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Era o último dos pais do regime democrático – fundadores ou altas figuras do regime nascido da revolução –, uma personalidade que cruzou as últimas décadas de Portugal e cruzou quase todo o espectro partidário. Freitas do Amaral morreu esta quinta-feira, aos 78 anos, em Cascais, onde estava internado há duas semanas.
Nascido na Póvoa de Varzim a 21 de Julho de 1941, Diogo Pinto de Freitas do Amaral foi discípulo de Marcello Caetano na Faculdade de Direito de Lisboa, onde se licenciou em 1963 e fez carreira académica. Quando se jubilou, em 2007, aos 65 anos, depois de ter percorrido uma longa carreira política e académica, justificou a saída de cena com os problemas de coluna e manifestou grande pena por deixar de ser aquilo que sempre se tinha sentido: professor.
“Professor Freitas” era assim tantas vezes tratado, não só por alunos mas por companheiros e adversários políticos. E o seu retrato era o de professor organizado, que expunha a matéria com clareza e seguia à risca o programa estabelecido. Como na altura contavam os antigos alunos, numa reportagem publicada na revista “Tabu”, costumava chegar com a sebenta, feita a partir das suas lições, e desfiava a matéria num estilo simpático, ainda que sem grande fulgor. Para alguns, isso eram vantajoso. Para outros, um estímulo a faltar às aulas.
A sua última aula foi, como não podia deixar de ser, de Direito Administrativo, essa “peça de relojoaria fina”, como gostava de lhe chamar.
“A evolução do direito administrativo português nos últimos 50 anos” foi o título pesado da lição, aligeirado com o subtítulo “De aluno caloiro a professor aposentado – 50 anos de estudo do Direito”. Nessa última aula, o anfiteatro encheu-se de caras conhecidas de vários quadrantes políticos.
Freitas tinha saído há pouco tempo do mais polémico dos seus cargos: ministro dos Negócios Estrangeiros do Governo liderado por José Sócrates. Uma traição que o partido que fundou nunca lhe perdoou e que muitos socialistas, que se lembravam bem das presidenciais de 1986, também nunca aceitaram bem. Para muitos deles, ele era o homem do CDS, a figura da direita que quase conseguiu vencer Mário Soares na corrida a Belém mais disputada de sempre.
As presidenciais do “loden”
Para a geração que tem agora 45 anos, essa é a primeira imagem política de Freitas do Amaral: o candidato presidencial de “loden” (casaco comprido) verde, que tinha um hino que ainda hoje recordam (P’rá Frente Portugal) e muitos apoiantes que usavam chapelinhos de palha. Apoiado pelo PSD de Cavaco Silva, Freitas do Amaral quase ganhou as presidenciais, numa campanha renhida que acabou por ser ganha por Mário Soares.
Freitas e Soares acabaram amigos. Para trás ficaram anos de combate político. Antes da Revolução, estavam em lados opostos. Soares na oposição, no exílio ou na prisão. Freitas, na academia, moldado pelos “mestres” do Direito Público do Estado Novo, como reconheceria na sua última lição, onde fez questão de prestar a sua homenagem às "qualidades científicas e académicas" de Marcelo Caetano e aos seus "grandes mestres" de Direito Público, "todos adeptos do Estado Novo" que "deixaram sementes bem plantadas" na sua geração.
Depois de Revolução, ganhou mais peso o direito “democrático e de forte cunho social”, como também disse nessa lição. Foi, então, um dos fundadores do CDS (partido de Centro Democrático Social) e o seu primeiro presidente, eleito no congresso fundador. Chegou depois do PSD, o que muitas vezes foi apontado como um fator que explica a diferença de tamanho eleitoral de ambos.
Em 1976, o CDS foi o único partido que votou contra a Constituição, por recusar, sobretudo, o caminho para socialismo expresso no preâmbulo. Dois anos depois, contudo, dá a mão ao PS de Soares, mas sem integrar o Governo PS-CDS, que durou escassos meses, de janeiro a agosto de 1978.
Seguiram-se vários Governos de iniciativa presidencial, até às eleições de 1979, em que PSD e CDS coligados na Aliança Democrática (que incluía também o PPM) conseguem a maioria absoluta. Freitas é vice-primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros no Governo liderado por Francisco Sá Carneiro. Mas o sonho de “um Governo, uma maioria, um Presidente” termina na noite de 4 de dezembro de 1980, com a morte de Sá Carneiro, também num penúltimo dia de campanha eleitoral.
Foi nessa noite que Freitas surgiu nas televisões de milhões de portugueses a comunicar a morte do primeiro-ministro e do ministro da Defesa, Adelino Amaro da Costa, outra figura do seu CDS. Como número dois do Governo, Freitas fica como primeiro-ministro interino, mas só até Francisco Pinto Balsemão assumir a liderança do PSD. Apesar da maioria, os tempos são de convulsão na AD, devido a divisões internas no PSD. Nas eleições de 1982, a coligação desce e Freitas demite-se da liderança do partido. Novas eleições em 1983 acabam por dar origem ao Governo do bloco central, com Mário Soares e Carlos Mota Pinto.
Freitas começa, entretanto, a preparar a sua campanha presidencial. Com o apoio do PSD de Cavaco Silva, a direita parece de novo almejar “um Governo, uma maioria, um Presidente”. A campanha foi a mais mobilizadora de sempre. Freitas parece vencedor quase à partida e Soares tem sondagens a darem-lhe 8%. Mas acaba vencido na meta da segunda volta, em fevereiro de 1986. E, quase de seguida, as maiorias absolutas de Cavaco reduzem o seu CDS ao “partido do táxi”, com quatro deputados.
Em 1988 ainda volta a presidir ao CDS, mas por pouco tempo. Acabaria mesmo por sair do partido na sequência do discurso eurocético de Manuel Monteiro. Nunca mais a relação será normal. E agrava-se muito quando, em 2005, Diogo Freitas do Amaral aceita ser o ministro dos Negócios Estrangeiro de José Sócrates. Pelo meio, chegou àquele que, na altura, era o mais alto cargo internacional ocupado por um português: foi o escolhido para representar o país como presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas entre 1995 e 1996, único luso a ocupar o cargo até hoje.
Ressaca da política
Embora se visse sempre como professor académico, Freitas do Amaral gostava dos holofotes e da política. E de cada vez que ficou sem esses holofotes sentiu-se injustiçado. No seu último livro de memórias, apresentado já este ano, relata os seus últimos anos e manifesta algum desencanto e até acrimónia contra o espaço político em que, durante muito tempo, se situou – o centro-direita.
Diogo Freitas do Amaral queixava-se de ter sido ostracizado depois de ter integrado o Governo de Sócrates e considerava que a direita portuguesa nunca aceitou essa sua decisão, nem lha perdoou.
“A direita portuguesa não aceitou. Ela achava que eu passara a ser propriedade sua e só podia fazer o que fosse do seu agrado. A minha liberdade política, que incluía aliar-me com quem quisesse, devia ter ficado limitada pela propriedade política que a direita se arrogava sobre mim. Aliás, a direita costuma dar mais importância à propriedade do que à liberdade”, escreveu Freitas no livro “Mais 35 anos de Democracia - Um Percurso Singular".
O livro, o terceiro em que percorre as suas memórias políticas, abrange os anos de 1982 a 2017. E é aí que conta que foi a passagem pela ONU que o aproximou dos socialistas. Confessa mesmo que regressou dos Estados Unidos “mais próximo do PS que do PSD”. O que o aproximou do PS mais que do PSD foi o facto de este último partido se ter tornado “neoliberal”. Morreu a acreditar que a democracia-cristã é melhor representada pela esquerda. Mas pelo caminho perdeu amigos e apoios.
Também Sócrates o desiludiu e também com Sócrates se zangou, quando saiu do Governo socialista invocando problemas de coluna. “Foi com a direita zangada comigo e com Sócrates desiludido por eu ter saído do seu Governo pelo meu pé que terminei, no verão de 2006 – apenas por razões de saúde – a minha carreira de homem público. Apesar de múltiplos serviços prestados ao país durante mais de três décadas, fiquei sozinho. Nunca mais fui convidado, seriamente, para qualquer cargo público ou privado, de 2006 até hoje. Puro ostracismo”, lamentava o fundador do CDS, que já não se revia no partido que fundou e dirigiu e que chegou, por ordem de Paulo Portas, a mandar a sua fotografia para a sede do PS.
“Uma coisa eu ganhei com certeza e para sempre foi a noção de que os ideais democrata-cristãos, inspirados na palavra de Cristo revelada pelos Evangelhos e seguida pelas encíclicas papais de caráter social, estão hoje em dia mais representados, tanto na Europa como nos Estados Unidos, pelo centro-esquerda do que pelo centro-direita”, lê-se nesse livro, que acaba por ser o seu derradeiro testamento político.