A ONU entre o pouco e o possível
04-05-2022 - 06:31

A guerra que devasta a Ucrânia, causada por uma Rússia agressora que, para lá do Donbass e da Crimeia, lança as suas ofensivas sobre toda a margem norte do Mar Negro, vai já em dois meses e meio.

Para além de ter feito regressar o espetro (e os custos humanos e materiais) da guerra às fronteiras do continente europeu, o conflito é também um seriíssimo teste à relevância e à eficácia da ONU.

Criada em 1945, a Organização das Nações Unidas (o “Parlamento do Homem”, na expressão de Paul Kennedy) tem uma história muito importante, de quase 80 anos de garante supranacional de arbitragem de conflitos, de intervenções cirúrgicas de manutenção de paz e de larga ação regulatória, judicial, humanitária ou cultural. No entanto, está sob a crítica de muitas vozes internacionais e de antigos quadros seus, por nada fazer em relação à guerra russo-ucraniana em curso. Zelensky já perguntou se o mundo não quererá “fechar” a ONU; e Vladimir Putin, apesar de estar sentado como membro permanente no Conselho de Segurança – e agora por causa disso mesmo – não lhe quer reconhecer qualquer papel, antes a denegrindo por esta estar do lado da legalidade internacional atropelada pelo Kremlin.

Presidida por um português, o português António Guterres foi a Moscovo e a Kiev na semana passada. Muitos portugueses lembram-se dele como o primeiro-ministro da descrispação, da bonomia, das paixões e da procrastinação dialogante…E assim o continuam a julgar como Secretário-Geral da ONU. É uma visão redutora. É certo que a dupla visita pareceu alcançar muito poucos resultados: Putin recebeu-o com enfado, Lavrov com impaciência e Zelensky com simpatia, mas desesperança. Contudo, esse pouco esconde o possível, e o possível é importante, mesmo que apenas a prazo.

Em fevereiro, a ONU reagiu condenando a agressão russa à letra da sua Carta de 1945, sem a veemência anti Putin de quem não tem as responsabilidades de uma grande organização internacional. Fez bem. Na Assembleia Geral, a Rússia foi colocada em situação de pária internacional, por uma quase unanimidade. O Conselho dos Direitos Humanos suspendeu-a. No Conselho de Segurança, a pressão contra o seu veto foi reiterada, ao ponto de estar em cima da mesa a revisão dessa norma, eternamente intocável…porque nunca o “vilão” fora um dos “cinco grandes”. E o TPI já está a trabalhar na recolha de provas para instruir processos por crimes russos contra a humanidade.

A diplomacia é isto: pequenos passos respaldados no Direito. Poderia talvez Guterres ter já chamado para “report” os embaixadores russo e ucraniano na ONU, ou ter montado uma “task force” em seu nome para ir ao terreno.

Mais do que isto, ou seja, mandatar (como para o Golfo em 1990-91) uma coligação internacional armada em direção a Moscovo é loucura, porque a “depravação” de Putin (como lhe chamam os EUA) pode recorrer ao nuclear. E com o seu estilo cauteloso, Guterres não deixou de ter palavras claras e duras (como afirmar que há tropas russas na Ucrânia e não o contrário…), que cimentam o isolamento internacional da Rússia, mostrando também a desumanidade do conflito, ao expor a iniquidade de Putin na questão dos corredores humanitários e da evacuação de civis.

A ONU não é um exército, não é um país, não é uma opinião. Visto que a Rússia não tolerará a mediação dos EUA ou da França, e a Ucrânia não quer a Alemanha; visto que poucos confiam na Turquia e muitos temem a China; e visto que o destrutivo impasse militar no terreno requer muita política, a ONU ainda tem espaço e uma palavra a dizer, por entre um aparente pouco que é, por ora, o possível.