Com declaração de calamidade, confinamento não é obrigatório. Polícia só faz recomendações
29-04-2020 - 07:15
 • Marina Pimentel

Marcelo Rebelo de Sousa estará convencido de que o estado de calamidade não coloca problemas constitucionais. Mas essa opinião está longe de ser consensual. O constitucionalista Paulo Otero defende que a declaração do estado de calamidade é "desadequada". Rui Pereira, antigo ministro da Administração Interna, considera que, apesar das limitação de poderes do Governo e das autoridades públicas, a alteração justifica-se.

O Governo deverá anunciar esta semana o modelo que vai adotar para a terceira fase da situação de pandemia em que o país se encontra. Depois de o Presidente da República ter deixado claro que não haverá uma segunda renovação do estado de emergência, tudo indica que a partir da meia noite de sábado irá vigorar o estado de calamidade, para cuja declaração basta uma simples resolução do Conselho de Ministros.

Marcelo Rebelo de Sousa estará convencido de que o estado de calamidade não coloca problemas constitucionais. Mas essa opinião está longe de ser consensual. E o mesmo é verdade quanto à capacidade do instituto servir as necessidades do país, numa fase da pandemia em que o vírus está longe de estar erradicado, nomeadamente de permitir a proibição de circulação entre concelhos ou de poder impor o confinamento à população mais velha.

Paulo Otero considera a declaração do estado de calamidade “insuficiente “e “desadequada”. O constitucionalista defende "a continuação do estado de emergência, mas num quadro de medidas diferente, com intervenção mínima e sempre à luz do princípio da proporcionalidade”.

Paulo Otero argumenta que “a declaração de calamidade é desadequada, porque foi criada para catástrofes, como incêndios ou terramotos, e não para pandemias. O Professor da Faculdade de Direito de Lisboa argumenta que, “por isso, a lei permite um conjunto de intervenções por parte das autoridades públicas, nomeadamente a ocupação de solos ou a atribuição de direitos de preferência na alienação de bens, que não têm qualquer utilidade numa situação de emergência de saúde pública como a que estamos a viver”.

Pelo contrário, Paulo Otero não tem dúvidas de que “a declaração de calamidade não permite obrigar a população, nomeadamente a de risco em função da idade, a ter de ficar em casa. O confinamento deixa de ser uma obrigação e passa a ser uma mera recomendação. E se as pessoas não cumprirem, não pode haver lugar a qualquer sanção”. O jurista é perentório: ”O Governo não pode proibir as pessoas de sair de casa”. Tudo vai depender da vontade de cada um em acatar as recomendações que forem sendo feitas”, pelas autoridades de saúde e pelo Governo.

Aqueles que estão infetados têm "um dever jurídico de confinamento”

Rui Pereira concorda com essa interpretação. A declaração de estado e calamidade” não permite impor o confinamento”. O antigo ministro da Administração Interna admite que fechar em casa a população mais idosa “é uma questão complexa”, uma vez que “está em causa uma medida de proteção dos próprios, as pessoas devem ficar em casa não porque representem um risco para os outros mas para sua própria segurança”. E nessas circunstâncias, conclui, "o que pode fazer-se é fazer uma recomendação às pessoas para que fiquem em casa”.

O penalista entende, no entanto, que “as pessoas contaminadas incorrem no crime de propagação de doença contagiosa, se circularem em espaços públicos”. Para aqueles que estão infetados “há um dever jurídico de confinamento”, defende. Rui Pereira lembra que aquando da revisão constitucional de 1997 foi criada a figura do internamento compulsivo, mas apenas para as doenças mentais, não para situações de propagação de doença infeto contagiosa”.

O jurista recomenda que a situação seja corrigida numa próxima revisão constitucional. Mas, entretanto, as autoridades públicas não estão de mãos atadas. ”Em nome da prevenção do crime de propagação de doença contagiosa, defende, podem exigir o confinamento das pessoas que estejam infetadas com o novo coronavírus”. O penalista lembra que se trata de um crime cuja moldura penal pode ir dos três aos oito anos de prisão.

Quanto ao mais, as forças de segurança têm de limitar-se a fazer recomendações, porque “o chapéu" do estado de calamidade não lhes permite mais do que isso .O antigo Ministro da Administração Interna defende que o Governo deixará de ter poderes para proibir as pessoas de circularem além do seu concelho de residência. ”O que aconteceu na Páscoa só foi possível porque estávamos em situação de estado de emergência”, afirma.

Novas medidas "vão exigir grande disciplina do povo português"

Apesar da limitação de poderes que o Governo e as autoridades públicas vão sofrer com a substituição do estado de emergência pelo estado de calamidade, Rui Pereira defende que é a melhor solução, atendendo a que houve uma certa contenção da pandemia. ”Estamos numa situação diferente da de outros países do Sul da Europa como Espanha ou a Itália. Os resultados em Portugal são relativamente animadores por isso defendo agora a passagem ao estado de calamidade, assim como antes defendi o estado de emergência”, diz.

A declaração de calamidade permite ainda assim, segundo Rui Pereira, que “sejam decretadas uma série de medidas como restrições pontuais à liberdade de circulação, cercas sanitárias e requisições civis”. São medidas de outra natureza que "vão exigir grande disciplina do povo português”.

Rui Pereira explica que defendeu a declaração do estado de emergência porque “a Constituição exige a sua declaração para poderem ser tomadas uma série de medidas que não podiam ter sido adotadas de outra forma, nomeadamente o confinamento de uma parte significativa da população, o encerramento quase generalizado do comércio, a proibição de circulação entre concelhos e a proibição do direito à greve.” A suspensão de direitos constitucionalmente garantidos só é possível com a declaração prévia do estado de emergência. "Trata-se de uma questão de garantias”, diz , "porque o estado de emergência só pode ser declarado pelo Presidente da República, depois de ser autorizado pela Assembleia da República e ouvido o Governo”.

Rui Pereira defende ainda que “nada obsta a que a calamidade seja declarada para a totalidade do país. De resto como o que acontece em relação ao estado de exceção. O que distingue os dois institutos não é a possibilidade da sua extensão geográfica.”

Confira aqui o que distingue o estado de emergência do estado de calamidade.