Os romeiros estão de regresso à estrada na ilha açoriana de São Miguel. Depois de três anos de interrupção por causa da pandemia, as Romarias Quaresmais de São Miguel estão de volta e a coordenação do Movimento dos Romeiros diz que “talvez no final do ano , se inicie junto da UNESCO o processo de candidatura a Património da Humanidade".
As romarias ocorrem todos os anos durante o período das sete semanas da Quaresma. Cada grupo de Romeiros percorre a ilha durante uma semana, visitando as igrejas e as ermidas dedicadas a Nossa Senhora, além de outros templos sob outras invocações.
A origem do ritual está intimamente ligada às catástrofes sísmico-vulcânicas que assolaram a ilha no séc. XVI, em particular em outubro de 1522.
Carlos Vieira, mestre do Rancho de Vila Franca do Campo e autor do livro “Quinhentos anos de Romarias”, considera que falar sobre as romarias de São Miguel “é falar de um património imaterial que nos foi legado há 500 anos pelos nossos antepassados que estiveram na origem desta iniciativa, fruto de muitas calamidades que ocorreram na Ilha de São Miguel”.
“A nossa génese começou a 22 de outubro de 1522. Depois, foram evoluindo diversas procissões, transformadas em romarias. A tradição foi ficando enraizada em todos os povoados da ilha e começamos a percorrer todas as casinhas de Nossa Senhora existentes na Ilha, desde então. Daí que a nossa devoção é inteiramente mariana”, explica Vieira.
O romeiro lembra que “cada paróquia tem um rancho de romeiros, um grupo paroquial que sai numa das semanas da Quaresma”.
"O nosso grande objetivo, ao sermos chamados por Jesus para incorporarmos uma romaria, é, primeiramente, rezarmos pelos nossos pecados e pelos pecados alheios e também para sermos melhores, porque vamos numa romaria não é para sermos santos. Vamos numa romaria para sermos melhores. Aqueles momentos de introspeção que nós temos com a Mãe natureza e com o contacto diário com muita oração, com muita penitência, transforma-nos completamente”, relata.
"Sempre que se realizavam essas procissões a terra não tremia"
Carlos Vieira revela que “tudo começou devido a um terramoto que ocorreu em Vila Franca do Campo, a 22 de outubro de 1522. Após a calamidade, um frei dominicano que lá residia apelou aos poucos sobreviventes que se realizasse uma procissão em memória das vítimas, até uma ermida que foi lá erguida, evocando Nossa Senhora do Senhora do Rosário. E tudo começou assim”.
“A verdade é que sempre que se realizavam essas procissões a terra não tremia e os habitantes da ilha começaram a fazer o que os vila-franquenses faziam. E, então, começaram a percorrer e a visitar as casinhas de Nossa Senhora. Primeiramente, as Nossas Senhoras evocadas à Virgem do Rosário e, depois, a todas as ermidas invocadas à Virgem Maria”, acrescenta.
O historiador adianta que ao longo do tempo “houve muitas mutações, alterações, quer na tradição quer na organização e na participação, porque até meados do séc. XX, as romarias eram mistas - compostas por homens, mulheres e crianças – e, atualmente, são romarias inteiramente masculinas”.
Foi também no início do séc. XX que as romarias “sofreram algum revês, havendo relatos de que estiveram mesmo para terminar”, por força da gripe espanhola.
Receio da pandemia
Depois de três anos sem romaria quaresmal, está tudo encaminhado para se voltar a sair para a estrada, mas, entre os romeiros, “há uma grande preocupação relacionada com a pernoita dos peregrinos”.
Carlos Vieira nota que ainda “persiste um pouco do estigma da pandemia”.
"É habitual pernoitar em diversas paroquias devidamente avisadas do número de irmãos e somos acolhidos por famílias anónimas, famílias particulares, mas essas famílias estão agora, de certa forma, reticentes ao acolhimento”, conta.
“Alguns irmãos mestres dos ranchos manifestaram essa preocupação e estamos a fazer todos os esforços para que esta tradição, que é única e que é, de certa forma, uma das grandes marcas das romarias de São Miguel não acabe”, explica.
Carlos Vieira admite que “uma ou outra pernoita poderá realizar-se num salão paroquial ou numa Junta de Freguesia ou Casa do Povo, embora "A mística, a nossa génese, a nossa origem aponte para a pernoita em casas familiares”.
O historiador diz que é muito importante a interação com a população "pelo facto de a pernoita nestas casas significar que se leva a mensagem de Cristo a estas famílias, gerando uma corrente de oração em toda a ilha”.
“Digamos que durante a Quaresma nós somos autênticos sacrários vivos a percorrer a ilha do Arcanjo S. Miguel”, reforça.
Fernando Maré já fez 42 romarias
Os romeiros de São Miguel levam, por norma, uma semana para percorrer toda a ilha. Fernando Maré já o fez em 42 ocasiões.
Em declarações à Renascença, este romeiro revela que começou aos 16 e hoje, aos 81 de idade, ainda está “ligado aos romeiros”.
"Há muitas pessoas que ainda hoje vão nas romarias por promessas, porque fazem promessas, e foi o meu caso”., conta. "Em 1957, o meu pai foi acometido de uma doença e esteve bem mal, quase a morrer, e eu, naquela agonia, fui ter com o médico e no desespero fiz uma promessa de ir na romaria se o meu pai melhorasse. No ano seguinte, na Quaresma, fui na romaria. Tinha16 anos."
"Para não se juntarem, a para que os diferentes grupos não andem sempre aos encontrões vão sempre todos com o mar à esquerda”. “Dão a volta à Ilha sempre no mesmo sentido. De maneira que não se chegam a encontrar ou, se se encontram, são encontros breves. Não se perturbam uns aos outros e assim completam a sua penitência e a sua oração”, conta.
Todos os romeiros que trabalham na Administração Pública regional estão dispensados de serviço para participarem nas Romarias. A dispensa consta do despacho nº 125/2023 de 26 de janeiro. “Durante o período da Quaresma, do ano de 2023, sem prejuízo de quaisquer diretos e regalias, desde que fique assegurado o normal funcionamento dos serviços públicos a que pertençam”, os trabalhadores da Administração Pública Regional dos Açores que participem nas Romarias, nas ilhas Graciosa, São Miguel e Terceira, estão dispensados.
Processo na UNESCO avança até final do ano
Estima-se que, nesta altura, existam 55 ranchos, ou seja, na Quaresma, em 55 freguesias, saem os seus ranchos. No conjunto, serão à volta de dois mil homens a fazer esta romaria.
João Carlos Leite é o coordenador do Movimento dos Romeiros de São Miguel e garante que “as expectativas para este ano são muito grandes. As expectativas dos romeiros e as expectativas da generalidade das famílias que nos acolhem”. “Tenho ouvido alguns testemunhos de algumas famílias a dizer que o facto de não terem acolhido romeiros nos últimos anos, por causa da pandemia, que tinha sido uma Quaresma atípica, diferente, porque a Quaresma cá em S. Miguel para algumas famílias só faz sentido com acolhimento dos romeiros”, revela.
O responsável afirma que a relação empática da população com as romarias é “um dos motivos que nos leva a nos candidatarmos a património cultural e imaterial da Unesco, porque nós somos homens que respeitamos muito a nossa tradição de romeiros, mas somos romeiros sempre da atualidade, até porque houve sempre uma evolução, mas há aspetos tradicionais que mantemos, particularmente a questão da indumentária que nos torna irmãos uns dos outros”. “Independentemente das diferenças acentuadas que existem em termos culturais, académicos e sociais de romeiro para romeiro; na romaria somos todos iguais, somos todos irmãos”, garante.
A candidatura a Património imaterial da Unesco foi decidida em assembleia geral do Movimento, no final de 2018, tendo o processo sido iniciado em 2019. João Carlos Leite assegura que existem “características para poder efetuar o registo no património cultural e imaterial nacional, que é uma primeira plataforma para evoluirmos com a candidatura para a Unesco”
Depois de um compasso de espera por causa da pandemia, o movimento já conseguiu “os meios financeiros para evoluir com a candidatura”. O oordenador revela que "o trabalho está praticamente feito, porque os critérios que são exigidos para registo no património cultural e imaterial nacional estão praticamente todos já preenchidos".
"Esperamos que durante este ano de 2023 seja entregue o registo deste nosso acervo e desta nossa realidade para depois evoluir com a candidatura a património cultura da Unesco."
“Talvez no final do ano possamos iniciar o processo de candidatura para a Unesco”, assegura.