Mais ou menos confinados, nas férias terá mais tempo para ler. São muitas as novidades que pode encontrar nas livrarias de porta aberta ou nas digitais. O Ensaio Geral da Renascença deixa-lhe cinco propostas de leitura para as férias. Entrevistamos os escritores Dulce Maria Cardoso, Mário Cláudio, Bruno Vieira Amaral, Djaimilia Pereira de Almeida e a espanhola Rosa Montero sobre os novos livros que publicaram. Leia o que eles dizem sobre o que escreveram.
“Autobiografia Não Autorizada”, de Dulce Maria Cardoso (Tinta-da-China)
Este é um livro em que Dulce Maria Cardoso é personagem. A escritora propõe um jogo ao leitor. O que será ficção ou real? A dúvida é assumida pela autora de obras como “O Retorno” ou “Eliete”. O livro que partilha o título com o nome das crónicas que Dulce Maria Cardoso escreve para a revista “Visão”, revela episódios da infância em Angola, mas também do presente, em constantes viagens no tempo a cada capítulo.
Dulce Maria Cardoso: “Cada leitor decidirá que livro é este. Do ponto de vista da escrita, interessa-me o jogo – a palavra é boa porque tem tanto de lúdico como de ardiloso – entre a ficção e a memória, entre o real e o imaginado. Esta é a primeira vez em que eu me transformei numa personagem. Esta Dulce é uma personagem. De alguma maneira, acho que todos nós somos personagens da nossa vida porque nos recriamos.”
“Acho que todo o meu trabalho é sobre o passado. Nasci com a bênção e a maldição de ter uma muito boa memória. Para mim, o passado é uma armadilha. Não consigo sair dele. Estas são crónicas publicadas na revista ‘Visão’ e eu pedi à minha editora, a Bárbara Bulhosa, para decidir quantas publicar e por que ordem. Depois de as ler, a Bárbara achou que as devia publicar todas e pela mesma ordem que foram publicadas.”
“Integrado Marginal – biografia de José Cardoso Pires”, Bruno Vieira Amaral (Contraponto)
O premiado autor Bruno Vieira Amaral, prémio Saramago 2015, mergulhou na vida e obra do escritor José Cardoso Pires. Nesta biografia, que resulta de vários anos de investigação por diversos espólios, Amaral dá a conhecer o percurso de vida do autor de “O Delfim”, desde os seus antepassados, até morrer aos 73 anos no Hospital de Santa Maria. Os livros que escreveu, os seus ódios de estimação, os amigos como Lobo Antunes ou Alexandre O’Neill, a frustração de não ter escrito mais estão patentes nesta biografia do autor de a “Balada da Praia dos Cães”.
Bruno Vieira Amaral: “Foi um trabalho quase de arqueologia, de pesquisa de documentos, espólios, correspondência, documentos que Cardoso Pires deixou no espólio, os manuscritos. Consultei também outros arquivos que tinham informação sobre a vida dele, como o arquivo do Exército ou da Marinha. Consultei espólios de outros escritores com quem ele trocou correspondência, como o Mário Dionísio, o Vítor Ramos, a Maria Lamas e o Castro Soromenho. No fundo, creio que é o trabalho base para fazer uma biografia. Recolher o máximo de informação possível para se começar a construir esse edifício que é a biografia.”
“Eu tinha lido alguns livros dele, mas tinham sido leituras diferentes das que fiz agora. Parti com uma grande abertura para tudo o que pudesse encontrar e revelar facetas, em alguns casos, desconhecidas. O que mais me surpreendeu, porque se calhar o conhecia mal, foi o Cardoso Pires contista. Os dois primeiros livros dele são de contos e acho que era um contista extraordinário. Tenho pena que se tenha afastado dessa vocação. Revela uma extraordinária intuição para esse género.”
“Embora Eu Seja Um Velho Errante”, de Mário Cláudio (D. Quixote)
É um dos grandes escritores portugueses que, recentemente, celebrou 50 anos de carreira. Mário Claúdio, que venceu, entre outros, o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, regressa a uma das suas personagens – Tiago Veiga –, num livro onde coloca também muito de si. Como que num tríptico, “Embora Eu Seja Um Velho Errante” é um livro que traça os percursos de vida de três pessoas, uma delas é a do próprio escritor. No epicentro destas histórias estão duas casas – a Casa dos Anjos e a Casa da Ramada –, uma espécie de “casulos”, como o próprio autor refere no livro.
Mário Cláudio: “Este livro é uma espécie de ponto final na biografia de Tiago Veiga. Mas não é preciso ler o Tiago Veiga para ler este livro. Foi o resultado da circunstância de, entretanto terem aparecido escritos que ajudam a entender o percurso biográfico do poeta.”
“O livro constitui-se em três partes, um monólogo interior que é puramente imaginário e que corresponde àquilo que eu suponho que Tiago Veiga terá pensado nos últimos tempos da sua vida. A segunda parte é a publicação do elemento documental que faltava e que é um diário da mulher de Tiago Veiga, que me foi posto nas mãos pelas pessoas que ainda vivem na casa onde morreu Tiago Veiga. Surgiu, entretanto, no meio de outra documentação que por lá existia. A terceira parte é o relato do meu relacionamento naquela terra, através da uma casa que lá adquiri, com a casa da família de Tiago Veiga e onde ele acabou por morrer.”
“A casa tem sido um referente constante na minha escrita. A relação com a casa resulta da consciência evidente, de um elemento uterino, e de ser a casa afinal que nos define melhor, mais do que o próprio rosto. Se quisermos conhecer uma pessoa temos de ir a sua casa. Quando as pessoas não nos abrem as portas de sua casa significa uma ocultação”.
“Maremoto”, de Djaimilia Pereira de Almeida (Relógio d’Água)
Trata-se de um livro passado nas ruas de Lisboa e que retrata a vida daqueles que fazem da rua a sua casa. Focado em duas histórias, a de Boa Morte da Silva e a de Fatinha, o livro revela personagens que se colaram à pele da escritora. Fatinha é uma sem-abrigo que vive na rua do Loreto, já Boa Morte da Silva tem um teto. É ex-combatente da Guerra Colonial e arrumador de carros na Rua António Maria Cardoso. Ele defendeu Portugal antes de vir habitar Lisboa. Nele encontramos semelhanças com outra personagem de Djaimilia Pereira de Almeida, o Cartola do livro “Luanda, Lisboa, Paraíso”.
Djaimilia Pereira de Almeida: “Este livro começa há cerca de 16/17 anos quando eu andava por aquelas ruas do Chiado, a rua do Loreto, ao pé do Teatro São Carlos, onde conheci estas duas pessoas que inspiram as duas personagens, o Boa Morte da Silva e a Fatinha. Eram duas pessoas que andavam por ali, com quem me cruzei muitas vezes e com quem às vezes conversei. Evidentemente que as histórias contadas no livro e as personagens são puramente ficcionais, mas a inspiração começa no encontro com essas pessoas e começa no modo como persistentemente, ao longo dos anos, os fantasmas dessas pessoas nunca me desabitaram. A memória delas misturou-se com aflições minhas e eles passaram a funcionar como uma espécie de fantasmas meus, de espelhos meus. As personagens têm uma natureza projetiva.”
“Existe uma afinidade entre o Boa Morte da Silva e outra personagem minha, o Cartola do ‘Luanda, Lisboa, Paraíso’. É um homem que à distância, primeiro a partir de Luanda e depois da Guiné, imagina Portugal como o seu país. É nessa fantasia que ele assenta a sua identidade. Ele sente pertencer a Portugal mesmo antes de lá ter ido e parte da sua tragédia vem dessa fantasia. Eles são pessoas que caminham pela cidade, como se a cidade fossem a sua casa. É importante, na medida que detetam e estão atentos a coisas que normalmente não vemos.”
“A Boa Sorte”, de Rosa Montero (Porto Editora)
O que leva um homem a descer de um comboio antes de chegar ao seu destino? A pergunta serve de premissa ao novo livro da escritora espanhola Rosa Montero. “A Boa Sorte” é uma obra sobre a necessidade de recomeçar a vida, depois de um trágico acontecimento. Sem querer revelar grandes pormenores sobre a intriga que criou, em torno de Pablo, Rosa Montero explica que este é um livro sobre o confronto entre o bem e o mal, e que tem um lado redentor.
Rosa Montero: “É difícil falar da história deste romance sem expor as suas vísceras, porque é uma intriga, uma ficção de mistério existencial. Podemos dizer que Pablo não quer mudar o seu destino, mas é um homem ferido por um raio súbito e inesperado de uma desgraça enorme que lhe cai em cima. Esta desgraça estraga-lhe a vida. Ele, no primeiro capítulo, desce de um comboio, antes de chegar ao seu destino. Não sabemos porquê. Compra um andar que é o andar mais feio do universo, na aldeia mais feia do universo. Fecha-se nessa casa e nunca chega ao destino. Quando ele desce desse comboio, é porque de alguma maneira ficou sem vida. Compra essa casa e fica a olhar os comboios que passam à frente. Claro que o comboio é uma metáfora obvia da vida. Então, ele fica a ver a vida, fora dela.”
“No final do livro perguntam-lhe: ‘por que desceste do comboio?’ e ele responde: ‘não sei, foi um movimento reflexo, como afastar um braço de uma chama’. Realmente ele ficou com a vida destruída e tem de começar do zero. Ficou tão sem vida que nem sequer tem palavras. Tem de voltar a começar a construir uma vida e a boa notícia é que no romance ele consegue. Apesar do mal nos parecer tão grande, o bem é que ganha. Creio nessa capacidade do ser humano de tentar voltar a recuperar a vida, de tentar perdoar-se a si mesmo. É essa capacidade para a redenção e recomeçar depois de tudo se ter afundado.”