil”.
O despacho prevê que a Comissão deve “solicitar o apoio de outros elementos, como peritos especialistas e instituições”.
“A nossa ideia é ouvir várias instituições, ouvir IPSSs, ouvir entidades que estão no terreno e que nos podem ajudar na recolha e interpretação dos dados, de forma mais focada em determinadas áreas”, indica Isabel Oneto.
De resto, a secretária de Estado esclarece ainda que o prazo de um ano para a execução deste trabalho é meramente indicativo, porque,
“se a Comissão identificar medidas que possam ser adotadas de imediato, faz um relatório intercalar e apresenta-o às entidades governativas envolvidas”.