Aconselha a esperança democrática que não nos deixemos enredar pelos casos, os casinhos e as casinhas que giram em volta da legislatura de António Costa, mas o exercício está-se-nos a tornar desmesurado. E por mais que o poeta Alegre queira repor o PS do “Abril viril e bravo”, o nível do debate político liderado pelo Governo mais não é que “fogo-fátuo e cinza fria”, sem “novos ritmos novos rumos”, tomado por uma invariável astenia primaveril. Está o estado da Nação de tal jeito que, se perguntássemos ao “vento que passa” porque está a “pátria parada”, este depressa oracularia salvadora vibrante vitória de Ricardo Araújo Pereira na batalha eleitoral com Ventura, enquanto derrama languida irónica luminescência, qual “candeia dentro da própria desgraça”, sobre a de Montenegro plácida imberbe oposição.
Mas se, apesar dos dias serem mais de Desenganos do que de Alegrias, uma opção estimulante para celebrar estes 49 anos do golpe de Estado de 74 surge com o projeto “25 de Abril: Permanências, ruturas e recomposições” que está a promover o Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Da iniciativa, que trabalha as categorias descolonização, democracia e desenvolvimento, falou à Renascença o historiador António Matos Ferreira. Não se trata, explica, de “comemorar”, mas de “repensar” a revolução, no que foi alcançado, também no que foi “abandonado”, num exercício de hermenêuticas da memória, escusando as “falsas imagéticas” e integrando os que se sentiram vencidos e os derrotados. No conjunto das áreas abordadas é interessante sublinhar o papel dos católicos na transição à democracia, do “clero altamente culto” e dos “leigos com muito boa formação, quer no sector operário quer no sector intelectual”.
Não podemos deixar de nos interrogar sobre onde estarão estas “reservas de bem” no momento presente, as “consciência” das pessoas comuns, como invoca Matos Ferreira a propósito do fim da ditadura. Uma longa cultura de abuso, corrupção e inércia, numa democracia curta, criou-nos as condições ótimas para que se espalhe a simpatia com os demagogos, se troce do pluralismo, se encerre a reflexão em toscos quadros de referência, se minem os alicerces do modo de vida democrático. E como há cinquenta anos, se vamos ser capazes de ultrapassar a crise das instituições e das lideranças que tanto nos tolhe, dependerá sempre da especial coragem de alguns, mas precisa do apoio de muitos.
Não é fácil garantir a objetividade científica de uma observação sobre a realidade que vivemos, contando-nos, afinal, quem somos e porquê. Mas é impossível imaginar o futuro sem descortinar o passado, nem divisar as nossas motivações coletivas e individuais mais profundas e marcantes, sem entender a sua génese. A compreensão histórica é essencial na formação das identidades lúcidas e também na capacidade de antecipar resultados e especular racionalmente sobre boas soluções. Numa sociedade tão marcada por ideologias fraquinhas e manipulações confrangedoras, faz-nos falta uma leitura em busca de clareza, de espanto saudável sobre as limitações da nossa frágil condição humana, o esforço constante para desejar a liberdade, a existência de bondade no que somos nós:
Foram batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias. Foi a vida (foram vidas). Foi a História (foram histórias) mil encontros despedidas. Foram vidas (foi a vida) por um só dia vivida. (Manuel Alegre, pois claro).