Delação da Câmara de Lisboa não é “um casinho”, põe-nos ao nível do terceiro mundo
11-06-2021 - 23:15

Sempre que há um erro “político crasso”, um nepotismo evidente, enfim, um daqueles episódios que faria corar qualquer executivo decente, não fora a irritante estratégia da desresponsabilização, a conclusão é a mesma, ninguém assume o que quer que seja.

Em Portugal está provado que a culpa morre solteira. Mas não é por não encontrar marido, mas por viver, há décadas, em verdadeira união de facto com o poder que, por pior que seja, se arrasta por inércia até encontrar um qualquer socalco que faça transbordar a paciência dos portugueses. Se o copo transbordar, o poder fraco e a fraca oposição trocam de lugar, mantendo a inércia como uma maldição. A cada caso que exige assunção de responsabilidades e verdadeira contrição, concluímos: Jorge Coelho foi o último ou só havia um?

Os governos socialistas, designadamente os de Costa, exibem essa impunidade a um ponto a que nenhum anterior conseguiu chegar em matéria de total ausência de assunção da menor responsabilidade possível. Coisa boa? Fomos nós! Coisa má? Ninguém sabia de nada.

Sempre que há um erro “político crasso”, um nepotismo evidente, como se passou com Lacerda Machado e a sua pretensa assessoria pro bono “Tapista”, uma nomeação escandalosa (como a mais recente de Ana Paula Vitorino, numa porta giratória, sem desculpa, nem vergonha, de secretária de Estado a ministra, de ministra a reguladora dos transportes - entidade pretensamente independente dos governos que a nomeiam – surfando a mesma onda de poder onde o marido, Eduardo Cabrita, joga habilmente o “sempre em pé”). Enfim, um daqueles episódios que faria corar qualquer executivo decente, não fora a irritante estratégia da desresponsabilização, a conclusão é a mesma, ninguém assume o que quer que seja.

Resumidamente a atuação governamental segue os seguintes passos:

Primeiro: nega. Não se passou nada. A comunicação social está a empolar um caso irrelevante ou no mínimo encerrado, a ir atrás das redes sociais ou a fazer o jogo da oposição.

Segundo: se é impossível negar a importância da coisa, o terceiro da hierarquia fala e tenta encerrar a questão. Admite um erro, mas nunca a culpa. Foi a burocracia, os serviços, ou um anónimo Sr. Eugénio, acéfalo encartado, e membro do sistema.

Terceiro: se as perguntas persistem, avança o “número 2”. Volta a desvalorizar e tenta arranjar uma analogia com o passado, de preferência troiko-passista.


Quarto: se alguém estender o micro a Costa e ele não conseguir fugir, responderá sorrindo e diz que alguém já falou (pode ser o Presidente) ou vai falar (pode ser o ministro mais à mão). Frisa que não sabe nada do caso. Se não puder negar que sabe, cerra o sobrolho e diz o mínimo acrescentando, no final: “quanto a mim o caso está encerrado” ou, em alternativa, irritadiço, “disse o que tinha a dizer, ponto”. Se for um caso muito grave, faz só cara séria e acelera o passo sem abrir a boca e repetindo: “deixam-me passar? Por favor”, estilo Sócrates.

Quinto: se alguém tiver de cair finalmente, cai o mais baixo da escala: a diretora do SEF, por exemplo. Antes, pede-se desculpa, reconhece-se “um erro” e garante-se: “não voltará a acontecer”. Igual aos meninos no recreio.

Sexto: ao mesmo tempo, acusa-se a oposição de estar a fabricar “casinhos”, de não ter ideias, e a comunicação social de “fascistoide” ou populista, conforme o órgão que mais insistir na notícia.

Sétimo: considera-se a guerra ganha quando surge novo caso e repete-se tudo outra vez. O povo come e cala, e como não vê alternativa, faz subir o PS nas sondagens, segundo a velha máxima do “para pior, bem basta assim”.

O caso, agora, é a delação por parte da Câmara Municipal de Lisboa a governos estrangeiros dos nomes, moradas, telefones e profissões dos principais promotores de manifestações frente às respetivas embaixadas por dissidentes dos regimes vigentes. Em concreto, à Rússia, em janeiro, no desenvolvimento do caso Navalny, mas alegadamente também a Israel, China ou Venezuela.

Tenho para mim que o sucessor no KGB, que durante anos o senhor Putin dirigiu com enorme eficiência, não precisa de nenhuma informação adicional para ter localizadíssimos todos os seus opositores. A começar nos partidários de Navalny que esta quarta-feira, por decisão das autoridades de Moscovo, passaram a integrar a lista dos extremistas (equiparados a jihadistas, outros dissidentes internos e testemunhas de Jeová – estes últimos vá-se-lá saber porquê?!). Idem para a Mossad e os pró-palestinianos ou simples simpatizantes da causa Palestina.

Já não direi o mesmo dos dissidentes venezuelanos ou chineses. A mera cedência desses dados além de fazer de nós um país não “confiável”, e ao nível do terceiro mundo, dá pretexto às ditaduras para pressionarem ainda mais os dissidentes “fora do seu alcance” e as respetivas famílias que permanecem no país. Coisa, de uma gravidade extrema.

Portugal está na presidência da União até final do mês. Debaixo dos holofotes da imprensa internacional. A embaixada da Rússia é um local de manifestação como tantos outros, mas uma manifestação anti-Putin não é igual a uma “manif” dos lesados do BES em que a única coisa a acautelar é a saída dos administradores pela garagem e a proteção dos vidros da sede.

A Câmara de Lisboa, pelos vistos, depois de acabarem os Governos Civis, em 2011, passou a fazer o seu papel no que cabe ao registo das manifestações e mobilização das polícias. Mas, as entidades estatais, tal como um simples cabeleireiro, estão sujeitas ao regulamento de proteção de dados que levou meses a preparar e está há meses em vigor.

Dizer que os serviços da Câmara continuaram a proceder como os governos civis até 2011, ou com base num regulamento de 1974 (onde em nenhum ponto se exige que se informe os alvos da manifestação dos nomes e contactos dos responsáveis pela sua promoção) é tomar-nos por parvos. Medina, numa primeira reação, tentou.

Alegar mais tarde que a norma habitual fazia todo o sentido porque ele próprio lutou contra as propinas e o ministro da Educação, da altura, assim até sabia com quem devia falar dos meninos dirigentes, é tratar-nos como ainda mais tolos. Vir pedir desculpas públicas aos visados, cuja vida pode ter colocado em risco, dizendo que já deu ordem “aos serviços” para não repetir, é o mínimo, mas não chega. Levanta também a questão: já o tinha feito, antes, pessoalmente?

Não sei se a demissão de Medina chega para o ponto final e para recuperar a quebra na nossa credibilidade externa. Além disso, Medina já disse que pediu uma auditoria em abril para fazer o levantamento de todos os “erros”. Mas não explicou porque depois de detetado o erro os serviços, não fizeram meia dúzia de diretas, para lhe dar uma resposta rápida como lhes competia (estamos a 11 de junho).

E se a culpa não é da Câmara e da incompetência dos seus serviços? E se a culpa se estende a uma diplomacia relapsa que não toma o devido conhecimento do que se faz ou não faz em matérias tão delicadas como a relação Europa/Rússia ou Europa/Médio Oriente. Quando preside à UE e está a braços com a crise de desvio de aviões comerciais entre países membros e que envolvem a NATO e a aplicação de sansões reforçadas ao regime do senhor Putin?

Pode Santos Silva dizer, apenas, que confia que os serviços russos apaguem a informação erradamente fornecida? Em que mundo vive o nosso MNE?

Onde ficam as ambições europeias de Costa quando concedemos asilo político a alguns dos visados e dupla-nacionalidade a outros e depois os denunciamos às embaixadas de regimes que estão assumidamente foragidos?

Tenho a maior simpatia pessoal por Fernando Medina. Idem por Carlos Moedas. Mas a guerra dos dois parece-me a coisa menos relevante neste caso e se José Luís Carneiro (a ponderar ser candidato do PS ao Porto) não percebe a diferença entre um caso como este e “um casinho” criado para abrir telejornais, pela oposição conjuntural autárquica, é melhor que não se candidate à segunda câmara mais relevante do país. Quem avisa…