O carrocel legislativo relativo à eutanásia, ou ao eufemístico termo “morte medicamente assistida”, revela contornos inéditos.
De facto, após uma sequência interminável de projetos de lei nas duas legislaturas anteriores; quatro na XIII legislatura (BE, PS, PAN, PEV), cinco na XIV legislatura (os mesmos partidos mais a IL); qual é a prioridade dos Senhores deputados para a nova legislatura? Qual pandemia, qual Guerra, qual “tsunami económico”, quais dificuldades de acesso a cuidados de saúde; o que importa é discutir este tema tão central e premente na sociedade portuguesa e apresentar mais quatro projetos (BE, PS, PAN, IL) sobre a “morte medicamente assistida”.
Mais, arrastam para esta obsessão Conselhos e Ordens, que têm de emitir, novamente, pareceres, sempre desfavoráveis que, invariavelmente, são ignorados.
Importa também lembrar que na anterior legislatura a Assembleia da República aprovou, em janeiro de 2021, um projeto de lei que passou a constituir o decreto de lei da Assembleia da República nº 199/IV, que, posteriormente, foi enviado ao Senhor Presidente da República para promulgação.
Nesse sentido, veio Sua Excelência o Presidente da República requerer ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da inconstitucionalidade da norma constante no Artigo 2.º, nº 1, com o fundamento do carácter excessivamente indeterminado do conceito de “sofrimento intolerável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico”. Tal facto, resultou no primeiro veto por parte do Sr. Presidente da República.
Mas, tal não podia impedir o desiderato da maioria; e, foi então que deixaram transparecer a sua intenção desde o início: a eutanásia não é para doentes em situação terminal, mas sim para todos os que padecem de doença grave e incurável e se encontram em sofrimento extremo.
Ou seja, verdadeiramente deixam cair o único conceito em que existia alguma determinabilidade - o conceito de doença fatal.
Nesse sentido o Exmo. Presidente na nota enviada à Assembleia da República sublinha: “A deixar de ser exigível a “doença fatal”, o Presidente da República pede que a Assembleia da República para responder à alteração verificada, em cerca de nove meses, entre a primeira versão do diploma e a versão atual, correspondendo a uma mudança considerável de ponderação dos valores da vida e da livre autodeterminação, no contexto da sociedade portuguesa”.
E, confessando “inesperadas perplexidades” questiona: “o que justifica, em termos desse sentimento social dominante no nosso País, que não existisse em fevereiro de 2021, na primeira versão da lei, e já exista em novembro de 2021, na sua segunda versão? O passo dado em Espanha?”.
Mas, o que interessa o que os outros pensam, os pareceres negativos das várias entidades, as "perplexidades" do Senhor Presidente ou, ainda, o sentimento dominante no país? Nós decidimos está decidido; contra ventos e marés, ninguém nos travará!
Ou seja, os proponentes desta lei, investidos como guardiões de um Portugal “progressista” e surfando esta onda avassaladora dos “avanços civilizacionais”, que sempre criticaram duramente o argumento da “rampa deslizante” assumem, inequivocamente que esta lei proposta já desliza na rampa do eticamente inaceitável.
De facto, ao contrário da maioria dos países que aprovaram a legislação sobre o assunto, e que começaram pelo critério da doença fatal, Portugal deve começar, não no início da rampa, não em doentes terminais mas, numa posição da rampa que permita um deslize moral mais rápido e eficiente.
Talvez, a conquista civilizacional fosse ainda mais notável se seguíssemos o recente exemplo canadiano. O Canadá aprovou a lei em 2016 para doenças terminais, em 2021 na lógica de Portugal, substitui o conceito de terminalidade por “doença ou deficiência que não possa ser curada/aliviada em condições que o próprio considere aceitável”; e, desde aí, foi o caos.
Desde a alteração de 2021, o Canadá, permite que as pessoas que consideram não ter rendimentos para ter uma vida digna possam pedir para ser mortas. Mas, o país não gasta dinheiro para que as mesmas possam viver, mas por outro lado, paga para morrerem.
Os casos relatados têm-se sucedido a um ritmo alarmante; eutanasiar quem não pode pagar tratamentos médicos, eutanasiar quem não consegue ter uma casa que lhe permita ter uma vida digna, ou mesmo, permitir a eutanásia a um Senhor que se encontra tão deprimido com as alterações climáticas que considera ser elegível para a eutanásia pois têm uma doença que não pode ser curada/aliviada em condições que o próprio considere aceitável.
De facto, se não fosse tão grave, até pareceria anedótico! Mas, a cumplicidade do Estado em todo este processo é notória, inclusive, pasmem-se, o gabinete parlamentar do orçamento publicou um relatório sobre a poupança feita com o recurso à eutanásia (após as alterações de 2021 cerca de 148,9 milhoes por ano) e a comparação do custo de tratamento de um doente crónico (muito milhares de dólares canadianos) em comparação com o que o estado gasta num caso de eutanásia $2.327.
Também a Bélgica progressista, acusada pela Amnistia Internacional de abandono dos idosos institucionalizados; 56,9 % (12.447)) do total de mortes por Covid-19 na Bélgica aconteceram em instituições de acolhimento a idosos sendo que, segundo a Amnistia Internacional, estes idosos e os funcionários das instituições foram completamente abandonados; proibidos de recorrer ao hospital e sem tratamento/cuidados adequado.
No mesmo ano, em que estas pessoas foram abandonadas à sua morte, 1.627 idosos com mais de 70 anos recorreram à eutanásia neste país. Além destas, cerca de 50 pessoas do total de 2.444 padeciam de doença mental ou doença psiquiátrica.
Se estes dados não servem para provar que o argumento da rampa deslizante não é uma falácia, quantas mais pessoas terão que ser mortas para realmente termos dados que permitam confirmar o enorme risco da solução proposta?
Todo este frenesim legislativo assenta na convicção, com motivações político-ideológicas, que é ética e juridicamente possível estabelecer uma lei que discrimine uma situação que não tem legitimidade ética.
Pode uma lei partir do pressuposto que uma pessoa vulnerável não vai ser adequadamente protegida? Após estes exercícios de algum malabarismo legislativo em que, através de diferentes estratégias, já foi tentado tudo para conseguir uma lei eticamente aceitável considero, que chegou a altura de assumir a derrota: não é possível construir uma lei ética sobre um pressuposto não ético.
Não é possível, através de legislação, calibrar as diferentes liberdades em discussão, de forma a garantir a proteção da dignidade dos diferentes intervenientes no processo.
Por mais tentativas que haja, os dilemas morais não desaparecem; de facto, só se densifica a dimensão imoral da proposta.