A diretora da Ajuda à Igreja que Sofre (AIS) em Portugal foi ao Líbano, numa visita de quatro dias em que participaram responsáveis pela AIS de outros países. Foram inteirar-se do que faz mais falta: para além da ajuda alimentar, que vão continuar a garantir, é urgente continuar a apoiar as congregações religiosas, que são quem assegura a educação e a saúde no país.
Com sete milhões de habitantes, o Líbano acolhe neste momento dois milhões de refugiados (1,5 milhões são sírios). A pobreza agravou-se para todos, ainda mais depois da explosão no porto de Beirute, em 2020. Catarina Martins Bettencourt esteve na capital e também na zona do Vale Sagrado, junto à fronteira com a Síria, onde visitou escolas e hospitais e contactou com muitas famílias. Em entrevista à Renascença, fala da situação “dramática” que encontrou e da necessidade urgente de continuar a ajudar os libaneses, que se sentem abandonados pela comunidade internacional.
Sobre a possível visita do Papa ao Líbano, em junho, que o Vaticano já admitiu estar “em estudo”, diz que será “luz e esperança para os libaneses”.
Como é que encontrou o Líbano? O que é que a impressionou mais?
Foi a degradação, ver o colapso do país. Eu cheguei de madrugada e uma coisa que me impressionou foi a ausência de luz, porque neste momento o Líbano tem apenas duas horas de luz por dia, não tem capacidade para ter eletricidade. Grande parte da cidade estava completamente às escuras, não havia luz nas ruas.
Portanto, quando fala de degradação é das próprias estruturas, as mais básicas?
Todas as estruturas do Estado. Falta apoio do Estado para o que quer que seja, em termos de educação, em termos de saúde, justiça, todos estes pilares essenciais não existem. O que me chocou mais foi ver essa degradação, e ao mesmo tempo a pobreza em que as pessoas estão a viver.
A situação agravou-se com a explosão no porto de Beirute, em 2020?
Muito. O Líbano tem passado por diversas fases, mas o impacto dessa explosão num país que já estava com graves problemas foi a gota de água para rebentar com toda a estrutura da sociedade, houve um aumento enorme da emigração, a fuga das pessoas.
Os libaneses continuam a sair?
Sim, porque não se vislumbra, nem a curto nem a médio prazo, uma mudança no país, e há famílias inteiras a deixar o Líbano. É uma situação muito grave, porque a grande maioria da população, que era classe média, neste momento é pobre, não tem como sobreviver.
Falamos de emigração qualificada? É quem tem mais formação está a sair?
O que é um grave problema. O que estamos a assistir nos últimos anos é a saída dos melhores profissionais, que têm mais facilidade em encontrar emprego noutros pontos do mundo, onde têm segurança, são recompensados dignamente pelo seu trabalho e podem dar um futuro ao seus filhos, segurança à família, tudo isto leva a que estas pessoas queiram fugir.
Para percebermos: em 2019, um ano antes da explosão no porto de Beirute, já tinha havido várias manifestações na rua contra a corrupção, a pedir mudanças no Governo. Nessa altura um professor, por exemplo, recebia em média entre mil a mil e 500 dólares, e hoje a recebe 50 dólares, devido à inflação… Por isso, se tem assistido a uma saída contínua das pessoas com mais qualificadas.
Ao mesmo tempo, o país tem recebido refugiados. Com uma população de sete milhões de pessoas, acolhe nesta altura dois milhões de refugiados, a maioria fugiu da guerra na Síria. Isso também agravou a situação económica?
Se olharmos para a história do Líbano percebemos porque é que se chegou a um ponto tão dramático de degradação do Estado. Não nos podemos esquecer que o Líbano viveu 20 anos de guerra civil, esteve em guerra com Israel, e depois sofreu o impacto dos fluxos migratórios, tanto de palestinianos - durante a guerra civil - como de refugiados sírios. A gota de água foi a explosão em Beirute.
Num país com uma dimensão pequena, acolher dois milhões de refugiados tem um impacto muito grande nas estruturas e infraestruturas, no acesso à saúde, educação. Hoje estamos a viver as consequências deste acolhimento, que foi fundamental para os sírios e palestinianos, mas teve um impacto muito grande sobre a população libanesa, que neste momento está a viver um drama. O orçamento mensal de uma família é muito baixo, neste momento os próprios refugiados estão a receber mais do ACNUR, o que também provoca aqui algumas tensões entre as comunidades locais e os refugiados. A situação é, de facto, muito dramática.
Esteve na capital, Beirute, e também numa região mais próxima da fronteira com a Síria, o Vale Sagrado. A situação é idêntica?
É muito semelhante. A situação económica é tão grave em todo o país, que não interessa se se vive na cidade ou fora. Claro que viver na capital tem mais custos, mas eu estive com famílias na zona norte, junto à Síria, que me diziam que gostavam de ir viver para Beirute, mas nem sequer tinham dinheiro para o combustível. É impossível saírem daquela zona mais remota… no caso, tinham um filho que está para entrar na faculdade, e se fossem viver para Beirute seria melhor, mas não têm capacidade para isso. E era uma família que se via que tinha uma casa boa, uma vida normal, da classe média, e de repente ficou na pobreza…
Que outros contactos mantiveram? Um deles foi com o Patriarca Maronita.
Com o Patriarca e também com o Núncio Apostólico, para percebermos a situação e sabermos o que, do ponto de vista da Igreja, é necessário fazer. Foi muito importante. E também visitámos escolas e hospitais geridos por congregações religiosas.
Que a AIS está a apoiar?
Exatamente, e que são muito importantes. De facto, a grande estrutura que dá apoio à comunidade continua a ser a Igreja, com as suas escolas e hospitais, apesar de estarem a passar também por um momento dramático, porque não recebem qualquer apoio do Estado para receber alunos nem para pagar aos professores, e as famílias também não têm capacidade para pagar. Tem-se assistido à saída de professores das escolas, e de médicos e enfermeiros dos hospitais.
A Igreja tem um papel fundamental, e o Líbano é um país exemplar, no Médio Oriente, pela convivência que tem havido ao longo dos anos entre as várias religiões. Muitos muçulmanos, e de outras religiões, têm a sua formação em escolas católicas e cristãs, o que tem sido muito importante para o crescimento do respeito pelo outro. Claro que há problemas, mas não têm a dimensão de outros países vizinhos, e esta parte da educação tem sido fundamental.
Falei com uma irmã, numa escola, que me disse que os seus alunos muçulmanos continuam a visitá-la e alguns já lá foram pôr os filhos também. Mas, esta tradição que existe no Líbano estamos a correr o risco de a perder, porque as irmãs não têm capacidade para continuar a ter as escolas abertas, e os professores estão a sair...
E as congregações religiosas mantêm-se? Ou também tem havido saídas?
Estão com muitas dificuldades. Muitas das congregações que existem no Líbano nasceram na região, não têm ajuda de outros países, e estão a ficar sem capacidade para apoiar a própria comunidade. É muito difícil…
Vi hospitais praticamente vazios porque as pessoas não têm capacidade para pagar médicos e medicamentos. A situação é de facto dramática, e precisa de ajuda de fora, do exterior. Sei que o FMI (Fundo Monetário Internacional) está presente e a ter reuniões para começar a ajudar, mas é preciso fazer muito mais.
As irmãs com quem falei estão realmente preocupadas... as congregações responsáveis por escolas e hospitais sabem que têm, por um lado, os funcionários - que são apenas uma parte -, mas também têm centenas de famílias que dependem daquele pequeno ordenado que recebem ali, e isto é um drama para estas irmãs, sabem que não podem deixar estas famílias de um dia para o outro sem emprego, mas também não sabem como resolver esta situação sozinhas, sem ajuda do exterior.
Na prática, o que é que resultou desta visita que fizeram? Vão reforçar a ajuda que já dão ao Líbano? Vai haver alguma campanha específica?
A nossa preocupação neste momento tem a ver essencialmente com a educação, porque um dos motivos que leva muitas pessoas a sair do país é porque não conseguem que os filhos tenham acesso a uma boa formação.
Uma das nossas prioridades é ajudar a que as famílias fiquem, através do apoio à educação dos filhos, mas também através dos cabazes alimentares, que vamos manter, dada a situação. E vamos também ajudar as congregações que estão mais ligadas à saúde.
No fundo, esta visita serviu para ver os projetos que temos estado a fazer ao longo dos últimos anos. Desde a explosão no porto de Beirute ajudámos na reconstrução de algumas igrejas e mesmo de hospitais. Mas, agora as áreas que nos parecem fundamentais são a segurança, a sobrevivência das congregações religiosas, para se manterem no terreno.
Temos a perceção de que, pelo menos nos próximos dois ou três anos, o Líbano será um país que vai necessitar muito da nossa ajuda. Vamos avaliando, mas estamos disponíveis para continuar a apoiar o Líbano, pelo menos até conseguirem sair desta espiral de inflação, pobreza e ausência de esperança. Foi outra coisa que me marcou muito, a ausência de esperança no olhar das pessoas, nas palavras que nos diziam: 'não nos deixem sós, não conseguimos sobreviver'. Há um desespero muito grande da população e é preciso ajudá-los a encontrar esperança, o seu caminho, para que possam manter-se no seu país.
O patriarca maronita já agradeceu a ajuda que a AIS tem estado a dar.
Nós estamos há vários anos no Líbano, com uma ajuda mais concreta nos últimos anos, desde a entrada dos refugiados sírios, a ajudar a Igreja a acolher essa comunidade. A partir de 2019, mas sobretudo depois da explosão em Beirute, em 2020, percebemos que necessitávamos de apoiar mais intensivamente a própria comunidade libanesa, que estava a passar por muitas dificuldades, para poderem também continuar a ajudar a comunidade síria que vive no país. Temos estado e queremos continuar a estar presentes, e o Patriarca reconheceu esse trabalho.
Quem quiser ajudar, como é que deve fazer?
A melhor forma de ajudar é ir através do site da Fundação Ajuda a Igreja que Sofre , ver as campanhas que estão em curso e dizer que quer apoiar o Líbano. Ou então ligar-nos, porque muitas pessoas ainda não têm internet, e uma das formas é ligar (217 544 000) e pedir mais informações, que nós enviamos.
O Vaticano já confirmou que está em estudo uma viagem do Papa ao Líbano, que segundo a presidência libanesa poderá ocorrer já em junho. Nestes contactos que manteve sentiu que esse é um desejo do povo libanês?
Sem dúvida, e penso que a presença do Papa será luz e esperança para os libaneses, que se sentem muito sós. Quase todas as pessoas com quem estivemos nos agradeceram termos “perdido tempo” para estar com eles. Os cristãos do Médio Oriente sentem-se abandonados pela comunidade cristã do Ocidente.
Disseram todos: “vocês deram-nos esperança de que não estamos sós e que vamos conseguir ultrapassar”. Portanto, uma visita do Papa dará muito mais esperança a esta comunidade que precisa destes sinais para saber que não está só, não está abandonada.
Não nos podemos esquecer que o Líbano ainda é um dos países onde existe um maior número de cristãos, são entre 30% a 35% da população, é uma percentagem muito elevada para um país do Médio Oriente, e a presença do Papa vai-lhes dar a esperança de que precisam para se manterem.
E será também uma chamada de atenção, de novo, para esta região em relação à qual o Ocidente tem andado distraído, ainda mais depois da guerra na Ucrânia?
Essa foi uma das mágoas que partilharam connosco. Claro que olham para a Ucrânia, e também sentem o impacto da guerra, porque muitas coisas vinham de lá.
Nomeadamente em termos de alimentação…
Disseram-nos, por exemplo, que o óleo já tinha acabado, já não tinham reservas. Vem de lá muita coisa. Mas, os libaneses sentem um aperto no coração por perceber que o mundo se mobilizou todo para a Ucrânia e nunca se mobilizou assim para o Líbano.
Há muitos conflitos, muitos deles passam despercebidos, e o Líbano é um país que efetivamente se deixou de falar, como deixou de se falar da Síria, onde a guerra continua. E quando nos dizem que nos esquecemos deles, têm alguma razão.
Vai ser muito importante que o Papa vá e chame de novo a atenção para o que está a acontecer. É muito preocupante se o mundo não olhar para o Líbano e deixar que este país, que é um exemplo na região em termos de convivência e partilha de poder entre as várias religiões, deixe de ter uma comunidade cristã mais presente.