Esta história começa em 1952, quando o então ministro francês da Saúde Pública, Pierre Ribeyre, propôs aos colegas de governo, e a outros países, criar uma Comunidade Europeia da Saúde.
Os pais fundadores do projeto de integração, entre os quais se inclui Robert Schuman – colega de governo de Ribeyre –, defendiam que a Europa deve ser construída passo a passo, através de "realizações concretas".
De certo modo, a Comunidade Europeia da Saúde complementaria a outra "realização concreta" dos pais fundadores na altura – a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço.
Numa Europa ainda traumatizada pela guerra, a Comunidade Europeia da Saúde serviria justamente para cuidar desse bem precioso que é a saúde, cimentando o projeto político europeu de paz.
De acordo com documentos de então, a Comunidade Europeia da Saúde previa, por exemplo, a criação de recursos comuns para cuidar de doentes, o estabelecimento de um mercado comum de medicamentos e de material médico ou o intercâmbio de meios logísticos entre países.
Também previa situações de epidemia. Nesses casos, a Comunidade Europeia seria mobilizada para ajudar o país membro atingido. As autoridades desse país poderiam pedir o envio de profissionais de saúde, o apoio de laboratórios da Comunidade ou recorrer a medicamentos de um fundo comum.
Chegou mesmo a estar projetado um tratado para organizar essa Comunidade. Mas, por diversas razões e interesses opostos, o projeto ficou na gaveta.
Durante décadas, a situação não se alterou. A União Europeia (UE) apenas complementa as políticas nacionais de saúde, ajudando os 27 a alcançar objetivos comuns – além de adotar legislação e normas europeias aplicáveis aos produtos e serviços de saúde, financia projetos de saúde nos Estados-membros. Não há, portanto, uma política comum europeia de Saúde.
As lições da crise
Com a pandemia causada pelo novo coronavírus, algumas das ideias da malograda Comunidade Europeia da Saúde de 1952 voltaram a surgir. A criação de uma Europa da Saúde, ou de uma União Europeia com mais competências nesta área, voltou à agenda política, entre outros pela mão de Emmanuel Macron e Angela Merkel.
Em maio, os dois líderes propuseram aos parceiros europeus um plano conjunto de recuperação económica, com uma visão da Europa pós-pandemia em que defendem uma nova estratégia que acrescente uma dimensão europeia às políticas nacionais de saúde.
O Presidente francês e a chanceler alemã parecem ter tirado ilações da atual crise. Quando a pandemia chegou à Europa, os 27 reagiram de forma dispersa com uma visão estritamente nacional. Visivelmente, não estavam preparados para esta situação.
O Presidente francês, Emmanuel Macron, diz que esta questão deve ser uma prioridade da Europa.
"O nosso desejo, a nossa vontade comum é de ter competências muito concretas. Em matéria de saúde, é de nos comprometermos juntos com reservas comuns de máscaras e de testes, [ter] uma capacidade de compra e de aquisição comum e coordenada para tratamentos e vacinas, planos de prevenção partilhados contra epidemias, métodos comuns para identificar os casos. Esta Europa da Saúde nunca existiu, deve tornar-se a nossa prioridade".
Além de Paris e Berlim, em Bruxelas parece haver ambição em relação à possibilidade de a União Europeia fazer mais nesta área, sobretudo em situações de crise sanitária. Várias vozes na Comissão e no Parlamento Europeu manifestam-se nesse sentido.
Lídia Pereira, eurodeputada do PSD, diz que a gestão dos recursos humanos deve permanecer na esfera nacional, mas há outras áreas onde é possível ir mais longe.
"A experiência do projeto europeu tem mostrado que há ganhos para todos numa maior partilha de recursos e competências. O PSD defende a criação de uma verdadeira Agência Europeia de Saúde e a implementação de um programa devidamente financiado que permita enfrentar problemas comuns como futuras pandemias", refere.
O eurodeputado do PS Manuel Pizarro defende igualmente uma maior presença da UE. "É absolutamente claro que a União Europeia deve ter mais competências em matéria de Saúde. Precisamos de muito mais Europa na Saúde como esta crise do coronavírus deixou bem evidente".
O eurodeputado entende que a prestação de cuidados deve ser responsabilidade dos 27, mas diz que há muitos domínios em que uma intervenção europeia coordenada faria a diferença. "Sobretudo, na definição de regras e de condições financeiras, na contratação de novos medicamentos, fármacos e testes".
Rumo a uma União Europeia da Saúde?
Segundo vários especialistas, mais Europa na área da Saúde poderá passar, por exemplo, por reforçar as competências e o orçamento do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças e da Agência Europeia do Medicamento, reforçar a investigação sobre vacinas e tratamentos, aumentar a vigilância de ameaças sanitárias, criar reservas de profissionais de saúde e reservas de medicamentos e de material de proteção para situações de pandemia – tornando a UE menos dependente de países como a China e a Índia.
Recentemente, Bruxelas apresentou o programa "EU4Health" que assume algumas destas propostas. Através de um investimento de 9,4 mil milhões de euros, o programa pretende reforçar o grau de preparação dos 27 para as principais ameaças sanitárias transfronteiriças e garantir que os sistemas nacionais de saúde são resilientes com capacidade para fazer face a epidemias e para responder a desafios de longo prazo, como o envelhecimento da população e as desigualdades ao nível da saúde.
Quando apresentou as propostas, o vice-presidente da Comissão Margaritis Schinas admitiu a possibilidade de um dia existir uma União Europeia da Saúde.
"Neste momento, não estou em posição para anunciar como é que esta União da Saúde da União Europeia será no futuro. Mas penso que estamos agora na primeira fase de um processo que um dia fará disto uma realidade tangível", afirmou.
O vice-presidente do executivo comunitário considera que esta é uma das questões-chave a debater com os cidadãos na conferência sobre o futuro da Europa.
Com a Europa ainda a vivar a crise sanitária e ainda longe de uma normalização da vida social, parece por enquanto haver vontade de alguns dos principais protagonistas políticos de dar passos (as "realizações concretas" dos pais fundadores) para reforçar a dimensão europeia na área da Saúde.
Resta saber que contornos poderá adquirir esse reforço – se isso se fará aproveitando a margem ainda existente nos atuais tratados ou através de eventuais alterações políticas e institucionais para criar uma política comum europeia.