D. António Marto. “Ninguém proibiu as celebrações comunitárias. Foi a Igreja que se antecipou e bem”
15-05-2020 - 07:01
 • Aura Miguel (Renascença) e Paulo Rocha (Agência Ecclesia)

A duas semanas do regresso das celebrações comunitárias, o bispo de Leiria-Fátima nega cedência da Igreja neste processo. Numa entrevista conjunta Renascença-Ecclesia, D. António Marto mostra-se preocupado com os efeitos da pandemia da Covid-19.

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O Bispo de Leiria-Fátima fala da sua experiência de fé num 13 de maio sem a presença de fiéis e comove-se com o sofrimento do mundo. Em relação ao Governo, diz que “não houve cedência, houve diálogo” e que “a autonomia da Igreja esteve sempre salvaguardada”, mas gostaria que as igrejas abrissem mais cedo do que o previsto. A poucas semanas da eleição de um novo presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o Cardeal Marto espera “uma reforma e renovação” da Igreja em Portugal, tal como a deseja o Papa Francisco.


Como foi a sua experiência neste 12 e 13 de maio, em Fátima, desta vez num recinto tão vazio e em solidão?

Foi uma experiência única, que vivi também pela primeira vez, sobretudo, para quem estava habituado a viver o 13 de maio com o recinto a extravasar. Mas confesso que, inicialmente, tinha receio de sentir solidão, mas não foi esse o sentimento.

Em primeiro lugar, o sentimento que vivi foi a experiência de uma comunhão espiritual, que em linguagem teológica chamamos de comunhão dos santos. Sentimo-nos unidos a toda uma multidão de gente, que se une espiritualmente à celebração que acontece. Aliás, no anúncio que fiz, tinha sublinhado que, embora estivéssemos fisicamente separados, estaríamos espiritualmente unidos, como Igreja, em comunhão, à volta de Maria e com o coração cheio de fé. E assim aconteceu.

E teve conhecimento pessoal de casos, de pessoas que se uniram?

Sabia disso. E a preparação que o Santuário fez, através dos meios digitais também ajudou. Eu ouvia muita gente que seguia as indicações do Santuário, que pôs a sua vela, cada dia, à janela… até a minha própria irmã me dizia isso. Depois, a simbólica da própria celebração também foi belíssima. Sobretudo a do dia 12, à noite, com milhares de velas a representar todos os peregrinos. E eu quis, de propósito, salientar que essas velas representavam os vivos e também os defuntos, aqueles que tinham sido vítimas da Covid-19, para que os familiares se sentissem ali, também representados.

Houve também as 21 velas a representarem as dioceses e os três metropolitas a representarem o episcopado. E ainda o gesto do lava-pés, impressionante. Tudo isto tocou o coração das pessoas.

Na homilia do dia 13, disse que, por causa deste vírus, “sentimos o chão fugir-nos por debaixo dos pés”. Sentiu isso? Sentiu momentos de angústia, de incerteza, na preparação, nas decisões a tomar?

Quando usei essa frase, estava a referir-me ao contexto social e mundial. Agora, pessoalmente, todos nos sentimos a viver um ambiente de incerteza, de insegurança, sem saber como vai ser o dia de amanhã, quer do ponto de vista pessoal, social e económico, quer do ponto de vista eclesial. Vamo-nos adaptando, dia a dia, às circunstâncias, conforme nos vão sendo fornecidos os dados.

Mas quando tomei a decisão, no passado 5 de abril, com os colaboradores do Santuário, não senti grandes hesitações nem dramas. Sabíamos exatamente o que estávamos a fazer, que tínhamos de preservar a saúde pública e a responsabilidade do Santuário. Já tive ocasião de dizer, numa conferência de imprensa, que não queria ficar na história como o bispo responsável por um alastramento do vírus que viesse a agravar a situação de saúde pública do país.

Nesse aspeto, tive muitas manifestações de apoio, depois de afirmar e reafirmar a decisão de que seria assim. Consultei também o presidente da Conferência Episcopal [D. Manuel Clemente], para saber a opinião dos outros bispos e não estava sozinho e a opinião deles era no mesmo sentido.

Ainda a propósito da Covid-19, D. António Marto foi protagonista de um outro momento, histórico, ao fazer a consagração de Portugal aos Sagrados Corações de Jesus e Maria, no dia 25 de março. Como é que surgiu a ideia, sentiu essa necessidade?

A ideia surgiu do povo. O Povo de Deus, como diz o nosso Papa Francisco, “tem o seu faro”. Traduzido noutra linguagem, tem o seu sentido comum da fé. E, em 24 horas, foram milhares de assinaturas a fazer esse pedido, dirigidas à Conferência Episcopal, concretamente ao seu presidente, que depois consultou o Conselho Permanente e este, por sua vez, aceitou fazer a consagração. Como estávamos em confinamento, o presidente da conferência pediu-me, como vice-presidente e bispo do lugar, para ser eu a presidir e fazer essa consagração. Foi tudo preparado em cima da hora, mas saiu muito bem…

Até o senhor se comoveu…

Sim. Senti que o sofrimento do mundo me pesava sobre os ombros…Ainda hoje o sinto. E lá fui resistindo enquanto pude, para ver se chegava ao fim… mas não consegui mais.

Foi um momento muito significativo para quem seguiu, pelos meios de comunicação. Mesmo em Espanha, logo a seguir ao ato, durante a noite, recebi telefonemas de bispos espanhóis, concretamente do presidente da Conferência Episcopal [D. Juan José Omella], a dizer que tinham seguido e também se tinham comovido.

"Senti que o sofrimento do mundo me pesava sobre os ombros…Ainda hoje o sinto"

Que tempo novo se está a gerar, com estas experiências com participação à distância? Há aqui uma possibilidade de fazer a experiência crente com uma experiência comunitária diferente?

Estamos a fazer uma experiência de fé em circunstâncias excepcionais. São as circunstâncias da pandemia, e as suas consequências de ordem sanitária, as que mais obrigaram à reconfiguração e reprogramação das nossas atividades eclesiais. Mas, por sua vez, o povo costuma dizer: “Deus dá as habilidades conforme as necessidades”. E, de facto, houve uma criatividade muito grande para que, nestas circunstâncias excepcionais, se pudesse continuar a celebrar e a fazer a experiência comunitária da própria fé.

São mudanças que vieram para ficar?

Algumas poderão ficar, porque têm de se aproveitar para o futuro. Outras durarão enquanto duram estas circunstâncias. Por exemplo, o Papa Francisco, a partir de segunda-feira, diz: terminou [a transmissão online da Missa matinal, desde o Vaticano].

Eu também, a partir do Pentecostes, deixarei de transmitir a celebração do YouTube, para a diocese. É necessário que agora as pessoas retomem gradual e progressivamente a sua pertença eclesial vivida nas comunidades e nas paróquias.

O que diria àquelas pessoas que anseiam por participar fisicamente nas celebrações, aceder à Eucaristia e confessar-se?

Devemos seguir o exemplo do Papa. Se o Santo Padre fez o que fez… a ele também lhe custou, mas foi para dar o exemplo a toda a Igreja. E não fomos só nós, foi em todo o mundo, praticamente, que se suspenderam essas celebrações.

Nós procurámos dialogar sempre com as autoridades e, concretamente, com a Direção Geral da Saúde, para ir tomando as nossas decisões. Eu, por exemplo, estava à espera que fosse possível recomeçar 15 dias antes do que está previsto. Mas dado o risco ainda elevado de contágio, segundo as previsões das autoridades de saúde, optou-se por abrir no Pentecostes (31 de maio). E já foi conseguir algo mais do que estava previsto, pois inicialmente as autoridades desejavam que fosse ainda mais tarde. Mas nós dissemos que o Pentecostes é uma data muito significativa para a Igreja. Chegou-se a um acordo, facilmente. Não houve tensões no diálogo.

Mas comparando com a situação de outros países, onde foi mais grave a pandemia, que já abriram as igrejas, houve muita gente a achar que terá havido uma cedência

Não houve cedência, houve diálogo. A paciência também é uma virtude cristã! Eu também gostaria que as igrejas abrissem antes. mas, se não é possível, temos de dar também este testemunho e lembrar-nos de que Cristo está sempre junto de nós, não deixa de estar presente. Além disso, há algo nesta situação, que se deve conservar, juntamente com a Comunhão sacramental, pela qual se anseia: é a comunhão espiritual.

A certa altura, em várias comunidades, banalizou-se a Comunhão sacramental e perdeu-se aquela dimensão espiritual profunda que agora se redescobriu, na melhor tradição da Igreja. O Papa fazia-a, todos os dias, no final de cada Eucaristia, e isso deve-nos acompanhar novamente, e simultaneamente com a Comunhão sacramental. É uma das lições a interiorizar e a permanecer para o futuro da Igreja.

Este tempo foi também de debate, até teológico, em torno da prática sacramental em moldes diferentes. Por exemplo, a Reconciliação. O padre jesuíta Antonio Spadaro coloca essa possibilidade, olhando para o digital como um ambiente cheio de realismo, para essa prática. Acha que é uma possibilidade?

Há um risco que devemos evitar, como diz o Papa, porque não podemos viralizar, tornar viral a prática sacramental da Igreja que, por si, é uma prática que requer encontro físico, pessoal, requer o toque, por exemplo, a unção em vários sacramentos. Nada substitui aquela relação pessoal. No entanto, em casos excepcionais, não me repugna, se não houver outra possibilidade. Mas acho que isso nem é preciso. O Papa concretizou um aspeto que vem no Catecismo da Igreja católica: se uma pessoa não tem a possibilidade de celebrar a Reconciliação, pode fazer o ato de arrependimento, diante de Deus, com o propósito de, depois quando puder, se reconciliar sacramentalmente. E diz: “ficam-lhe perdoados todos os pecados, inclusive os mortais”. A misericórdia de Deus é tão grande… Portanto, devemos ter uma preocupação de não tornar a nossa expressão de fé meramente virtual.

"Não houve cedência, houve diálogo. A paciência também é uma virtude cristã!"

Não se preocupa, quando isto começar a abrir, que haja muita gente a sentir-se confortável na modalidade que encontrou em sua casa, online, numa espécie de bolha que se pode gerir. Não tem medo que passem a vir menos pessoas à igreja?

É um risco. Mas penso que isto também serviu para personalizar a fé. Às vezes, para alguns, era uma fé rotineira, mas agora também é participada. Mesmo através dos meios de comunicação social, porque nela só participa quem quer. Não por rotina, mas por opção.

Há quem diga: assistiam à Missa de casa, como se fosse só um espetáculo. Isso também não é completamente verdade, porque há sempre uma participação espiritual e eu penso que o Espírito Santo também age através desses meios, não é só o espetáculo de quem vê e presencia o que se está a passar ao longe. Também aqui é possível uma união espiritual.

Devemos valorizar aquilo que é de valorizar, saber aquilo que foi necessário e ainda é, ou em circunstâncias excepcionais, e depois retomar outra vez a vida comunitária, sacramental, presencial, porque não há nada que substitua isso.

Este tempo, esta pandemia, colocou a relação Igreja-Estado em cima da mesa para decisões importantes. O que é que vai ficar para a história na relação entre a Igreja Católica e o Estado?

As relações têm sido, dentro dos dois princípios ou parâmetros da Concordata: autonomia própria na colaboração com o bem-comum.

Há quem diga que a medida que proíbe as celebrações comunitárias é anticonstitucional

Ninguém proibiu as celebrações comunitárias. Foi a Igreja que assumiu. A Igreja antecipou-se, é preciso notar isso! A decisão foi da Igreja que se antecipou, e bem, até para dar o exemplo. Porque a Igreja, quer se queira quer não, é uma instituição de referência fundamental na sociedade.

A autonomia esteve sempre salvaguardada?

Esteve sempre salvaguardada, na colaboração e no diálogo. Foi tudo feito no diálogo. Eu não participei, pessoalmente, mas havia uma comissão própria, sobretudo em relação a estas questões do aspeto sanitário. São estas questões que obrigaram a fazer essas normas todas.

Incomodou-se muito quando viu as imagens do 1º de maio? Muita gente protestou porque o espaço do recinto Santuário de Fátima era maior do que o da Alameda em Lisboa… teve esse problema?

Na altura estranhei, mas como estava permitido por decreto era uma manifestação, mas nunca imaginei fazermos o mesmo em Fátima. A minha decisão estava tomada e era firme. A Igreja não segue os mesmos critérios que seguem os de ordem política, de ordem partidária. A Igreja segue o critério da dignidade da pessoa e do bem-comum.

Neste momento o que é que o preocupa mais neste contexto de pandemia, em geral?

Em geral, o que me preocupa mais são as consequências, o que vem a seguir, o pós-pandemia. Sobretudo as consequências laborais, económicas e sociais que já se sentem. Os pedidos de ajuda, seja a título individual, seja a título familiar, têm aumentado muitíssimo em várias dioceses. Gente que tinha o seu trabalho, gente da classe média, mais ou menos, e que agora, por causa da família, sente necessidade. É a chamada pobreza envergonhada.

Uma crise mais grave do que a última que tivemos?

Ninguém sabe dizer. Segundo as notícias de Bruxelas, dizem que será uma recessão mais grave, mais forte do que a última, mas não há certezas. Toda a gente está a ver como vai ser. Mas vai ser duro e os dias vão ser difíceis.

A Igreja também vai sentir isso, incluindo o Santuário de Fátima, que vive das ofertas e, não havendo ofertas, como está já a acontecer nestes tempo, não é fácil. A diocese tem alguma almofada para poder acudir alguns casos, mas a gente também confia na Providência Divina. Foi o que eu disse Fátima sobre “a mão materna de Maria”, que certamente não deixará faltar o necessário.

"A Igreja não segue critérios de ordem política ou partidária. A Igreja segue o critério da dignidade da pessoa e do bem-comum"

No início de junho vai decorrer a Assembleia Plenária da Conferência Episcopal, que é eletiva. Que renovação pode surgir, na própria Conferência Episcopal, para as respostas necessárias a dar nas circunstâncias atuais?

Esta assembleia vai ser diferente das outras. Prevê-se que tenhamos algum tempo para discutir um esboço para um futuro documento sobre a situação social e eclesial, mas não devem sair ainda grandes linhas de orientação. Até porque acho ainda é cedo e não sabemos o que vai acontecer nos próximos meses.

Agora, genericamente, penso que se vai abrir uma nova oportunidade para a reforma da Igreja, mas que levará o seu tempo. Estas reformas e a renovação não se fazem numa assembleia de bispos. É preciso realizar as linhas de fundo da reforma propostas pelo Papa Francisco para a Igreja.

Uma “Igreja hospital de campanha”, quer dizer, uma Igreja misericordiosa e samaritana, próxima das pessoas feridas, porque vivemos hoje, e agora ainda mais, num mundo de gente ferida e com muitas feridas. Feridas do ponto de vista pessoal, familiar, as feridas do coração, as feridas do espírito, das situações económicas, etc.

Uma Igreja em saída, para as diferentes periferias, não só geográficas, humanas, existenciais, sociais, como para aqueles que andam afastados, porque não podemos prescindir, o primeiro papel da Igreja é evangelização.

E com essa consciência renovada, quem sabe, se não estamos a falar já com o futuro presidente da Conferência Episcopal.

Não... Isso deve perguntar ao Espírito Santo. Depois, há ainda uma Igreja Sinodal, quer dizer, composta de toda uma série de serviços e ministérios que procuram caminhar juntos, portanto, menos clerical. É que, a responsabilidade de ser clerical, umas vezes é da parte do clero, outras vezes é da parte do povo que também diz “o padre que faça, o clero que faça”.

Por exemplo, agora, durante este tempo, notou-se uma criatividade da parte dos leigos... São coisas a aproveitar, a favor de “uma Igreja marcadamente laical”, como diz o Papa.

É isso que deseja para a Igreja em Portugal?

Também desejo, sim. Que não seja marcadamente clerical, mas sim marcadamente laical: é a grande maioria do povo de Deus! Não quer dizer que o clero não seja necessário, mas cada coisa nos eu lugar.

Queria ainda valorizar os novos meios de comunicação. Foi o que nos valeu, neste tempo de confinamento, não só para a celebração da fé, mas também para garantir a celebração comunitária, o sentido de pertença em comunidade, de toda a Igreja, foi formidável. Portanto, há que valorizar estes novos meios para a nova evangelização!